segunda-feira, 17 de junho de 2019

Sebastián


Quando nos aproximámos do Miradouro da Graça nem dei pelo Sebastíán. Debruçado sobre Lisboa, consolei brevemente os olhos, há mais de meio ano que não visitava um dos miradouros da cidade grande, e ainda passou 1 ou 2 minutos até me aperceber que atrás de mim estava um rapaz de costas para uma parede, encolhido sobre a sua guitarra, a tocar estilo homem-orquestra.

O Sebastíán tinha o boné virado para trás, barba de uma semana, era magrinho e a sua voz anunciava-o dono de uma sensibilidade que em nada condizia com a figura. Uma espécie de Conan Osíris mais deste mundo. Cantava baixo, muito baixinho, mas a voz era cristalina, percebia-se cada palavra e a forma sentida como ele as pronunciava. Se fechássemos os olhos para ouvir melhor, conseguiríamos discernir «I Could change the world», o Sebastián cantava Eric Clapton, a seguir passou para a «Blackbird», uma versão mais dele do que dos Beatles, e antes de desatar a correr ao lado do elétrico que iria apanhar mais à frente, terminou com um tema bonito que imaginei ser mesmo dele, uma coisa assim de menos a mais, utilizando as pistas do equipamento de gravação que ia levando para confecionar em camadas o seu bolinho musical.

Quando acabou de tocar, deixei cair umas moedas na caixa da guitarra dele e fiquei a saber-lhe o nome. O Sebastián era argentino e estava há dois meses em Portugal. Já tinha visitado o Algarve, por isso não se surpreendeu quando lhe disse que a Fátima e eu vivíamos lá e estávamos a regressar só por um fim de semana à cidade onde morávamos até há meio ano. Radiante com a partilha, o Sebastián contou-nos que esteve em «Quarteira, Albufeira e, claro, Faro».

Não percebi o «claro».

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Talvez

  
Talvez em Lisboa haja o direito a ser melancólico. Pode-se ter 20 ou 30 anos e ouvir música clássica, é normal, muito do que não pode ser previsto acontece desde que saímos de casa, o bom e o mau aparecem em força, misturam-se num sentimento mestiço que ao fim do dia nos molda num certo jeito de não estar alegre, sem estar propriamente triste, se o olhar está cansado também é sereno, o dia acabou e o tempo que foi para os outros passa a ser, enfim, para nós.

Em Lisboa temos de estar preparados para lidar com muitas coisas que não controlamos, é a chuva e a distância, é o trânsito e a distância, é o metro e a distância - e é normal que um gajo se sinta assim, dá-lhe para ouvir música clássica porque, de alguma forma, a música clássica é a resposta a essa distância, mas em coisa boa, na procura da paz vagamente perturbadora que a solidão de uma cidade grande traz.

Tenho saudades de ir à Cinemateca ver um filme francês ou italiano, um filme antigo, intenso, que dizia tudo sem dizer nada, ir num dia de folga, sem preocupações, leve, leve e ficar a pensar naquilo no caminho para o metro, com as peças do puzzle a montarem-se devagarinho, com alguma dificuldade, na minha cabeça aérea, muito por conta dos comentários do João Bénard da Costa aos filmes, reunidos em folhas A4, que apanhávamos numa mesinha à entrada da sala, ou à saída, sei lá. Sinto falta do toque de chamada para o início dos filmes na Cinemateca - ser chamado pela Judy Garland para entrar num lugar sobre o arco-íris não é a mesma coisa que olhar para as horas no telemóvel e perceber que está na hora de entrar na sala porque o filme vai começar. 

E o Rui que precisa de escrever - não se escreve só por se gostar, é preciso precisar - também sente falta desse Rui, ou então não, nada serve de desculpa e talvez sejam só estas dores nos rins e a perspetiva de que num ápice tudo se esvai que me dá para isto de recuperar a beleza das coisas.