terça-feira, 31 de março de 2009

Este post tem cauda

Bonifácio: A música dos BCH (Belle Chase Hotel) parecia querer fugir deste lugar. Não lhe assentava bem a identidade portuguesa?

JP Simões: Na altura queria ser outra coisa, sim. Que não era incompatível com ser português. Uma das nossas características é transmutarmo-nos. Talvez por ser inóspito ser português. É iminentemente portuguesa a vontade de ser outro. Portanto, estava a ser extremamente português (...)




Uma amiga minha diz que o João Bonifácio “saiu da BD para a vida real”. Presumo que ele não gostasse de saber que a vida real não é a da BD. Eu não gostaria, se estivesse nos pés do Bonifácio. Apercebi-me que ele existia na mesma noite que o JP Simões. O primeiro entrevistava o segundo, na edição de 29 de Setembro de 2006 do Ípsilon, que então era Y, e eu lia tudo muito atentamente na sala de espera do Hospital de São José, madrugada dentro, à espera que alguém me tirasse o termómetro debaixo do braço. Demorou essa espera o tempo que costuma demorar. Depois chegou o médico; enfiou a mão pela gola da minha sweat, retirou-me o aparelho do quentinho, observou-o, mudou de cor, abriu muitos os olhos e regressou seráfico de onde viera sorridente. Mais preocupado com o que tinha entre as mãos, desviei o suor febril dos olhos e então dei conta da grande novidade: nunca tinha lido a lingua portuguesa daquela forma, tão bem tratada. Guardei a entrevista e passei a segui-los de perto. Lia um, ouvia o outro. Hoje percebo o quanto cheguei tarde aos dois. E também mantenho que o cabecinha da lusofonia continua a ser quem há muito já era.

sábado, 28 de março de 2009

o corpo pode ser vestido de muitas maneiras, embora esteja sempre nu

'Starry Night', Vincent Van Gogh, 1889
I
A noite trazia promessa de ruína. Pª. recebera um presente holandês e dar-nos-ia música; I. vencera o relógio e teria mais tempo para atacar a direita. Pº. vestira o casaco mais distinto que tinha. R. jogaria sempre à bola na manhã seguinte. A noite era estrelada. Pela frente estava o bom sábado.

Deixando para trás a escuridão das poucas ruas do Bairro Alto que ainda não se encontram tomadas de assalto por feixes de nave alienígena, Pº. e R. anunciaram-se a quem por eles esperava no primeiro bar que se lhes deparou. Houve beijos e abraços; o grupo era extenso e fatiado, mas reinava o afecto. Os copos também. Era importante, sublinhou R., logo após pedir o primeiro, à saída do balcão, perceber o valor de uma taça de tinto que custe três euros, embora guardasse para si como lhe soubera bem a gigantesca pizza que comera na cidade eslovena de Kranj, em Agosto de 2007, mais ou menos pelo mesmo preço. O bar compunha-se. Enjaulada no seu canto de trabalho, muito concentrada, Pª. não sabia, mas preparava-se para concorrer com os melhores alinhamentos na história dos melhores alinhamentos que já se fizeram ouvir no Bairro Alto.

Foi isso, pelo menos, que passou pela cabeça de R. depois de ouvir Of Montreal, Nouvelle Vague, The Cure, Beirut, The Killers, David Byrne ou Vampire Weekend, entre outros, como escolhas musicais de um DJ set. Quatro horas de intensa busca pela beleza acabariam por se revelar o melhor que a noite reservou a Pª., que já fora mais feliz no Incógnito, para onde o extenso e fatiado grupo se dirigiu pelas 02:30.

II
Dona do falsete de espanto mais rápido do Oeste, I. despachava caipirinhas em bom ritmo enquanto atacava a direita - “Abaixo o capitalismo!”. Aliás, o entusiasmo de ter vencido o relógio foi tal que, poucos minutos após a segunda paragem da noite, I. já perdera as forças noctívagas, e reflectia sobre os méritos de uma terceira, que seria já em casa, de preferência a curto prazo.

O Incógnito pingava pessoas para a rua. Cheio à sexta-feira como nos sábados mais procurados. O DJ, porém, não estava especialmente inspirado, e poder-se-á dizer, sem prejuízo da verdade, que foi parcialmente responsável pelo facto de R., que se instalara nos degraus de acesso ao piso superior, junto dos amigos, ter deixado cair numa cabeça dançante do piso inferior uma de duas palhinhas com que foi servida a caipirinha que pediu quando entrou naquele bar. E alguma cachaça doce, também. Outra coisa não seria de esperar quando um público frustrado ouve os primeiros cinco segundos da canção dos Joy Division ‘Love Will tear us Apart” e, já com o coração aos pulos, percebe que se trata apenas de um sample. As três mosqueteiras que se costumam aninhar junto ao corrimão do piso superior, que dá visibilidade para a pista de dança, acharam o mesmo.

Por essa altura já Pº. tinha descaracterizado pela terceira vez, depois de virar sagres preta e caipirinha, o pacto que fizera a si mesmo antes de rumar ao Bairro Alto. “Vou beber cerveja branca a noite toda”. Encostado a uma parede, o presente holandês de Pª. sentia o sono pesar-lhe nas pálpebras. A noite já parecia longa para quem viajara da Holanda naquele dia.

III
I. reúne diversas virtudes. Entre estas se destaca a de, numa sexta-feira, conseguir sentar-se nos degraus que dão acesso ao piso superior do Incógnito, um dos perímetros com mais pernas por centímetro quadrado de que há memória - motivo para qualquer cidadão japonês corar de orgulho -, e assim permanecer, sem qualquer sapato cravado na cabeça, braços ou dentes.

Outra capacidade que distingue I. passa pela sensibilidade para avaliar engenharia e arquitectura; em determinados casos, pode levar longos minutos a oscultar uma parede, sentindo textura e estrutura, paredes como búzios, este amor. Foi o caso. Durante o tempo ganho no Incógnito, Pº. observou esse processo com atenção. Noutro plano, Pª. procurava o DJ pelo espelho, com esperanças de que este lhe visse a cabeça a abanar em reprovação.

E foi já a caminho da terceira e última paragem do agora menos extenso e fatiado grupo, a penúltima de Pº. e R. - queriam era bolos -, que este se lembrou de que jogaria sempre à bola dalí a umas horas.

sexta-feira, 27 de março de 2009

o b ficou na poeira

Somos todos extremamente fixes. Sem reparos. Temos blogues - é só verem o que para lá debulhamos. Esta página, por exemplo: é descer e encontrar New Order, Marlon Brando, a Rainha da Jordânia. Uau, né? E antes? Há 15/16 anos? Bem, já ouvia com uma regularidade preocupante o Get a Grip dos Aerosmith, e em vinil - é um facto; outro: não passava de uma paixoneta, uma distracção que nunca me desviou daquilo que me definia. E isso, a partir de 1993, foi o álbum So Far So Good (Até Agora Tudo Bem) do senhor Adams, em k7. Lembro-me de a ter comprado numa loja de discos chamada Amarelo e Preto, em Portimão, após ouvir algumas canções na MTV. Naqueles tempos - já digo 'aqueles tempos!?' - a MTV era tão fixe que parecia mentira. Quase tanto como a Rádio Cidade. Facto é que eu cantarolava o So Far So Good a caminho das coisas e a voltar delas. (Ocorria-me fazê-lo durante, também, mas por vezes tinha de dormir). Não é tudo. Entre os oito anos de idade, quando o conheci, e o ocaso da tão sábia puberdade, deixei de engolir saliva porque pensava que assim tornaria a voz mais rouca - mais parecida com a do senhor Adams. Na verdade, depois da fortuna de poder cantar o ‘Heaven' em falsete, debaixo dos lençóis, tinha por certo que o segundo grau de felicidade consistia em ouvir o ‘Kids Wanna Rock’ ao mesmo tempo que me olhava no espelho a fazer cara feia, e o terceiro em ser o João Vieira Pinto, pois julgava-o gémeo perdido do senhor Adams. Daí que, sportinguista convicto, me tenha tornado fã do então “Menino de Ouro”. Num belíssimo dia, porém, virou “Grande Artista”, e tudo se resolveu à campeão com as marradas do filho Jardel. Daí para cá os anos embarcaram de TGV. Hoje sou cool, e escrevo cool em inglês, porque é mais fixe. Ou mais cool. Como aqui o caso do amigo sem b.

quarta-feira, 25 de março de 2009

É sempre de ouvir em repeat #16

Canção: Days Without Rain
Intérprete: Patrick Cleandenim
Disco: Baby Comes Home
Data: 2007



Passo 1, atentar até aos 9 segundos deste vídeo como o realizador era fã da novela 'Vamp'
Passo 2, puxar as meias para cima nos restantes 14; ainda se bate o dente de noite
Passo 3, ler o texto que em baixo segue
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Já vejo esta canção, barroca, burlesca, belíssima, a liderar a banda sonora de um filme que o Tim Burton ainda fará, talvez animado, decididamente cómico – mortalmente cómico -, a enfiar este violino fantasmagórico pelo hemisfério direito do espectador anónimo, onde se tranca à chave, repetindo em eco, com gargalhada, que é lá em baixo que a malta se diverte; entra de mão dada com o piano teimoso assim que um escritor descabelado atira um avião de papel à cabeça da amante, mal o sentimento de culpa a expulsar da cama, porque o marido até tem bom coração; o avião falha o alvo pretendido e despenha-se de nariz no cemitério que é o balde do lixo, de onde já não saem as letras que o escritor empenhara - tripulantes que a bordo ajustavam contas com o amor, ou qualquer coisa.

segunda-feira, 23 de março de 2009

É sempre de ouvir em repeat #15

Canção: Ceremony
Compositor: Ian Curtis
Original: Joy Division
Disco: Still
Data: 1980
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Versão: New Order (1.º single, 1981)
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Aquela coisa de não se discutir gostos pode ser discutível. Tentar ouvir isto sem tac-tac-tac com um dos pés e a cabeça a aprovar repetidamente é que não.

sábado, 21 de março de 2009

O curto voo de Nathan Fake

A tão aguardada estreia do inglês Nathan Fake em Portugal, na discoteca Lux, em Lisboa, teve momentos de absoluta comoção. Um final precoce, também. Cerca de 80 minutos de actuação soou a pouco para muitos dançarinos. Less is more, sentiram outros. O saldo pede mais.

Uma rápida pesquisa no YouTube pela faixa ‘Long Sunny’, do primeiro trabalho de fôlego de Nathan Fake, Drowning in a Sea of Love, de 2006 (8.4/10 pela Pitchfork), leva-nos a um vídeo amador onde se poder ler um comentário publicado em inglês. Tradução: «Esta canção lembra-me a primeira vez que matei alguém».

Não é caso para tanto. Os instintos que na madrugada de sexta-feira se enraizaram nos pés dançantes da Lux – semi-vestida durante a hora e vinte minutos que durou o live act do prodígio de Norfolk, Inglaterra – ficaram-se, quando muito, por um estado inócuo.

Há uma dimensão vertiginosa nas composições de Nathan. Aos 25 anos, recusa ser rotulado de DJ, e percebeu-se com que autoridade. Alguma crítica especializada acusa-o de actuações para dentro, desfasadamente experimentais, de esquecer as pessoas.

Pista rendida
Pouco disso, porém, se viu no piso inferior da Lux. No primeiro minuto de actuação já Nathan Fake mostrava ao que vinha, arrasando a pista com minimais linhas de percussão e de synth, entrecruzadas, em muitos casos, pelo elemento humano: samples vocais. Mosaicos acriançados, desfeitos; de olhos fechados, celebrou-se na Lux um febril adeus à juventude.

Protegido do príncipe do minimal, James Holden, por cuja editora gravou o primeiro longa-duração, e verá chegar aos escaparates o segundo, Hard Islands, em Maio, Nathan, que nasceu e cresceu a leste do fervilhar electrónico de Inglaterra, longe da agitação, faz música idealista, de olhar positivo, quase ingénuo, estancado no horizonte, desenhando paisagens verdejantes, intermináveis, a fugir da cidade.

Pontos altos da madrugada, ‘You are Here’ (Drowning in a Sea of Love), de uma pacífica percussão à triunfal tempestade eléctrica das teclas Casio, e ‘Underburg’ (EP Watlington Street, 2004), onde se trilha os caminhos do house progressivo, são faixas com algo de primitivo – e, por isso, de fuga.

A actuação de Nathan Fake na sala de Santa Apolónia teve o mérito acrescido de ter escapado a momentos bocejantes, mesmo desdenhando o muito pedido single de 2004, ‘The Sky was Pink’. No final, insaciável, o público pediu o que não teve: mais.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Aumentar o som, inspirar fundo, play



Charlie: Look, kid, I - how much you weigh, son? When you weighed one hundred and sixty-eight pounds you were beautiful. You coulda been another Billy Conn, and that skunk we got you for a manager, he brought you along too fast. Terry: It wasn't him, Charlie, it was you. Remember that night in the Garden you came down to my dressing room and you said, "Kid, this ain't your night. We're going for the price on Wilson." You remember that? "This ain't your night"! My night! I coulda taken Wilson apart! So what happens? He gets the title shot outdoors on the ballpark and what do I get? A one-way ticket to Palooka-ville! You was my brother, Charlie, you shoulda looked out for me a little bit. You shoulda taken care of me just a little bit so I wouldn't have to take them dives for the short-end money. Charlie: Oh I had some bets down for you. You saw some money. Terry: You don't understand! I coulda had class! I coulda been a contender! I coulda been somebody!, instead of a bum, which is what I am, let's face it. It was you, Charlie.

"Sorte Gaiola"

"Depois de no sábado, Francisco Matias, um jovem de 25 anos ter sido colhido violentamente num treino do Grupo de Forcados de Portalegre, foi confirmada hoje a morte deste forcado que estava internado no Hospital de São José. Francisco Matias não resistiu a um forte traumatismo craneano sofrido enquanto executava uma "sorte gaiola", pega à saída dos curros, num treino do seu Grupo. Mais uma morte sem justificação, num espaço de 20 anos é o sexto forcado que perde a vida. A vida foi curta para Francisco pedimos a Deus pela sua Alma força aos familiares, amigos e Forcados de Portalegre. Passe esta mensagem em homenagem ao Francisco.
Descança em Paz....."

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Chegou hoje à redacção do Castelo esta mensagem de homenagem ao malogrado Francisco Matias. Uma vez que o seu autor ainda não foi capaz de perceber em que parte do texto que redigiu se explica a origem da tragédia - "mais uma morte sem justificação", pode ler-se -, achei por bem lançar a dúvida aos nossos leitores, ficando desde já claro que preferia, evidentemente, não ter de o fazer. O objectivo é o melhor: ter a esperança de que, por alguma feliz coincidência, não se chegue a lamentar a morte de um sétimo forcado.

Isto aconteceu porque ...

A) Deus sentiu que tinha chegado a hora do Francisco.

B) Já tinham morrido cinco forcados sem justificação;

C) O Francisco tentou agarrar um animal de 500 kg que ficara preso num buraco escuro durante horas e, mal se viu em liberdade, ferido pela luz, investiu no primeiro alvo que se lhe deparou.

terça-feira, 17 de março de 2009

Aqui ela é a mais bonita; o leitor poderá concordar

Crédito: Miguel A. Lopes/Lusa

Jorge Sampaio, ex-Presidente da República portuguesa
Cavas, aqui entre nós, que a rainha não entende: já tinhas apertado a mão a alguma mulher assim? Também senti os ossinhos a muitas, aí desse lado, mas nunca foi coisa que se parecesse.

Cavaco Silva, Presidente da República portuguesa
Uh, em boliqueime havia uma, uh, mas com bigode; olha-me pra este pescocinho de galináceo, uh - é melhor 'tar calado que ontem à noite a maria já me deu um coice.

sábado, 14 de março de 2009

E depois do adeus (há o Lux)

Pintura: Le Moulin de la Galette
Artista: Pierre Auguste-Renoir
Corrente: Impressionismo
Data: 1876
Casa: Museu D’Orsay, Paris

O adeus é uma declaração de intenções que P. compreende estar sobrevalorizada. Chega a recusá-la. Daí que, nos tempos da faculdade, depois de um longo jantar boémio, P. preferisse dar continuidade à manhã quando os amigos devolviam os respectivos pés às pantufas, sobre o pretexto de que aqueles já se queixavam, de tão doridos. Sobre estas e outras coisas se debruçava P., luz das letras, poeta urbano, dandy, quando, a seu lado, I., muito atenta - acabara de o conhecer -, não deixou de verbalizar o espanto que se lhe assomou quando de P. ouviu: «Pá, ia para o Lux sozinho. Mas não era para o engate».

I. – (chocada) Que é que ias fazer para o Lux sozinho.?’????
P. – (contra-chocado) Dançar!

quinta-feira, 12 de março de 2009

O Paul McCartney já deve ter parado em Carnaxide

- Pedro, se tivesses que definir o som do concerto que estes passarinhos estão a dar (o melro da foto podia dar lugar a um pardalito ou a um tordo, soubesse eu quem cantava), como é que o farias?
- Epá, parece vindo daqueles spas.
- E tu? - perguntei ao meu homónimo do marketing.
- Pra mim é música de elevador. Porquê, 'tá a irritar-te?
- Pelo contrário, prefiro isto a muitas bandas.

(Para mais informações, ver aqui).

segunda-feira, 9 de março de 2009

Bogotá dos pequeninos


O senhor barbosa não gesticula quando se expressa, mas fá-lo com os olhos muito esbugalhados; talvez por isso force uma atenção dos seus interlocutores que verdadeiramente não está a ter. Fumava ao meu lado, muito, tanto, e notei-lhe a atenção dividida: encaminhava as palavras para mim, que o ladeava, a par do meu irmão, mas concentrava o olhar nos movimentos precipitados de um grupo de quatro mulheres que haviam chegado àquele irish pub há poucos minutos, e se havia aninhado ali junto a nós, o que despertou um sentimento de repentino entusiasmo no outrora entristecido anfitrião do karoke. De coração espaçoso, o carlos é primo do jorge palma, e já teve piada, mas apaixonou-se, de modo que perdeu-a – está ainda no first flush com a companheira, é o paraíso, e teme-se que um dia lhe dedique um tema do joão pedro pais.

Com o empenho dos bons, o senhor barbosa relatava-nos de que modo iniciara a sua manhã de quinta-feira. «Fui levar a minha mulher à escola e eles ainda lá, parados à porta do continente. O comandante da PSP de Portimão disse-me que, no total, chegaram a estar lá 70 polícias». A fonte policial lamentou ao senhor barbosa que, estando devidamente protegidas as saídas pelo terraço, frente e traseiras, os seis encapuzados que assaltaram a ouriveraria do continente, em portimão, se tivessem lembrado de fugir por uma das várias portas de saída que o parque subterrâneo de estacionamento propicia - hipótese que escapou a todos os elementos das forças de autoridade envolvidas, que chegaram a disparar para o ar, atingindo de raspão o bico de uma gaivota distraída.

Juntando-se à conversa, com sinais de evidente desconforto estampados no rosto, após uma noite mais longa, o barman Ricardo vestia o mesmo casaco de ganga que trajara na véspera, e também tinha algo a dizer. Contou ter saído da Praia da Rocha «às 07h, todo de lado», e, a caminho de casa, ter reparado num «aparato descomunal» junto ao continente, com ruas fechadas e um polícia em cada buraco. O Ricardo confidenciou-nos o quanto achou por bem, no momento, travar o carro junto de um polícia e perguntar-lhe que raio se passava.

«Não posso dizer, isto é um assalto», ouviu de resposta, enquanto se aproximava da zona vedada, em marcha lenta, logo pedindo licença a um outro agente para lhe deixar passar rumo ao epicentro dos eventos. «Faça favor, colega», ouviu o Ricardo, agradecendo por entre soluços e ameaças aziagas de um sempre inoportuno vómito.

quinta-feira, 5 de março de 2009

É sempre de ouvir em repeat #14

Tema: Swing
Músico: Django Reinhardt
Disco: Jazz in Paris
Gravação: 1939



Disgusting things are going on, disguised as 'entertainment'. We have no sympathy for fools who want to transplant jungle music to Germany. In Stettin, like other cities, one can see people dancing as though they suffer from stomach pains. They call it 'swing'. This is no joke. I am overcome with anger. These people are mentally retarded. Only niggers in some jungle would stomp like that. Germans have no nigger in them. The pandemonium of swing fever must be stopped… Impresarios who present swing dancing should be put out of business. Swing orchestras that play hot, scream on their instruments, stand up to solo and other cheap devices are going to disappear. Nigger music must disappear. Do amoroso senhor ‘Buschman’, nome com que se intitulou o autor deste amoroso artigo, publicado a 6 de Novembro de 1938 num amoroso jornal de Stettin, ontem Alemanha, hoje Polónia, se espera que não fosse exactamente um apreciador do belga Django Reinhardt, um dos mais aclamados guitarristas de jazz de sempre, que exibia um bigode minhoca e era pouco ariano, no sentido em que nascera cigano. Raciocino, talvez com prudência: Se o swing possuía de raiva o senhor ‘Buschman’, talvez este, por força da sorte, pudesse ter caído nas boas graças do senhor Goebbels, que durante a II Guerra baniu o jazz, empacotando-o como “americano nigger kike jungle music” - “um ruído irritante, politicamente inaudível”. Tendo sido o senhor Goebbels ministro da propaganda do senhor Adolfo no III Reich, não será despropositado pensar que os dois, juntamente com o senhor 'Buschman' - homem Bush, em inglês -, se poderiam entender muito bem nas mais descontraídas horas de lazer, e que a nenhum eu convidaria para a consoada lá de casa, que eu e o meio tio procuramos transformar numa festa de pessoas que dançam como se tivessem dores de estômago, mas, dá-se o caso, apresentam um ar menos enjoado do que se adivinharia.

quarta-feira, 4 de março de 2009

O Vaticano está preocupado com os camionistas, alas


Conduzir um camião por essa estrada fora pode ser um acto profundamente solitário, mas os camionistas não estão sós: terão sempre o Vaticano.

Exausto, no fecho de um árduo dia de reflexão e pesquisa sobre o paradeiro de Deus, de quem se diz estar de férias, o secretário do Conselho Pontifício Para A Pastoral Dos Migrantes E Itinerantes Que Anualmente Congratula Através De Grandes Farras Ecuménicas Realizadas Nas Humildes Mas Acolhedoras Fronteiras Da Santa Sé Os Muito Devotos Peregrinos A Fátima Que Prudentemente Se Engasgam Nas Pragas Que Rogam Sempre Que Acordam Depois de Sonhar Com Joelheiras, Arcebispo Agostinho Marchetto, com dois tês, fez saber ao mundo que o Vaticano, nomeadamente o Papa Bento XVI, está atento às dificuldades da boa e fiel paróquia camionista, que chega a percorrer em 15 dias o eixo Fátima-Compostela-Roma-Fátima sem dormir, com um olho na estrada e outro na cruz pendurada ao espelho retrovisor, a dar, a dar, e que o acaso por vezes faz cair em cima de uma notável colecção de revistas J, religiosamente empilhadas da primeira à última edição no tablier do camião, de modo a fugir de sonhos, sobretudo dos que envolvam joelheiras.

“Aqueles que realizam viagens longas enfrentam um vasto leque de desafios e problemas que requerem uma aproximação pastoral diferente e específica. Esses problemas são essencialmente físicos, pessoais, morais, sociais, introspectivos, económicos, políticos, intestinais, culturais e espirituais. Essencialmente, só para sintetizar”, concretizou o prelado.

segunda-feira, 2 de março de 2009

O filme do mini vermelho

Filme: Quatro Casamentos e um Funeral
Realizador: Mike Newell
Data: 1994




Se pouco recordo a partir dos 15 anos, há coisas daí para trás que permanecem bem frescas cá dentro. A primeira vez que fui ao cinema é uma delas: foi em 1994, num cinema de lagos, e lá conheci o irremediavelmente bêbado e generoso gareth (simon callow), do filme 4 casamentos e um funeral; foi o meu primeiro ídolo do grande ecrã, logo seguido do padre gerald (rowan atkinson), do desastrado charles (hugh grant), e do carro da scarlett (charlotte coleman) - um mini vermelho que fazia muito barulho, e a todos ultrapassava e corrigia enganos na estrada em contra-mão. De tanto rir nessa noite furei uma pequena cova na bochecha esquerda; depois fiquei a saber como funciona isso das primeiras vezes quando o argumentista achou por bem matar o gareth de dança escocesa.

(vá, menos mau).

Assim se terá começado a espreguiçar a minha pacata esquizofrenia. Nunca te perdoarei Richard Curtis! Fora a intenção de um dia resolvermos isto num duelo - revólver no colete à cintura, uma bala, dez passos e disparar -, prevalece a boa onda deste filme. Nas minhas patológicas buscas por novas estórias, li algures que o orçamento era tão baixo que o casamento escocês não se realizou na Escócia. Declaro oficialmente corrigido, com o casamento errado, esse lamentável engano. Chega a casa, 15 anos depois, a poupa do hugh grant que nunca viu um pente. À Escócia o que é da Escócia.