quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Os Capuchinhos

Sugestão de acompanhamento musical:
I feel pretty - West Side Story Soundtrack

O jornalista Rui Santos foi alvo de tentativa de agressão por três rapazes encapuzados na madrugada de segunda-feira. Tudo se terá passado no parque de estacionamento da SIC à saída do “Tempo extra” - programa onde o comentador desportivo tem por hábito divulgar coisas de valor durante 90 (no-ven-ta) minutos. Rui Santos falava e Luis Costa Branco, pivô do programa, ouvia atentamente. Depois saltaram para dentro das suas viaturas quando viram três barrotes de madeira a dirigir-se na sua direcção, embalados pelo citado trio de maltrapilhos. Não houve feridos, e a rapaziada fugiu perante a chegada de um segurança. Depois de se rever no espelho retrovisor, para em seguida esticar-se e fazer o mesmo no do lado esquerdo, Rui Santos terá abanado a cabeça e seguido caminho a ouvir Chopin.

Entretanto, o país reagiu com solidariedade: houve sms de apoio à vítima e por pouco não se fez um cordão humano semelhante ao verificado no Euro 2004. Sobre esta possibilidade, Rui Santos considerou-a “nada menos que um esboço de dimensão equitativa à energúmenidade de um acto contra a minha pessoa que nada deve à verosimilhança num país que outrora já soube o que significa o dever ético e moral para com as entidades públicas de mérito reconhecidamente incontornabilérrimo.”

Não é fácil olhar para esta história e ver algo que não seja o Rui enquanto Santo. Mas sugiro que nos debrucemos sobre os lamentos que o ex-cronista d`A Bola dirigiu à imprensa sobre o caso. Talvez corramos o risco de perceber o que se terá passado naquela madrugada, arrisco que com algum detalhe.
“Puxaram-me para fora do meu automóvel. Eu resisti. Eu protegi-me entre a porta da minha viatura e os agressores, eu não deixei que me tocassem e eu enfiei um pontapé com toda a força num deles”, disse o profissional de emissão, que assina religiosamente um artigo diário no Record cuja versão siamesa em suporte online tem uma fotografia sua com tanto destaque como o texto. Sendo que a dimensão deste varia, podendo ser menor consoante critérios de natureza jornalística.
E contemplando essa imagem, será possivel apreciar a forma poética como o aprumado Rui Santos trata do seu cabelo, sempre cristalino e vivo como o cotão em casa de estudantes. Na verdade, a receita passa por um tratamento cuidado à base de laca e gel-para-pessoas-com-um-cabelo-especial, produto cujo preço varre aproximadamente 1/5 do que o Rui Santos ganha por mês e consideravelmente mais do que o salário mínimo de qualquer português. Corre o rumor de que o laboratório onde o comentador desportivo adquire este produto tem um ambiente de trabalho bastante agradável.

Posto isto, não será preciso grande investigação para perceber o que se passou no parque de estacionamento da SIC. Os três capuchinhos carregavam demasada inveja pela permanente do Rui Santos, porque se andavam encapuzados é porque certamente queriam esconder alguma entrada que chegou antes de tempo. Arrisco que haverá por ali muita pele em contacto directo com o respectivo capuz, experiência pela qual terei a possibilidade de passar dentro de alguns anos. E tanto os capuchinhos se roeram ao ver a brilhantina do nosso estimado Rui, que naquela madrugada saíram à rua para despenteá-lo.
O que não vai nada bem, sendo portanto com algum sentido de justiça que o emissor Rui Santos aplicou o valor do seu pontapé nos ossos da rapaziada. Esta juventude.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Pente fino, por favor

Sugestão de acompanhamento musical
Wild Honey Pie - The Beatles

Chamava-se Benjamin Barker, tinha-se por Sweeney Todd e todos o conheciam como "o barbeiro”. Acabara de chegar a Londres - muitos anos depois de lhe violarem a alegria, cujo nome era Lucy. Ela raptada e ele de coisa alguma acusado e logo deportado para a Austrália pelo poderoso Juíz Turpin, que então lhe levara também a filha recém-nascida.
No sombrio regresso a Fleet Street, à casa onde exercera o seu ofício, Sweeney Todd embalou a sua sede de vingança com o de sobrevivência de Mrs. Lovett: uma cadavérica amiga, de outros tempos, que alí vendia empadas de pouca virtude. Constava-se que a concorrência apostava na carne de gato. E foi de bom tom que, percebendo os tempos difíceis, logo o barbeiro e a cozinheira ficaram amigos e, pegando no desejo de vingança de um, se fez o lucro da outra com empadas de carne humana. O negócio cresceu à medida que o famoso barbeiro ia despachando a clientela.
A pente fino.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Menina e moça

Sugestão de acompanhamento musical:
Bom conselho – Chico Buarque

Estava eu a curtir uma menina-moca de 37,9 de febre quando, pela segunda vez em cinco minutos, escondi o termómetro debaixo do sovaco. Esperei impacientemente pelo pi-pi-pi-pi até que o ruído chegou e espreitei os números, debaixo dos lençóis. Como estou a escrever por cima destes, convém deixar claro que a temperatura do meu corpo era a mesma, tendo aumentado para 38,3 nos minutos seguintes após doentias repetições. No primeiro teste não tinha perdido o papelinho informativo, embora assim o pensasse. Procurava-o na cama, quando ele nunca tinha saído da caixa - que estava na mesa de cabeceira. Mas no seguinte, consegui mesmo fazê-lo desparecer. E não me lembrava como. 38,7.
Magia deve ser qualquer coisa assim. E foi sem saber do paradeiro dele que, nos perigos do escuro, aproximei as minhas desajeitadas mãos do telemóvel e liguei sem querer a um jornalista do Público. Ele não atendeu, mas reparei que eram 02h26 e hum... há três dias que andava assim, tinha de me tratar.
Pensei que 20 euros seria suficiente. Táxi, consulta e ainda devia chegar para levantar um cheirinho da receita. Outra abordagem é que não tinha mais dinheiro. Fiz as contas e logo desisti pelo que, sem pensar muito, liguei para a central e dentro de cinco minutos teria o meu motorista prostituto à porta de casa.

“Será que levo o mp3? Da última vez - olha deve fazer por agora um ano - levei o Ipsilon numa altura em que ele era Y e tinha o corpo perto dos 40 graus. Se é para `tar com febre, que seja à grande. Ah, o táxi chegou, não levo nada.
Já `tive melhor disposto, esta viagem vai ser longa. Bem, parece que vai ser mais longa ainda, já que este gajo `tá a levar-me pelo estúpido que no momento sou: sei que `tou a ser enganado no caminho e não digo nada. Talvez não me contenha e lhe vomite em cima numa curva apertada, de protesto. Chegámos, quanto é a multa, chefe? 4.95 euros? Mas eu vejo 4,15 euros alí no contador. Ah é de noite, `tá certo, não precisa de me olhar assim. É a febre. Simpático".

Tropecei pelo hospital adentro e, ao chegar ao check-in, fiquei encantado. O preço da consulta seria 11, 50 euros. Lembrei-me do taxista e do protesto. Explicando o encanto, tenham-no mais por delírio que outra coisa, mistura de feitiço e dor de barriga. Fiz as contas e, claro, não cheguei a conclusão alguma. Como não estava alí para comprar orgãos e só queria que a febre falecesse, fuzilei o senhor do check-in com os olhos. Encolheu os ombros. Depois sorri-lhe e ele assustou-se. Fui esperar longe.
O médico que me viu era daqueles que não sentem falta das pessoas. O nosso primeiro contacto teve cinema francês. Disse-lhe: "desde que cheguei, já me enganei três vezes na porta onde era suposto dirigir-me, pareço o Tati". Ele não achou piada e dois minutos depois já me via pelas costas, depois de me receitar cinco medicamentos para que a febre falecesse.

- Cinco, senhor doutor?
- Este é para fazer baixar a febre. Este é para que ela não reapareça. Este é para o bem-estar da fauna patagónica. Este é para o mau olhado.
- Mas eu não acredito nessas coisas, senhor doutor.
- Jelzebu, macanabu, em patas de rã se transforme esse rabu.
- Rabu?
- Era para rimar. Tenha uma boa noite.

É certo que andar a 37 km/h mexe com o sistema nervoso do mais budista. Mas agora já não pensei em protestar com este taxista, ia ter de lhe pedir que me deixasse a meio da Almirante Reis. Com pouco dinheiro e muito suor, lá lhe sugeri que parasse aos quatro euros – o que seria alí mesmo. Não me preocupei com a distância tanto quanto poderia. Naquele momento pensava na estação da Baixa-Chiado, quando em sete carruagens do metro escolhemos a quarta e, ao sairmos, perdemos quase muito tempo a decidir para que lado caminhar. O meio pode ser tão virtuoso como insolente.
A primeira boa notícia daquela noite era que a farmácia do Chile estava “aberta”. Aberta às minhas preocupações biólogas, recém-induzidas pelo médico que não sente falta das pessoas. Senti-me o sultão dos doentes, lenda do termómetro tardio. Sem luzes, mas com o sinal “aberta” que tanto me empurrou no caminho para casa - onde ia buscar os 15 euros que me restavam para os próximos dias. Cheguei, um dos meus colegas de casa continuava a falar pelo skype com a namorada, tal como na última vez que o tinha visto, às 02h31.
Peguei no dinheiro e voltei para a farmácia aberta.
Cheguei, vi e esperei. Acompanhei o meu primeiro toque na campaínha com um sorriso febril mas terno, próprio de quem sabe estar no melhor dos mundos se pensarmos que está a nascer o dia. Como ninguém apareceu, toquei pela segunda vez e com maior intensidade. E como não há duas sem três, veio a quarta e “filho da puta que não apareces”.

A Sophie no aeroporto, de regresso a Nova Iorque dentro de poucas horas. A febre, sem rival. Pouco dinheiro, muitos medicamentos para levantar. E a novidade de, naquela noite, ter aprendido que uma farmácia aberta pode estar fechada.