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segunda-feira, 26 de março de 2012

Ser português é tocar a gaita


O dono de um dos cafés da avenida Morais Soares é um antigo polícia militar que não sabe falar inglês mas já me revelou que só vê os noticiários da euronews e da CNN. “Eu percebo tudo, esteja descansado!”, garantiu-me, de indicador em riste e tacha arreganhada, respondendo à pergunta que não cheguei a fazer.

Aproveitava o primeiro de dois dias de folga accionando o modo inútil. Levantei-me tão tarde quanto possível, tomei banho, escovei os dentes, desodorizante, vesti uns trapos, dedos no cabelo, desci a rua a dois à hora, fiz covinha para a morena apressada em contramão, tratei de assuntos de Estado com o sportinguista do talho – “a ver se comemos os ucranianos na quinta!” -, comprei o jornal, entrei num café, escolhi uma mesa mais para lá, pedi o almolanche.

Naquele dia a maioria dos jornais dava à estampa a cobardia: um polícia batia numa repórter de imagem na rua Garrett. Escolhi o “i”. Lá dentro explicava-se a história. Ela queria documentar para a AFP a manifestação "anti esta merda toda" associada à greve geral de 22 de Março. Ergueu a objectiva. Fitou o alvo. Disparou. Flash! Flash! Flash! Ele, um agente da autoridade, ou alguém de cima, muito célere a dar ordens, achou desapropriado ela querer documentar a carga da polícia de choque em tudo o que encontrava - nem mulheres curvadas pela idade foram discriminadas, a bem da igualdade de direitos. A primeira bastonada deitou logo a fotojornalista por terra. Um manifestante saiu das “trincheiras” e socorreu-a. Ajudou a levantá-la. Ela sacou da documentação devida e identificou-se ao mesmo polícia, que não gostou da afronta. Zás!, segundo golpe e jornalista de novo ao chão, amparada pelo próximo namorado.

Ao chegar à minha mesa com um galão numa mão e manteiga com pão torrado na outra, o dono do café fez o seu juízo de valor sobre os acontecimentos. “O que falta a estes polícias novos é formação! São mal formados! Não tenha dúvidas!”

Fitei-o e concordei o concordar discreto da cabeça. Uma vez. Outra. Na verdade não fiz outra coisa durante a hora em que ali estive - ouvir e assentir o que dizia o bom do ex-militar, um tagarela natural da terra do Salazar com opinião formada sobre as causas e os efeitos do mundo, cabelo para fritar batata, olhos pequeninos, estômago dilatado e coração bom.

À minha frente um senhor com o aparato modesto dos filósofos lançava retórica em desânimo: “Pensei que tinhamos feito o 25 de Abril para acabar com isto...”

Ocupávamo-nos do duelo do bastão contra a máquina fotográfica até que entrou o Doutor e sua companhia de ocasião. Para ela, quase 50, que trazia um casaco de pele comprido e cheirava a cabeleireiro, uma cerveja; para ele, quase 60, desvio colossal entre os dentes, cabelo cor de algodão, bem puxado para trás, um daqueles remédios servidos em copos pequenos que curam gripes.

O dono do café falava comigo por cima do ruído, espreitando a minha reacção. Quando eu não acenava ele falava mais alto e concluía com um, “está a ver ou não está?”

“Estou, estou sim chefe! Vejo tudo!”, respondia eu, passando rapidamente os olhos por uma notícia na tentantiva em vão de ter tempo de a compreender.

No entretanto, mais animado pelo remédio, o Doutor sacou de uma gaita que trazia no bolso do casaco onde outros guardam cigarros e tocou de forma brilhante “Ó rama, ó que linda rama”. Desisti do jornal. O jeito do Doutor para o improviso era notório e por isso recebeu ainda mais aplausos do que seria de esperar, além de um elogio em particular.

“Também toca ópera, isto serve para tudo!”, disse a senhora que o acompanhava, aludindo aos méritos da gaita do Doutor.

A agitação no café chamou a atenção de vários transeuntes, nomeadamente duas mulheres e um rapaz de traços asiáticos. O grupo entrou. O Doutor ganhava plateia e ofereceu nova interpretação de um tema histórico do cancioneiro português, “A azeitona já está preta” - este, como o outro, da autoria do compositor popular Arlindo de Carvalho, jurava-me o dono do café a pés juntos.

Uma das mulheres recém-entradas estava encantada com a gaita do Doutor. “Isto é que é nível, tão bom! Isto é que é ser português!”, dizia, aplicando valentes safanões ao imperturbável amigo asiático. Este pouco compreendia aquilo que o rodeava mas isso não parecia roubar-lhe a satisfação serena e improvável de estar naquele sítio, àquela hora.

O Doutor continuava a empenhar a gaita com muito talento e recebeu nova salva de palmas pela actuação sem reparos. Depois prometeu ao dono: “Amanhã já trago dinheiro!”. Foi com saudade que se despediu das pessoas. E foi cortês à saída. “Tu primeiro, minha querida”, disse, adorando as formas da companhia de ocasião. O dono procurou-me do balcão. “Este senhor é advogado mas brinca com a vida, qual é o mal?”

"Mal nenhum, chefe!". Sorri e pedi a conta.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Em Portugal já ninguém compra discos, pá!, o tuga grama é música estrangeira, portuguesa só a sacar da net, pá!, não se apoia o que é português, não se gosta do que é nosso, pá!


Um robalo e quatro cervejas depois, eu e um amigo, que poderia até ser talhante mas passa por ser camarada jornalista, chegamos à porta do Musicbox, meia hora antes de começar o concerto d’Os Velhos. Preço: dez euros; prémio: espectáculo musical e novo disco da banda. Chego-me à frente.

- Olá.

- (Segurança do Musicbox) Boa noite, que desejam?

- Viemos ao concerto.

- Esgotou.

- Esgotou?!

- Esgotou.

- Esgotou quando?!

- (Badameco da organização antecipa-se) Esgotou esta tarde.

Aproximam-se duas miudas giras. Chegam à porta de entrada e a conversa repete-se. Entristecem, mas deixam-se ficar por ali, junto ao segurança e ao badameco. Uma das miudas suspira e enrola as pontas do cabelo com a ajuda do indicador, uma e outra vez; a outra está impaciente e faz sinais difusos. Tento processar que tipo de mensagem transmite mas faltam-me códigos e leituras. Já afastados da fila, eu e o meu amigo avaliávamos as nossas opções. Compreendemos que não as tinhamos. Nada a fazer: não há contactos. "Vamos subir para a bica." Quem não arredava as ancas dali eram as miudas giras. Continuámos atentos às movimentações. Uns minutos. A dada altura desistimos. Bica. Um, cinco, dez, vinte metros à frente dou um toque no ombro do meu amigo e sugiro-lhe que se vire e note até que ponto as miudas ainda estão onde estavam, se tudo estava como esteve.

- (O meu amigo) Não as vejo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

No país dos medalhados

A penny for a thought.