terça-feira, 29 de maio de 2012

A S. janta a couve do caldo verde

A S. cruzou o Atlântico até aos Açores para cobrir um torneio de golfe, modalidade de que gosta e entende tanto como eu de curling, mas a experiência correu tão bem que um responsável da organização não demorou muito a oferecer-lhe emprego na ilha. Ela adivinhou-se a ordenhar vacas como passatempo e rejeitou amavelmente: "Não sei falar açoriano". Entre escalas, a custo, a S. conseguiu meter os pés em Lisboa e deixou-se raptar por mim algumas horas antes de apanhar o voo de regresso a Nova Iorque, onde reside vai para cinco anos. Há mais de um ano que não vinha cá e a oportunidade de passar em Portugal caiu-lhe no colo sem que ela própria a visse chegar. Mais tarde, já com os lábios cor de vinho e o toque fácil, lamentou não ter tido a oportunidade de se ter reunido com os amigos - a S. deixou por cá uma legião de gente que se importa com ela e só a evoca para dizer bem. Não lhe vão perdoar quando souberem. Quando a fui buscar ao prédio dos pais, à  00h30, apareceu com as botas pretas de biqueira de aço que em tempos levou para os festivais. Confessou-me que não as metia nos pés há 15 anos. "Não tinha mais nada aqui em Lisboa!", acrescentou. Abracei-a e ela pediu-me para arrancarmos logo que possível, já que o pai estava à janela, a ver tudo. Inclinei a cabeça e procurei o vulto. Encontrei coisa nenhuma mas acenei na mesma, de tacha arreganhada. 

Vadiar a um domingo é outra coisa. O recolher não é obrigatório, mas toda a gente o pratica. Ou quase. Chegados ao Cais do Sodré percebemos que apenas um bar estava aberto, concretamente por mais quatro minutos. Pensei em alternativas e lembrei-me do Arte & Manha, no Conde Redondo na Duque de Loulé - espécie de open space das ideias povoado por almas desassossegadas numa zona onde o comércio da carne flui p'ra xuxu. Seguimos para lá e ocupámos uma das mesas grandes. Ali perto estava o António Zambujo a falar com duas miúdas giras e ocasionalmente com um barba branca de meia idade, talvez sem abrigo, que a vida apressou a disfarçar de idoso. O ambiente era acolhedor. Pedimos vinho tinto. Ao segundo copo já o JP Simões andava também pelo espaço, com aquele ar muito curioso sobre tudo de todos nós. Ao mesmo tempo a mãe da S. começou a enviar SMS sublinhando a irresponsabilidade da filha por se deixar levar por "homens da vida" como eu. Ríamo-nos muito e picávamos a mãe da S. para ver que outras pérolas dali sairíam. Em nosso redor havia cada vez mais gente. Às três da madrugada já o bar estava cheio. Um rapper anónimo de perna engessada coxeou até ao palco e improvisou ao microfone. Seguiu-se o DJ, que revelou um jeitinho tremendo para medir o ambiente e manipulá-lo. O melhor do soul e do hip-hop, delícia. Dançava-se e bebia-se em bom ritmo. Um grupo de americanos recém-chegado fazia barulho acima da média. Um português pediu a duas das americanas para se beijarem e elas fizeram-lhe a vontade. Demoradamente. Daquele grupo saltou outra americana para a pista de dança. Com gosto ouviu a cantiga do bandido entoada por um rapaz que a impressionou pelo gingar de ancas. Percebi que ela mataria por amor. O barba branca vagueava pelo bar a alta velocidade e intervinha com autoridade nos assuntos alheios. Eu ouvia atentamente a S., que naquela noite voltou a fumar, quatro meses depois do último cigarro. Ainda lhe fiz cara feia mas ela prevaleceu, hábito que se aplica a outras coisas, caso da alimentação. Naquela noite ela tinha jantado a couve do caldo verde - "não gosto do caldo" - e "uma salada muito boa, só com alface, mas com a quantidade certa". Ainda pedi "frango à Arte & Manha", que é o mesmo que dizer "Frito que dói, Foda-se", a ver se ela mordia uma coxa, mas a S. não vai por aí. O que não deixou de fazer foi encher a cara de vinho e, claro, fiz-lhe companhia. A mãe da  S. aparecia de quando em vez no telemóvel em modo letras. Perguntava se já não era suficientemente tarde para a filha estar na companhia de quem "não vai longe por viver na noite". A mãe da S. é um espectáculo. Recordámos o que nos une e fizemos planos. Lembrei-lhe o quanto a admirava enquanto oráculo. A S. fala de coisas que estão anos à frente de acontecerem. O que ela diz, escreve-se agora para compreender depois. Deve ter sido a S. que pela primeira vez classificou o Wes Anderson de génio, ela que sempre preferiu filmes de comédia muito ao contrário da grande manada dita 'alternativa', a quem chamo de 'prioritária'. Hoje toda a gente fala do Wes Anderson, mas a S. viu primeiro. Ainda havia a esperança de que ela conseguisse adiar o voo. Nesse cenário, estava em discussão a hipótese de repetir a desculpa da última vez, quando ligou para o trabalho, em Nova Iorque, a dizer que tinha de ficar em Portugal mais um dia porque tinha apanhado muito sol.

Já com a noite branca e passarinhos a cumprimentar vadios e vespertinos, desviei-me de um grande monte de merda que pontificava na calçada antes de rodar a chave na fechadura do prédio. Entrei, com jeitinho, e ao papar degraus rumo à minha porta levei as mãos ao nariz, em concha. Puxei todo o ar que pude e confirmei: o cheiro ainda estava lá. O de sempre.

domingo, 27 de maio de 2012

"Só queres saber de livros e poesia!"

O N. tem várias características boas, mas nutro um especial carinho pela capacidade de dançar como se estivesse a aviar uma moça ao pé coxinho e, mais importante, de dizer quase sempre o que pensa, a menos que se tenha de expressar num idioma que não o português. Aí retrai o discurso, não diz coisa. No máximo sai-lhe uma ou outra mentirinha, coisa hormonal, sem maldade. No dicionário do N., por exemplo, 'casaco' é sinónimo de 'empecilho' para um homem, ainda que em noites frescas. Pele tapada abaixo do cotovelo é para meninos, defende o N, dono de um pequeno ginásio em casa.

E foi no português muito próprio dele, em que faltam pernas aos bois para acompanhar a carroça, que ontem me explicou ser uma seca sair comigo. Acusa o N.: "Só queres saber de livros e poesia!". Senti-me um pouco incomodado, confesso. Não sei o que o levou a esquecer-se de mencionar o Sporting. E vinho. E orégãos. E mulheres bonitas a tentar recuperar o ar. E meter a cabeça do lado de fora da janela do carro para levar com o vento em cheio na tromba quando regresso a casa de noitadas em que me desorganizo com copos. Ontem fui de facto apanhado em flagrante delito: levei-o, juntamente com outro amigo nosso de infância, o M., a beber cerveja e ouvir Smiths no bar do Miradouro de São Pedro de Alcântara. Sentado, agarrado ao i-phone, onde começava a meter-se com uma miúda que não conhecia, via Facebook, o N. teve resposta na ponta da língua ao ser por mim confrontado com a ampla probabilidade de arder no inferno por estar a ignorar a melhor vista sobre Lisboa. "Vês, cultura!!"

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Arrancar pela raíz



Diferente de tantos discos de canções que dizem tanto e tão pouco, sabemos de que fala o novo dos Diabo na Cruz: de um país, o nosso, para sempre adiado. 'Sete preces' cruza rock e tradição que é uma alegria. 'Luzia' é um flamenco para arrepiar daqui a 20 anos, como há dias me arrepiei ao ser surpreendido no rádio do carro por uma música dos Sétima Legião ('Por quem não esqueci'). E macacos me mordam se não oiço ali castanholas, Jorge Cruz! 'Fronteira' é uma aflição, linda de morrer, balada à Fleet Foxes se estes musicassem a causa (desemprego) e consequência (emigração) de tanto português. Devia passar no Telejornal com a mesma atenção com que foi noticiado o fenómeno 'Parva que Sou' dos Deolinda. "Roque Popular" é filho deste tempo, um disco pessoal e transmissível, um perpétuo sobressalto. Amem-no.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Querido carro, gosto muito de ti

Faço-me à estrada rumo ao trabalho e no fim da rua topo um senhor estendido no passeio, de nariz para cima, inerte, pés alinhados. Saco do ponto morto e abandono o carro. Corro 20 metros para acudir o senhor, ou qualquer coisa assim. Do outro lado do passeio três putos de mochila às costas travam o passo e observam. Hesitam, mas aproximam-se. Meios passos. A medo. O senhor estatelado veste uma camisa branca para dentro das calças e traz uma boina. Noto-lhe cor. Abordo-o.

- Chefe, está bem?
- (...)
- Chefe, fale comigo!
- (...)

O senhor não responde mas tira as mãos do sítio. Uff.

- Consegue levantar-se? - pergunto-lhe.
-  (ic!) Não.

Os três putos ajudam o senhor a levantar-se. O senhor agradece.

- Obrigado (ic!)
- Menos pinga, chefe, hein? - sugiro.
- (ic!) – devolve o senhor.

Inverto a marcha e encontro mais gente em redor do meu carro do que havia junto ao senhor até há pouco estatelado no passeio. Percebo que se abana ligeiramente. (O meu carro). Entro.

A chave estava na ignição. O motor nunca deixou de trabalhar. Ocorre-me um pensamento: “foda-se.” Inspiro fundo e empurro o manípulo das mudanças. Primeira. Sigo. Passo por um homem descabelado que me fita de olhos esbugalhados. Por momentos contemplei a hipótese de sintonizar o rádio na RFM - talvez estivesse a passar João Pedro Pais.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Atrás da beleza até ao fim

Bernardo Sassetti (1970-2012)

"Morrer a fotografar numa falésia" devia dar entrada nos dicionários portugueses enquanto expressão sinónima de "cúmulo da dignidade".

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Irra, que gata



Quando a Norah Jones apareceu, há dez anos, andava eu a namoriscar a minha melhor amiga. O álbum de estreia dela (Come Away With Me, 2002) foi muitas vezes a nossa banda sonora no Golf azulão TDI do meu pai, que pedia para levar sempre que a ia buscar a casa, pois tinha um aparato diferente do Clio branquinho cof cof da minha avó - era esse que na altura conduzia. Ela gostava e eu também. (Da  Norah). Daí para cá a minha melhor amiga já se casou - não, não foi comigo - e a Norah Jones tem feito o que pode para apagar a estrita imagem de carinha laroca que faz jazz para burguês adormecer. Percebe-se que pretende ganhar a atenção dos melómanos, ela que já tem a do grande público e respectiva crítica (só em Grammys já vai em 12). Nesse sentido, o quinto disco Little Broken Hearts, nas lojas há poucos dias, é o maior passo rumo ao reconhecimento desse tal público mais exigente. Verdade seja dita que a garota de 33 anos a caminho dos 18 também colaborou com as pessoas certas: Brian "Danger Mouse" Burton é o responsável pela produção do novo álbum, por exemplo. No seu melhor, sem ser tremendo, Little Broken Hearts deixa água na boca. Há aqui um certo tipo de rock a dançar entre vulnerabilidade e mau feitio, dois lados de uma moeda chamada 'perda'. O jazz de restaurante de hotel, esse, ficou à porta. Podemos ouvir Norah Jones dizer à 'Miriam' que a vai matar por amor, o que no caso é dizer que não lida bem com a 'dor de corno'. É um dos melhores temas do disco e encerra com a simpática estrofe,

You know you done me wrong
I’m gonna smile when
I take your life
Mmm, mmm, mmm.

Gosto também muito da faixa cinco, 'Take it Back'. Pop fumarenta, exposta, com direito a reverb na voz da Norah Jones e um teclado emprestado aos Coldplay. Agrada-me que a voz da Norah Jones não esteja sempre presente. O remate do disco é muito forte, com a já mencionada 'Miriam' e, por fim, 'All a dream', sendo que esta foi a primeira música do novo disco que ouvi. Tem ali uns segundos arrasadores, cortesia de um violino. 


Claro que vamos sempre dar ao mesmo, à voz meiga, um pouco aborrecida, da Norah. Cante o que cantar parece que nunca se passa nada com ela. Mas as conquistas da filha do Ravi Shankar estão aí para serem aferidas, na certeza porém de que este post só existe porque não resisti à tentação de mostrar a soberba capa do disco, inspirada no poster do filme Mudhoney (1965), de Russ Meyer.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

San Mamés é outra coisa


Redes de galinheiro e ao fundo, à direita, pilares assentes no meio da bancada, old school

Algures durante quatro anos na Católica a tirar comunicação fui à mesquita de Lisboa entrevistar o sheik David Munir, o imã local, a propósito de um qualquer trabalho. Comigo estavam dois colegas de turma: um de Setúbal, outro de Vila Viçosa. Provavelmente os meus dois grandes amigos do início ao fim da Universidade. O sheik Munir já estava à nossa espera e recebeu-nos com afecto. Conversámos durante horas, os quatro. Entusiasmados, curiosos, nós, miúdos, batemos o recorde mundial de perguntas no menor espaço de tempo, mas o que até hoje conservei foi uma só resposta do sheik. Com as têmporas bem abertas, disse: "o Islão é amor!". Tínhamos sido conduzidos para uma espécie de escritório, e não uma sala de orações, e por isso não tivemos de descalçar os sapatos. Estava ali a prova de que podíamos ter uma tarde agradável sem ser a beber cerveja numa esplanada. (Não comprem isto).

Coisa bem diferente foi aquela que se passou há uma semana no San Mamés, o estádio do Athletic. Antes de a velhinha Catedral de Bilbao ir abaixo, já em 2013 - o novo anfiteatro do clube está a ser construído num terreno ao lado do velhinho -, devo partilhar com o mundo que antes de entrar no estádio os stewards do jogo com o Sporting me obrigaram a... tirar os sapatos. No meu caso, as botas. Não queria acreditar. Praticamente sem voz quando ainda faltavam quase duas horas para o apito inicial, sentei-me num degrau com o whisky em copo de plástico preso pelos dentes e descalcei-me ao mesmo tempo que um adepto dos nossos me passou uma caixinha com pastilhas elásticas. "Nem esta merda pode entrar: tira uma e vai passando!", disse-me, ao que obedeci parcialmente, tirando duas.

"É isto?!"

Visto por fora, o San Mamés assemelha-se a uma fábrica abandonada. "É isto?!", perguntei com não pouco espanto ao meu camarada sportinguista de aventura, o Bruno, que por sua vez anunciava em directo e exclusivo, no Facebook, ter feito 856 quilómetros (1723, ao todo) para, afinal, estar a ver a estrutura exterior da estação de metro do Campo Grande. Sim, era aquilo o San Mamés. Com capacidade para 40 mil pessoas, o estádio é tão antigo que uma das centrais está suportada por pilares encaixados… no meio da bancada - leia-se: entre os adeptos. Qualquer coisa como a resposta ingénua dos bascos aos lugares atrás de placards, e portanto sem visibilidade, que, após a edificação do novo José Alvalade, achou-se por bem destinar aos adeptos cegos do Sporting. (Ficção enfrenta Realidade e perde).
Confirmava-se: o ambiente era bem diferente de tudo aquilo que alguma vez tinha visto em estádios de futebol. Não é que, por exemplo, as claques em Bilbao sejam especialmente espectaculares: a esse nível, como os próprios bascos reconheceram, fomos os mais criativos, entusiastas e respeitadores que por lá passaram em anos. A pólvora é mesmo a forma como o estádio inteiro puxa pela equipa a uma só voz, tal como eu próprio já testemunhara nas ruas, no meio deles, a puxar pelos nossos - correu melhor que bem quando tinha tudo para correr mal, um encontro muito à imagem daquele entre escoceses e irlandeses no Braveheart.

Antes da batalha tipo escoceses/irlandeses no Braveheart, travada com abraços

Poucos cânticos, os dos bascos, mas bons. Cada ataque um pretexto. Cada canto uma festa. Cachecóis ao ar: "Athletic! Athletic! Athletic!". Na bancada destinada aos nossos vi o Manzarra à minha esquerda e o Bruno de Carvalho à direita. Antes, na plaza Mouya, o nosso local de concentração, já tinha visto o Eduardo Barroso escondido num impermeável. Nós estávamos no meio do Directivo Ultra XXI. À nossa frente o "maestro" da orquestra era um dos rapazes que caiu ao fosso de Alvalade quando tentava agarrar a camisola oferecida pelo Capel, em Novembro, depois de um jogo com o Leiria. Ao nosso lado enrolavam-se mortalhas e ensaiava-se o cântico que mais pegou esta época, com versos de Baudelaire para cima. "Braços no ar/Todos de pé/Vamos cantar/Sporting Allez". O ambiente era imelhorável, exista ou não este palavrão. A bexiga a apertar. "Tivesses apostado no whisky mais cedo..."

errr...

Foi quando me despachei da casa de banho, reentrando no sector dos nossos adeptos, que fiquei perfeitamente tolo. Da parte de cima daquele cubículo não se via qualquer das balizas. Mesmo eu, mais ou menos numa fila central, não conseguiria, já na segunda parte, ver o remate do Insúa ao poste. Tínhamos pago 65 euros e não víamos as balizas! Mais: havia uma rede de galinheiro, bem grossa, a obstruir-nos a visão. Melhor: no fim do jogo, à saída do sector, topei que havia um mini banco de madeira envernizada que tinha sido colocado na última fila. Interroguei-me se os anões também pagariam 13 contos pelo bilhete. À saída, por outros motivos, o queixo permaneceu caído: em vez de irem festejar a passagem à final para as avenidas principais, centenas de adeptos do Athletic, a maioria deles muito jovens, tinham esperado por nós cerca de 45 minutos - aqueles em que ficámos presos no galinheiro basco por imperativos de segurança - e formaram um cordão humano para nos congratular, isto sob o olhar atento de centenas de polícias com capacetes vermelhos e gorros de assaltantes de bancos enfiados na cara. Quem não se metia com eles era eu. Na memória dos bilbaínos ficara a homenagem que fizemos em Alvalade ao Iñigo, adepto do Athletic morto por uma bala perdida da polícia durante os festejos da passagem às meias-finais da Liga Europa, à custa do Schalke. Homenagem essa, que, de resto, foi por nós repetida em Bilbao, fora e dentro do estádio.

onde está o wally?

A resposta foi uma comunhão leonina tremenda entre os Leões de Espanha e os de Portugal: todos nos aplaudiam e cumprimentavam ao ritmo de "Ésporting! Ésporting!"; pediam, "cambio!", "cambio!" - aludindo à troca de camisolas ou cachecóis; cabisbaixo, afastava-me do San Mamés ao som alheio de "arriba, animo!" e de um muy espanholês "bom juego, Ésporting!". Já num banco de jardim perto do Guggenheim, enquanto acabávamos as cervejas e a quiche com modos beirãos, cheia de tudo, da mãe do Bruno, duas garotas passaram por nós com cachecóis do Athletic ao pescoço e interromperam-nos o repasto com o mais bonito dos coros. "Aupa Sporting!". Na looonga viagem do regresso, sempre a cantar, sempre a cantar, um dilema não deixou de me ocupar as ideias ao volante: "merda para estes bascos, não os podemos odiar nem um bocadinho?". 

Em BIlbao é sempre Euro 2004

Já em solo português parámos numa área de serviço para um último assalto a sanduíches preparadas na véspera. Havia mortadela, chourição e queijo. Houve também um auto-denominado padre católico holandês que foi deixado por um condutor perto do nosso carro e que se aproximou de nós assim que meteu os pés no asfalto. Primeiro perguntou se falávamos inglês ou francês. "Sim". Depois, se íamos para Lisboa. "Vamos, pois". Posto isto, a conclusão: "then i'm going with you!"
Eu olhava o Bruno, o Bruno olhava para mim, ambos olhávamos para o padre católico holandês. O aspecto do prior era, na melhor das hipóteses, assustador. Tinha estampa de atleta de basquetebol, óculos de garrafão e capachinho. Este pormenor fez a diferença: não confio em padres que usem capachinho. Dono do carro, o Bruno tinha algo a dizer sobre a questão da boleia, e o que disse, por mim secundado, não foi do agrado do alegado mensageiro de Deus. "Ok, you're not very friendly!", acusou-nos, para nosso descanso, e apressou-se a procurar boleia com outras pessoas, de preferência que não estivessem trajadas à hora de almoço com as cores de um clube de futebol, a somar duas directas, uma dor localizada no lado esquerdo e vozes de Olavo Bilac de tanto puxar pelo Nosso Grande Amor.