segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Aqui oficial esmerado: quer fumar, vá para outro lado

Momento solene: sr. Luís a colar-me as botas

Paredes meias com uma drogaria e de frente para uma loja de artigos de equitação é possível encontrar a oficina do sr. Luís. Ao contrário de outros sapateiros de Portimão, mais folgados, o sr. Luís está sempre disposto a cozer, apertar ou endireitar, serviços que não compensam o trabalho que dão, mas, também por isso, segundo se diz, até de Monchique o procuram.

A oficina é afunilada e permite-lhe movimentar-se na medida de três passos para a frente e dois para os lados. Nós, os clientes, podemos rodar sobre nós próprios. O resto será pisar clientes. Sabe quem já lá foi que à terceira pessoa da fila já caberá um dos pés na rua, e, nos dias de maior procura, os mais desprotegidos da sociedade aproximam-se da entrada sob a ilusão de que estará alguém por ali a oferecer dinheiro - não encontram outra explicação para tanta gente junta.

A decoração do espaço reflecte o carácter interessado do sr. Luís. A cercar pilhas de sapatos, leis de bom senso dominam as paredes laterais; a parede dos fundos é controlada pelo olhar fixo da loira do mês de Dezembro; um casal de periquitos assobia à entrada.


O Sr. Luís vê num povo ignorante um povo inútil. É um comunicador e um agitador. Tão certo será vê-lo aceitar todo o tipo de encomendas como a não ter tempo de as aviar no prazo devido, tal o tempo que lhe levam os insistentes apelos à consciência colectiva, contra o poder da sociedade conservadora. Interessou-se por mim quando lhe mostrei as minhas botas e respectivas mazelas. Acrescentei que era jornalista. Sugeriu-me que pensasse mais no associativismo, pois só assim poderia a imprensa resistir ao patronato corrompido, e daí saltou para a valorização de uma boa leitura destes tempos com base na Revolução Francesa. Já o sr. Luís acabava com o Estado Novo quando uma cliente que esperava há três dias por um par de botas lhe perguntou se estaria a ser gozada por ele, tal o atraso na entrega. Foi secundada por um senhor até aqui pacientemente sentado à entrada.

"Ó homem deixe lá o Salazar e arranje as botas!", pediu o senhor sentado, que depressa se virou para mim e aplicou-me um safanão de cotovelo. "Não vê, não vê que ele fala com os dedos?".

A cliente insistia em pedir explicações ao sr. Luís pela demora, o que deixou o sapateiro menos animado para discorrer sobre a Revolução Francesa do que para cozer e endireitar. A reprimenda surtiu efeito e em menos de nada tinha as minhas botas de volta, como novas. O custo de tanto cortar, apertar e colar: 4,5 euros.

Despedi-me com afecto, às cabeçadas com a minha consciência colectiva.