sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Vou pedir ao Pai Natal para em 2021 poder voltar ao Incógnito (e ouvir SAULT)






As noites de Lisboa eram para andar à toa até ser hora de ir para o Incógnito. A malta tinha a mania de só descer a Calçada do Combro e ir para a discoteca depois de os bares fecharem, mas eu preferia evitar a hora de ponta e, sempre que possível, bater ao portão azul, agora cor de vinho, entre a meia noite e a uma, antes daquele amoroso festival de pisadelas e cotoveladas que tanta falta agora faz, ao som de Strokes, Joy Division, LCD Soundsystem e por aí fora.

Durante a semana tínhamos jazz por toda a cidade, ou assim foi durante muitos dos anos que lá vivi, mas ao fim de semana, quando era para dar o litro, salvo raras exceções, era mesmo no Incógnito que a vida se tornava espetacular durante algumas horas.

Não é coisa que aconteça muitas vezes, a vida ser espectacular. Na maior parte do tempo tentamos apenas organizar-nos para evitar ser apanhados desprevenidos por algo que não conste do nosso guião. No fundo, queremos controlar o que, ocasionalmente, percebemos que não está nas nossas mãos: o nosso destino.

Mas o Incógnito dava-nos mais. Devolvia-nos a alegria perdida.

"Parecemos putos! Não temos aulas amanhã!"

Quem ali ia, procurava a melhor música, de preferência dançável, num concerto de quarta-feira a domingo protagonizado por um coro anónimo de entendidos na matéria indie. Ali se cantava a música como grande bem comum.

Ir a um bar/discoteca que passa música para se ouvir essa música. Por estranho que pareça, isto existe. Passei ali os meus melhores momentos em 15 anos de noitadas em Lisboa. 

Nestes tempos de pandemia, e sabendo bem a montanha de problemas que os empresários da noite estão a tentar transpor, tenho pensado muito no Incógnito. Voltaremos àquela pista de dança mágica? Sei que a mobília da casa continua a ter convites para passar música, vestindo a camisola da discoteca sem nome. De certa maneira, o Incógnito continua.

Mas o bicho apareceu em má hora. Para as discotecas, há muito que o tempo é de chuva e vento. Já eram uma espécie em "vias de extinção", nome do novo disco do Benjamim, que gravou um dos temas ali mesmo, no Incógnito, tendo como protagonistas o Rai (dono e DJ), o Renato e alguns funcionários
de longa data, e que apropriadamente se chama Incógnito, e o meu receio é que a pandemia tenha desferido o golpe de misericórdia nas mesmas. Já lá vão 7 meses sem poder abrir portas. Demasiado tempo. Mas que o Incógnito a tudo resista, é o desejo que expresso.
 
Já que falamos em resistência, "we shall reclaim our joy", avisam os SAULT - projeto também ele incógnito, que tem sido o grande acontecimento musical dos últimos anos - em "the beggining & the end", malhão de spoken word por cima de percussão a la James murphy do disco que lançaram há duas semanas, Rise, o quarto em dois anos, todos geniais, realmente geniais.

Máquina de fazer música negra que redefine o limite da beleza de cada género adotado, os SAULT acompanham a urgência dos tempos, e nos dois discos deste ano reagem com um murro na mesa contra o racismo sistémico, perpetrado pela polícia, que parece renovar forças nos EUA. Compostos por canções tremendas, serpenteadas por  histórias que passam a necessária mensagem de insurgência contra a ignorância e apelo ao orgulho próprio, "Black is" e "Rise" são um grito de revolta que precisamos de ouvir. E, claro, são material de Incógnito. O Rai passa a vida a ir atrás do que de melhor se está a fazer no mundo da música, e é essa mistura entre apresentar o que está a acontecer e recuperar os clássicos que faz do Incógnito uma meca dos amantes da música.

"These are, these are, these are scary times.", alertam os SAULT no novo disco (tema: Scary times). São, pois. E é bom que ainda haja na música quem se interesse por isso e queira dizê-lo, alto e bom som. Grande, grande som.