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sábado, 26 de março de 2011

Sabedoria


Vale do Douro
A vivi perguntou-me que horas eram - "quase uma da manhã!" - e, de tacha arreganhada, cheia de luz, dirigiu-se à maluquinha: "o que tu agora fazias era dar-me um pedaço de bolo com um cálice de vinho do porto". 

Elenco:
vivi (avó)
maluquinha (mãe, filha da avó)
rapaz das horas (eu, filho da mãe e neto da avó).

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Montenegro

A minha bisavó benzia a constipação, o pé torcido e o mau olhado. Ou quebranto, como se ouvia em Quatrim do Norte, onde morava com a minha avó e a minha mãe há tanto tempo como viveriam dois de mim. A localização da fronteira entre Quatrim do Norte e Quatrim do Sul gerava algum debate, na medida em que ninguém se tinha lembrado de a demarcar, mas a minha bisavó Tanta, nome que o meu irmão mais tarde lhe colocaria por ter dificuldades em pronunciar o que de baptismo lhe deram (Firmina), sempre soube que era mais cansativo voltar a casa vinda de qualquer outro sítio do que o contrário. Residia no cimo da rua. Por aí era Norte; em baixo, Sul.

A fama de curandeira chegava, dizia-se, até Olhão. Coleccionava outras virtudes, como o entendimento à distância das coisas e o apego à costura, faculdade que viria a ensinar com aprumo à minha avó Vivi, nome que lhe coloquei por ter dificuldades em pronunciar o que de baptismo lhe deram (Vitalina), mas foi a de livrar as pessoas dos mais variados infortúnios que fez o seu nome correr de boca em boca. Fazia uso de tais qualidades sobretudo a favor da família, mas não fechava a porta de casa a quem vinha de fora: várias foram as vezes em que amizades da terra foram recebidas na sua casa com bolinhos e chá, que saboreavam num silêncio reverente antes do processo que lhes levaria à cura. A minha bisavó Tanta aceitava tais visitas de bom gosto, e não o fazia a troco de dinheiro, mas era frequente ver o candidato à cura aparecer-lhe com um sorriso desesperado e uma garrafa de azeite. Naquele tempo não havia dinheiro, explicará qualquer pessoa que tenha passado a infância de rabo para o ar numa horta. Salvo seja.

Certo dia a minha mãe torceu o pé. As dores eram fortes e ela chorava no momento em que explicava à Tanta que se magoara ao descer de uma árvore. Atenta, esta deu-lhe bolinhos e chá e depois de ver o repasto em silêncio da bonita neta pediu que fosse para o quarto e se deitasse na cama de barriga para cima, como mulher em consulta de gravidez. Obediente, assim fez a Maluquinha, nome que coloquei à minha mãe porque sem dúvida o merece. Depois a Tanta fez-lhe aterrar um pequeno pedaço de pão no peito e benzeu-se com o sinal da cruz:

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

De pronto fez que passava uma agulha numa linha, como quem coze, e anunciou.

Eu cozo.

A Maluquinha acenou que sim, vendo que não, e respondeu: 

Carne quebrada, nervo torto, eu cozo pelo direito e a virgem pelo torto.

Nove vezes repetiu a ladaínha com o pé em cima de um pau de vassoura, movimentando-o para a frente, mas também para trás. Depois a Tanta untou-lhe o pé com toucinho quase estragado para no fim deitar fora o pedaço de pão e arrotar com vontade, de modo a melhor espantar as más energias. E que não estivesse eu com cara de fazer pouco, avisou-me a Vivi, suportando com a expressão séria da certeza a tese de que assim mesmo a mãe lhe curara a filha.

Estas e outras coisas me contou a Vivi no sábado, sentada ao meu lado num café em Montenegro, arredores de Faro, enquanto atacava metade de um croissant misto. Minutos antes, quando chegámos àquele povoado, fiz saber à Vivi que Montenegro era nome de país e perguntei-lhe se sabia onde ficava. Confiante, respondeu-me: “Sei, é na serra.”

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Vou contar-vos uma história de amor

Para quem desconhece, a melosa é uma das melhores coisas que o Algarve algarvio tem para oferecer, naturalmente a seguir ao convívio com a minha avó, a Vivi. Juntar as duas entre dois dedos de conversa na digestão de uma refeição foi, até ao último dia 10, um dos meus objectivos mais dignos de vida por realizar. Concretizei-o, entretanto, por ocasião do jantar de aniversário do meu irmão. Como a conheço, a melosa nasceu na serra de Monchique, sabe bem que se farta, bate que é bonito e, last but not least, deita por terra a mais teimosa das constipações. A preparação é simples: meio litro de água no fogo azul com 500/600 gramas de mel, uma casca de limão e um pau de canela. Quando a mistura ferver contem até mil, sem grandes pressas. Arrefecido o combinado, juntem-lhe meio litro de aguardente de medronho e depressa perceberão o que é bom - estupidamente bom! - para a tosse. Um cálice é óptimo. Dois soa e sabe melhor. Mas a minha avó, que, sabe-se lá como, nasceu ali para os lados de Olhão há mais de 82 anos e não fazia a mais pequena ideia do que vinha a ser isso da melosa, virou três depois de se ter encantado com o primeiro - este a pedido da família Coelho. Só pela excitação que lhe causou a primeira investida, a Vivi derrubou pela mesa, ao segundo trago, o que dele sobrava. 'Ai que pena que tive, isto soube-me tão bem', deixou escapar, desolada, ao ver o líquido espalhado na toalha. Refeita do percalço, que o mundo não acabava ali, só parou de virar copinhos quando o dono do restaurante fugiu com a (já levezinha) garrafa para dentro da copa, assustado com a sede dos Coelhos, a quem vinha oferecendo cálices de quando em quando, o que, pareceu-nos, só lhe ficou bem. Até se deitar, pela primeira vez em muito tempo, a minha avó esqueceu-se das dores na coluna que todos os dias a curvam um bocadinho mais. Dormiu bem, acordou melhor e prometemos-lhe a garrafa 'com aquela coisa muito boa' que pediu com o sorriso bobo que tinha quando a coluna não a chateava. O prometido é devido.