terça-feira, 31 de julho de 2012

Amoras frescas

Era uma tarde esplendorosa de Julho quando acordou, assomou-se à janela e condenou o desplante do sol por, radiante, não o acompanhar no seu desinteresse por quase tudo de todas as coisas. Sobrava-lhe pouco: tanto quanto se podia lembrar, apenas o gosto por amoras frescas - guardava-as sempre num cestinho sobre a mesa de cabeceira - e o canto madrugador e desconcertante dos tordos no arvoredo da rua de trás. Compreendeu nesse instante que morreria mais cedo do que lhe estaria destinado, e por conta própria. Agradava-lhe a ideia de que, se nunca tivera uma vida grandiosa, pelo menos os contornos da sua morte correriam mundo, de tão monumentais: construiria um balão de ar quente, suficientemente sólido para levantar voo mas vulnerável à primeira tempestade.

Sempre fora hábil em trabalhos manuais, pelo que a empresa do próprio fim não se revelou problemática. Reuniu os materiais necessários e trabalhou dois dias de sol a sol. Alimentava-se de fruta e bolos secos, ingerindo pequenos solvos de aguardente cabo verdiana para retemperar forças - fugindo à água, evitava corridas (e perdas de tempo) desnecessárias à casa de banho. "Morrer dá trabalho", pensou, na segunda manhã, deixando escapar um sorriso, mas num piscar de olhos recuperou a expressão de pedra que ganhara desde que assumiu a responsabilidade de tirar a própria vida.

Preparou tudo a um detalhe tal que pouco dormiu até ultimar a construção do balão, e tanto assim foi que no dia marcado se sentiu demasiado exausto para morrer, dormindo directamente da véspera da sua morte até ao dia seguinte. Acordou pela fresquinha. Foi abastecer-se ao cestinho das amoras, tirou a roupa interior e tomou um duche gelado; sentia-se com energia e saiu de casa guiado pelo canto dos tordos na rua de trás, que de resto o acordara, e ao virar da esquina não pôde deixar de se apaixonar por uma putinha mulata com nariz de batata e um sorriso bonito, que fazia manhãs; com ela viveu feliz até ao longínquo dia em que deixou de respirar devido ao veneno para ratos que o filho, já idoso, tinha colocado no cestinho das amoras por engano, ignorando serem frescas.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Soube a pouco, Matias

El Crá : 20 golos em 115 jogos pelo Sporting

Está de saída do Sporting um dos grandes craques que passaram pelo futebol português desde que me conheço. Um número 'dez' puro, que preferia ter nas costas o mais discreto e nem por isso menos simbólico '14' - Johan Cruyff gosta disto. Daquelas chuteiras chilenas sempre destilou um perfume diferente, "coisas bonitas" nas palavras do Artur Jorge. Mati é uma espécie em desuso no futebol, o sobredotado que corre menos do que os outros e a quem os adeptos perdoam a insolência como se de um filho se tratasse, na certeza de que em breve uma traquinice os irá derreter. Ao Matias faltou sempre alguma urgência nas acções: o futebol europeu é terrível, corre-se muito, não há espaços; não poucas vezes o vimos ultrapassado pelas circunstâncias - leia-se: o advento deste futebol físico, a lei de Darwin virada do avesso, que rejeita quem bonito joga e a destruição coroa. Outro senão: as lesões musculares constantes que o afectam desde que chegou ao futebol europeu no início de 2007, concretamente ao Villareal, e condicionam o tipo de jogo que apresenta, hoje mais dado aos passes mágicos de rotura e nós cegos em espaços curtos do que propriamente em cavalgadas à Maradona como esta aqui em baixo, que em 2006 lhe valeram o prémio de melhor jogador sul-americano e que, aqui em Portugal, seriam impossíveis de acontecer - El Crá já estava a comer relva à segunda revienga.


Imagino-o a gingar entre os defesas nos anos 80, solto, talvez com o '10' nas costas, construindo uma aura de ídolo no futebol mundial. Talvez tenha nascido 20 anos depois do devido, pois nada tem de lógico que o veja trocar o Sporting Clube de Portugal pelo 13.º classificado da liga italiana, a Fiorentina, longe das provas da UEFA, de tudo o que interessa, entrando num futebol ainda mais calculista e cinzento do que o nosso. 

Florença terá um novo Príncipe e o Sporting paga a factura de atempadamente não ter renovado ou vendido o jogador, deixando-o entrar no último ano de contrato e aceitando quaisquer trocos para evitar a saída a custo zero. Assim se vê partir um craque que em três anos não ganha qualquer troféu pelo clube e que, tendo sido contratado por 3,635 milhões de euros, vai sair, ao que tudo indica, sem criar mais valia financeira - dos quatro milhões que se fala é preciso fatiar 25% dos direitos económicos que foram entretanto alienados pela nossa direcção, sabe-se lá a quem e por quanto. É mais um exemplo do modus operandi das gestões à Sporting, que deixaram o clube no estado financeiramente calamitoso em que o vemos.

Não consigo deixar de me torturar a pensar que, caso tivesse aterrado no aeroporto Sá Carneiro, há três anos, o Matias Fernández estava hoje a ser vendido para um Manchester Unitedzinho por 20 ou 30 milhões. Deve ter sido pelo menos essa a promessa que os genes lhe fizeram.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Radiohead: tudo no seu devido lugar

©Laura Haanpää

Sendo estética e musicalmente brilhantes, os Radiohead nunca escolheram o caminho mais fácil desde que se tornaram numa banda à escala mundial. Quando conquistaram o mundo, tricotando a pop até à perfeição em "The Bends" (1995) e "Ok Computer" (1997), não demoraram a evaporar-se tal como então se davam a conhecer, partindo à descoberta de novas formas de expressão, sobretudo electrónicas. Tão à frente dos acontecimentos e, percebe-se hoje, com as coisas sob controlo, talvez os Radiohead o tenham então feito pela necessidade de sobreviverem enquanto banda criativa a essa grande e fedorenta bocarra com lábios de silicone que aparece encaixada no focinho da fama.

Quando deram à luz o gélido Kid A (2000), meio mundo exigiu autos de fé. Para quem tinha adoptado os dois anteriores trabalhos como álbuns de uma vida, e dando de barato que as angústias teenager do Thom Yorke no disco de estreia Pablo Honey (1993) não mudaram o mundo, o choque foi tremendo. Kid A praticamente não tinha guitarras, riffs ou refrões 'singalong'; era, antes, fértil em experimentalismos electrónicos de uma desolação mo-nu-men-tal, a banda sonora do fim de tudo à qual as rádios populares fecharam os microfones à primeira audição. No ano seguinte apareceu o irmão disforme, "Amnesiac", ainda assim mais melódico. Há quem diga - ainda ontem mo disseram - que nunca mais ouviu Radiohead pós-1997.

Mas para a banda deve ter sido um alívio poder deixar para trás o que lá atrás pertencia, deparando-se com um cenário win-win: ao mesmo que lançava o mito sobre The Bends e Ok Computer, literalmente irrepetíveis, libertava-se da pressão de ter de estar à altura do pedestal ao qual tinham subido. O virar do milénio implicaria um verdadeiro recomeço. Hoje, tanto tempo depois, dá para perceber que as respostas às nossas perguntas sobre a radical mudança de direcção do quinteto sempre estiveram ali mesmo, à nossa frente, a acenar-nos com a sua longa e bizarra cauda, tanto no título do último disco amigo da memória - Ok Computador... venceste... - como, por exemplo, no primeiro tema de Kid A, onde se avisava que tudo tinha o seu tempo e lugar devidos ("Everything in it's right place"). É mesmo assim. O passado foi lá atrás. Acompanhe-nos quem quiser.

É por isso que quem deles gosta, ama. É um combinado de admiração pelo talento e imenso respeito pela filosofia de trabalho. A cada álbum os Radiohead tentam inventar uma nova obra de culto, coisa que à descarada já conseguiram com "In Rainbows" (2007), monumental pacote de rock electrónico cujo sucessor "The King of Limbs" (2011) é ainda mais dançável, com especial incidência na percussão galopante do Phil Selway, embora talvez menos sofisticado. Isqueiros no bolso, pá.

Ontem, no primeiro concerto que assisto ao vivo da minha banda viva favorita, o alinhamento privilegiou o repertório destes dois últimos discos e os singles que recentemente foram lançados. O mesmo é dizer: foi uma festa dos diabos ao som de faixas electrizantes (ex: 'Morning Mr. Magpie' ou 'Staircase'), contrabalançadas por coisas a baloiçar entre slow e danceteria (ex: 'Reckoner)' e, claro, mimos de contemplação para-lá-de-religiosa de tempos que, em disco e na grande fatia dos concertos, já não voltam (ex: 'Exit Music - For a Film'', cujo vídeo pode ser visto em baixo). Fechar com a 'Street Spirit' foi um momento sublime, mas outros houve - todos, na verdade, desde o irrepreensível jogo de luzes e vídeo oferecido pelo quinteto inglês à figura enigmática do Thom Yorke, que, ao microfone, entre músicas, limitou-se durante mais de duas horas a balbuciar coisas imperceptíveis num estilo 'I really don't give a fuck' que cada vez me agrada mais, por oposição à tanga de nos repetirem que somos o melhor público do mundo a cada bruaá. Sejamos honestos nas coisas. E sim, o falsete do Thom é mesmo límpido, de criança, bonito que quase irrita. E sim, o estilo de dança autista do bichinho de rabo de cavalo é bestial. E sim, o alinhamento foi tremendo, mas podia facilmente ser outro, que tremendo seria. E sim, aqui à volta, onde estou, é só nuvens. Foi uma vida à espera disto.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Vontade de Deus?

Na religião agrada-me o sentido de comunidade. Identifico-me com isso - pessoas que atravessam a vida em comunhão, partilhando o bom e o mau. A bondade. Ajudar. Gosto também das igrejas. São bonitas. A paz que oferecem aos que dela mais precisam. Gosto disso.

O resto não entendo. Mais: revolta-me.

"Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco", (1 Tessalonicenses 5.18), lê-se na Bíblia.

Então é assim, fechamos os olhos, glória a Deus e amém?

Vou aceitar que uma miúda de 31 anos seja levada daqui, assim, tão feliz, noiva e com uma filha por criar? É esta a vontade de Deus? É a isto que devemos dar graças?

De mim não esperem que me curve perante uma suposta vontade divina que se manifesta assim. Não: é chocante. Cruel.

Descansa em paz, querida J., descansa em paz embalada pela música que durante anos nos deste todos os dias.

domingo, 8 de julho de 2012

Gabo perde a memória


O melhor escritor vivo perdeu-se no seu próprio labirinto de sonho e de verdade. É o cúmulo da tristeza. Mas teremos sempre Macondo.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Noite Tunisina

Anfiteatro ao ar livre, Gulbenkian

Chegámos perto das 22:00 sob um céu mais rosado que negro, coberto de nuvens rápidas e ameaçadoras. As ramagens agitavam-se numa aflição de Outono. O frio eriçava a pele. Noites de Verão. Na Noruega.

Visitávamos a Noite Tunisina do Ciclo de Cinema Árabe a decorrer na Gulbenkian. A troco de três euros tínhamos direito a visionar duas curtas metragens e uma longa, mas também a mantinhas para aquecer o colo e outras zonas de fácil arrepio - só o percebemos já de cerveja na mão, no regresso da roulote que entretanto descobrimos assim como quem a procura.

"O Lamento do Peixe Vermelho" (Oubeyd-Allah Ayari) foi a primeira proposta e teve a duração de 12 minutos. Num só fôlego, dizer que o protagonista era um quarentão solteiro que estava a ficar cheché até que, sentado no banco de um bosque, viu uma galinha arrastar-se à sua frente dentro de uma caixa de cartão e apaixonou-se pela mulher que estava sentada na outra ponta do banco, a ler. Foi amor à primeira galinha.

Seguiu-se "Porquê Eu" (Amine Chiboub, 13 min.), que foi exactamente o que pensei quando observei alguns dos actores em acção. Salvou-se a ideia nuclear da curta: tratem-se bem, humanos.

Khorma a levantar voo 

Por fim, "Khorma, Filho do Cemitério" (Jilani Saadi, 100 min.). O primeiro plano do filme mostra um rapaz a fugir pela praia, vestido, iluminado pela luz plácida da manhã, cantando coisas sem nexo enquanto faz que voa. A câmara filma Khorma, um destravado ruivo a dar para o albino com dentes podres e que urina em direcções opostas - "Deus colocou dois buraquinhos no meu pénis". Khorma faz vida a anunciar casamentos e funerais. Parece tolo, mas sabe-a toda. Tem um mestre, Bou Khaled, que o introduz na arte do negócio. Em pouco tempo conseguirá pôr a sua comunidade a dançar ao ritmo que bem entende. Até que, pim!, acontecem coisas.

O filme, castiço, vivo, interessará a quem preferir espreitar detalhes sociais de realidades distantes, sentado num bonito anfiteatro ao ar livre, em vez de ficar a desancar no Miguel Relvas via Facebook - muito embora compreenda que esta última opção também possa ser cativante. Exemplo: percebemos rapidamente em que país muçulmano foi rodado. Líbano à parte - é um caso especial -, só na moderada Tunísia é que se poderia filmar uma rapariga a abanar-se toda para um homem enquanto esfrega a roupa no alguidar, isto além de 'crescer' para o pai, devolvendo-lhe ordens. Lembremo-nos: aqui começou a Primavera Árabe.