domingo, 23 de outubro de 2016

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Cartas da Guerra: cinema-cinema


Pouco ou nada tenho ido nos últimos anos, e já não me lembrava disto, como pode ser verdadeiramente mágico, o cinema-cinema, não o outro, como é verdadeiramente mágico que limitações de orçamento e uma nesga de luz te levem por caminhos que trazem ainda mais encanto à tua obra, rodar a preto e branco, que dádiva para o nosso imaginário de repente saírem debaixo das pedras os Fellinis e tantos outros mestres, o drama cómico da existência tocado a flautas que não encantam só serpentes, não, e embalados assim vamos com o Lobo Antunes até onde o Ivo Ferreira quiser, aliás, puder, vamos, que não podíamos ir melhor, hipnotizados pela voz-ao-ouvido da Margarida, que passa o filme a dizer-nos coisas de uma maneira que, minha mãe.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Sporting: abrir a pestana em Vila do Conde


Já a frio, e porque massa crítica é coisa que nunca me faltará, a primeira coisa que tenho a fazer é criticar aquele que sempre defendi enquanto treinador e de quem sempre me ri enquanto figura do futebol, um barrasco que anima um universo de falsas modéstias, que faz falta. Não sei se o Jesus quer concretizar no Sporting o sonho de ganhar a Liga dos Campeões, mas sei que actualmente a melhor equipa que ele tem foi a que jogou bem e perdeu mal no Santiago Bernabéu, não a que jogou mal e perdeu bem em Vila do Conde.

Alguma coisa mudou naquela cabecinha pensadora, e, se assim foi, estamos mal. O homem tem é de meter no campeonato os melhores, porra. Acho que isto não tem discussão possível.

Este parece-me o primeiro erro do Jesus, virar o bico ao prego e dar prioridade à prova secundária. O segundo está nas opções tomadas no domingo, e entronca no discurso fanfarrão da véspera.

A ideia que passa é que o Jesus pensou que qualquer combinação de jogadores servia para ganhar, uma vez que o treinador era ele. Fosse em Vila do Conde ou em Sarilhos Pequenos. O que nos meteu em sarilhos grandes.

Mesmo mudando quatro peças, era possível ter uma equipa mais bem preparada para ganhar ao Rio Ave. Tem de haver equilíbrio. Não houve.

Ao lançar em conjunto os dois laterais mais ofensivos (Schelotto e Bruno César), os dois extremos mais avançados (Joel Campbell e Gelson Martins) e dois avançados que não defendem (Alan Ruiz e André), o Jesus boicotou o próprio modelo de jogo, que vive da capacidade de pressionar colectivamente e roubar a bola logo no meio campo adversário. Não vi o jogo, mas entretanto já espreitei o resumo e é fácil de notar que nos três golos do Rio Ave há jogadores deles que vão por ali fora sem que alguém lhes faça frente. Neste ponto, miserável a postura do Campbell, que não me parece capaz de jogar neste modelo como o médio ala inteligente e solidário que o mesmo pede.

Só Adrien e William para correr atrás dos outros não chega, ainda por cima depois do esforço da dupla em Madrid. Tinha tudo para dar errado. O Rio Ave soube tirar partido do adormecimento do Sporting quando saía para o ataque e tem a capacidade que falta a outras equipas de aproveitar os espaços da melhor maneira. Depois, primou por um índice de eficácia que, por exemplo, teria dado ao Braga a liderança do campeonato, tal a quantidade de golos cantados que falhou na Luz, um cenário idêntico ao da Supertaça. 

A segunda casca de banana está já ali

De maneira que demos o primeiro tiro no pé à quinta jornada, o que ficou ainda mais exposto devido à vitória do Benfica. Perdemos o primeiro lugar, cuja relevância em Setembro passou a ser indiscutível, do dia para a noite. E agora? Agora é despachar o Estoril e abordar com juízo o próximo jogo da Champions, a meio da semana, com os polacos, de maneira a que na visita que se segue, a Guimarães, tenhamos a melhor equipa, na melhor das formas. Tudo com equilíbrio, se não for pedir muito.

Ainda sobre o Jesus, insisto: gosto muito dele enquanto treinador de futebol, acho-o o melhor treinador que poderíamos aspirar a ter. Mas gosto interminavelmente mais do Sporting. Por isso, menos conversa, menos bazófia, mais e melhor trabalho, que aqui não se dá carta branca a ninguém. Vá.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Crónicas de um algarvio desempregado: dia 3


Geralmente não resisto à tentação de desafiar as probabilidades, dá-me um certo gozo fazer pouco da percentagem de que pode correr mal o que à partida é para correr bem. Uma relação de, sei lá, 70/30, já é um petisco, e quanto mais próximo dos 50/50, quanto maior a dúvida, melhor.

Saber que o depósito do carro está na reserva e só atestar no dia seguinte; ir a Paredes de Coura sem casaco; andar pelo Urban sem um paninho para ir limpando o chão.

Os invejosos vão chamar-lhe facilitismo. Se calhar é.

Noutro momento teria apanhado o metropolitano para ir à entrevista. Tinha mais de meia hora, dava tempo. Mas a vida tende a tirar alguma lata a quem já a teve de sobra (e a lentamente compensar os menos afoitos), e desta vez enchi os pulmões de ar, ergui os olhos para o céu, bem abertos, venham daí as respostas, levei em cheio com um raio de sol, seguido de um segundo de escuridão -, o sol é de todos e de ninguém, não acha piada que lhe olhem de frente - e resolvi ir a pé, com receio de que uma avaria numa linha de ferro me atraiçoasse.

De maneira que cheguei ao local combinado com dez minutos de avanço, tudo controlado, dava-me jeito uma fita de tenista para estancar o rio com nascente na testa, mas tudo bem, bateria aqui do lado esquerdo num ritmo sossegado. E foi isto. Uma seca. Já a entrevista valeu a pena. Pessoas com vontade de fazer coisas novas. Sem medo de saltar com os dois pés para terreno desconhecido. Faz falta, isto.

Aspirei e lavei o chão de casa antes de ir a um café que a Fátima me tinha recomendado. O espaço é acolhedor como outros, com a vantagem de ter uma janela grande que dá para a rua, muita luz, como paisagem leva-se é com tuk tuks a toda a hora, cheios de turistas a caminho do miradouro local.

Luz tem, som também. Um amigo convidou-me para ir a um concerto de jazz nessa noite, não podia, merda, mas montanha e Maomé trocaram de lugar para que à tarde os mestres do Bebop me visitassem ali, saxofones e clarinetes em parafuso, pareciam putos a correr pelo jardim, liberdade, liberdade, e lá atrás os pais a controlar o ritmo, lá atrás o contrabaixo, grave e autoritário, discreto mas presente.

Achei piada a uma estantezinha ordinária colocada junto ao balcão. Não tinha muitos livros: grande parte deles eram franceses, quase todos os portugueses eram para crianças e sobrava o Anátema, do Camilo Castelo Branco. Ocorreu-me fazê-lo, mas não vou publicar aqui a capa do livro. All in em como tive pesadelos de que felizmente não me lembro.

Em todo o caso, uma boa toca para respirar fundo, aquela. Até me pareceu mal pedir a chave do wi-fi; deixei-me estar, eu e a minha cerveja. Entretanto a Fátima ligou-me a pedir que comprasse bacalhau desfiado.

Já não faltava muito para o jantar que tínhamos combinado lá em casa. Como a Fátima não encontrou bacalhau desfiado à venda, despachei a minha cerveja e saí à rua em missão. Entrei num Pingo Doce ali perto e encontrei um expositor com bacalhau desfiado, pronto a comer. Liguei à Fátima para saber se aquilo servia, mas não tinha rede. Recuei cinco ou seis passos até à zona da fruta, e ao pé dos tomates liguei-lhe de novo. Rede, nada. Só consegui falar com ela e saber que bacalhau pronto a comer não servia, tinha de ser congelado, quando cheguei à parte das melancias. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Crónicas de um algarvio desempregado: dia 2


Vinte anos de trabalho em Vigo deixaram Luis García com uma cantiga à Paulo Futre, por supuesto. Deu ao litro na Organización Nacional de Ciegos Españoles, a ONCE, mas enquanto Laurent Jalabert e outros pedalavam, ele vendia lotarias. Luis García era Luís Garcia, mas entretanto o acento agudo do primeiro nome saltou para o segundo - já tem nacionalidade espanhola. Orgulhoso, puxou do cartão de identificação e provou a sua condição profundamente ibérica a mim e a um amigo, depois de o ajudarmos a encontrar a linha vermelha do metropolitano.
Levei-o pelo braço desde a saída na linha amarela, e antes de chegarmos à vermelha já Luis García me estava a convidar para um dia destes beber um copo, caso passasse por Pontevedra, onde chegaria para ficar, a partir da Gare do Oriente. No último ano viveu em Portugal, ao que parece em Braga, mas estava de volta à Galiza. Um pulinho.
Perguntou-me se já tinha ido ao Norte, e por Norte depreendi um Norte sem fronteiras, com Minho, Galiza e tudo; respondi que sim, que gostava muito, volta e meia visitava esse grande Norte, e a última vez tinha sido há um ano: Coura. Ao que Luis García disparou, animado: tinha estado lá, em Coura, tinha sido "potente", e mais "potente" ainda foi uma festa de branco, em Braga, na qual "nunca tinha visto tanta gente na vida, hostia!"
Além de disparar tiros muito cantados e certeiros, Luis García, um peso-pesado da ONCE, o Wayne Rooney da lotaria em Espanha, tinha uma característica óbvia, que o tornava especial perante os outros: um sorriso permanente, que reflectia um espírito luminoso. Quando nos despedimos, não sorriu, porque já estava a sorrir, e na sua cantiga à Futre deu este nó cego ao infortúnio: "vemo-nos por aí!".
Encerramentos é coisa que não me seduz muito por estes dias, de modo que abri uma conta-poupança antes de visitar um amigo que já teve melhores dias, e melhores dias voltará a ter, que coragem não lhe falta. Ainda fui a casa, e a tentação de ir à Net fez-me saber que tinha sido convidado para ir a uma universidade falar sobre isto das palavras. Anda perguntei a quem me fez o convite: acha mesmo boa ideia dar como referência aos seus alunos alguém que acabou o curso há nove anos, não tem emprego e até ver nada editou? Disseram-me que sim e lá aceitei.
A caminho do metropolitano protegi os olhos do verão mais quente
com os meus óculos de sol, tirei-os ao passar por uma sombra boa, voltei a colocá-los quando atravessei a estrada e a tirá-los quando entrei na estação do metropolitano. Tirei e pu-los muitas vezes, e quando estava a chegar ao café no qual tinha combinado com o meu amigo que já teve melhores dias, e melhores dias voltará a ter, que coragem não lhe falta, fiquei com uma haste na mão. De tanto tirar e pôr, saltou. Quando se tira e põe tantas vezes, o mais certo é saltar alguma coisa.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crónicas de um algarvio desempregado: dia 1


No meu primeiro dia oficialmente desempregado consegui colocar um guardanapo debaixo do pé direito do Rui Zink, sem ele dar por isso. Entrei no café onde almoçavas, sentado na mesa mais afastada da esplanada, de costas para a entrada, pedi uma sopa, um rissol de leitão, coloquei-te o guardanapo debaixo do pé direito, pedi a conta, paguei, passei por ti e tu nada, Rui.
Esgotados os meus créditos de depressão, que só podiam durar o fim-de-semana, acordei e preparei o pequeno-almoço para a Fátima, que ficou na cama. Os Linda Martini têm os 100 Metros Sereia, e eu teria os 10 Metros Romance se, de tabuleiro nas mãos, depois de sair da cozinha, percorrer o hall de entrada e entrar no quarto tivesse encontrado a Fátima ainda a dormir, e não no pronto-a-vestir, a fazer flexões.
Segunda-feira, dia de me apresentar no centro de emprego mais próximo, o do Conde de Redondo, que na oralidade virou Conde Redondo, só. Meti na cabeça que ia a pé, nem dois quilómetros seriam, ir e vir fazia-se bem. Seria o exercício do dia. Que se lixasse o metropolitano.
A ideia por si só era agradável, não fosse o facto de Lisboa estar a ferver a 34 graus ao meio dia, com previsões de 37 à uma da tarde e 38 às duas. Ao primeiro minuto de caminhada ainda não fazia cara feia. Ao segundo já tomava outro banho.
Estava a meio caminho quando se atravessou à minha frente um senhor com um balde numa mão, uma esfregona na outra e um pano vileda amarelo em cima da cabeça. Gostava de acreditar que o senhor só tinha limpezas em mente, mas devia ser mesmo do calor.
Horas depois, em conversa ao meu lado, uma brasileira disse a outra que, em dez anos de vida em Lisboa, nunca tinha sentido nada assim, um verão destes. Concordei em silêncio. O calor é tanto que para sacar o meu NIB no multibanco tive de digitar o código com a unha, para não queimar o dedo no ferro de engom... perdão, no metal da caixa. Perto de casa, no regresso, vi uma senhora antiga proteger-se do sol atrás de um poste, com o saco das compras ao alto. Já chega, não?
Quase, quase a chegar ao centro de emprego, dali a nada uma da tarde, ocorreu-me comer alguma coisa, não fosse ter de esperar demasiado pela minha vez. O melhor era despachar-me logo e seguir já consolado para o centro de emprego.
Hesitei entre o café da direita e o da esquerda, e só escolhi este porque na esplanada estava sentado o Rui Zink. Atravessei a passadeira e também me sentei na esplanada, na mesa atrás da dele, com o Rui Zink de costas para mim. Por companhia ele tinha um amigo que falava alto. Não pedi para saber, mas acabei por ouvir que o amigo do Rui Zink estava revoltado porque alguém teve o descaramento de escolher um plano em ele ficava com as cuecas de fora, e o rapaz sentia que não tinha de o aceitar só porque era artista.
Fui ao telemóvel: 37 graus. Porra. Tinha de comer e fugir dali o quanto antes, pensei. Nisto, joguei a mão ao rissol de leitão, trouxe-o à boca e vi o guardanapo que estava em baixo do frito voar e aterrar debaixo do pé direito do Rui Zink, que na fracção de segundo anterior tinha levantado o calcanhar e na seguinte já o descia, colocando um ponto final no voo do guardanapo.
Foi com o pé direito do Rui Zink a calcar o guardanapo que estava debaixo do meu rissol de leitão que me levantei, paguei a conta, dirigi-me ao centro de emprego do Conde de Redondo e encontrei um papel branco na porta de entrada que nos dava conta do encerramento daquele espaço a partir de 1 de Junho de 2015, e da fusão do mesmo com o centro de emprego de Picoas, na Avenida 5 de Outubro.
Dois mil e quinze?, questionei. Mas já estamos em dois mil e dezasseis, concluí. De maneira que fui apanhar o metro.
No centro de emprego de Picoas tinha 20 pessoas à minha frente, ou números, que agora as pessoas são números, é o que nos explicam. Mas vinte pessoas ali num centro de emprego não são vinte pessoas num centro de saúde, pelo que em meia hora já me estava a apresentar a uma funcionária.
A conversa foi parar à minha condição solene de algarvio, só sei que ela disse que conhecia outro, rindo-se de maneira envergonhada. Não precisou de me dizer de quem se tratava. "Também sou de Portimão, esse tem um bar na Praia da Rocha, como a minha família. Mas vá ao nosso, o Boogie. É bem mais giro."

Não, não tinham ofertas de emprego para jornalistas, mas antes de encaminhar o meu processo a funcionária partilhou com outra que me queria adoptar porque eu sonho um dia ter condições para constituir família e o filho dela nem por isso.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Crónicas de um algarvio desempregado: dia zero



A primeira coisa que fiz depois de assinar a rescisão foi comer uvas que eu e Fátima trouxemos da videira do quintal da casa dos pais dela, quando estivemos de férias, antes de saber que ficaria sem emprego. Maduras, maneirinhas e gostosas, as safadas, como aquela tropa dos anúncios classificados.
De seguida arrumei as minhas coisas, abracei colegas de trabalho, desumanizei-me, enxotei lágrimas que noutro mundo teriam seguido o seu rumo natural e ala, que se faz tarde. Antes ainda dei um salto à copa, queria tirar um café para o caminho, mas a máquina do café estava avariada, como quase sempre esteve. Existindo, aqui e ali Deus mostra um sentido de humor matreiro, o Grande Criador sabe ser o futebolista da equipa que está a ganhar e na parte final dos jogos atira-se voluntariamente para o chão, rebolando de dores que não sente só para levar a melhor.
Quando li a indicação "máquina avariada" parti-me a rir, de maneira que a rir me afastei do edifício. Três anos no Destak, cinco no Metro, oito na Cofina.
Quis passar as minhas primeiras horas de desempregado com a Fátima, por aí. Como já tinha começado a enviar currículos e agendado uma entrevista, permiti-me reservar o resto do dia e activar o modo beber para esquecer. Quando cheguei a casa encontrei a Fátima à minha espera, pronta para o que desse e viesse, claro. Dei-lhe um beijo que tinha amor, tinha tudo. Minutos depois já tínhamos batido com a porta, desenfreando-nos a pé pela cidade.
Mal subimos a nossa rua agarrei-me à linda cintura da Fátima, tentando desta forma acompanhar-lhe o passo, sem lhe pisar os calcanhares, como numa dança. Parámos ao pedido de uma senhora antiga muito carinhosa que se cruzou connosco, com vontade de nos falar. "Ai, tão queridos", disse, juntando as palmas das mãos, bem abertas. Sentimo-nos especiais e trocámos um olhar cúmplice, a Fátima e eu. Depois a senhora antiga atirou-me para as mãos um almanaque religioso que só custava um euro. Meio confuso, comprei aquilo. Trazia receitas de culinária.
Ao contrário do ovo e da galinha, sabemos que primeiro veio a aldeia, só depois a cidade, e quanto mais a cidade souber conservar esses traços originais de proximidade, que tornam possível os amigos viverem em família, bem aconchegadinhos, melhor.
Por isso soube bem retomar o caminho de almanaque na mão, caminhar duzentos metros numa rua de Lisboa e encontrar uma amiga. Ela bebia uma cerveja com outra amiga na esplanada de um café. Os filhos de ambas brincavam lá dentro, protegidos de um sol que ainda picava. O puto da minha amiga está um homenzinho cheio de pinta e disse-me "olá" pela janela, pelo que dei a volta e fui lá dentro despenteá-lo. Ao regressar trouxe duas cervejas e juntámo-nos às moças. A minha amiga trabalhou comigo; falámos de trabalho, ou, no meu caso, da falta dele. Falámos também dos Açores, que a amiga dela tinha acabado de visitar, e da vida. Uma outra rapariga entretanto juntou-se. Vinha manca porque tinha caído de mota e doía-lhe um joelho. A moça que foi aos Açores gostou de tal forma daquela força da natureza que amou o "cheiro horrível" a enxofre das Furnas, na ilha de São Miguel. Dissemos até já e retomámos o nosso caminho, que era para descobrir a pé.
Chegámos à Graça e descemos para o Martim Moniz. Ao longe ouvia-se música, suficientemente longe para se tornar imperceptível que tipo de música seria. Projectámos um concerto no largo, como na véspera. Entretanto a Fátima lembrou-se da Associação Renovar a Mouraria. Andámos alguns minutos perdidos até que a encontrámos no cimo da uma rua estreita: era de lá que vinha a tal música, ainda por cima cubana, maravilha. Da maneira que o cenário estava montado, com uma banda a tocar num pequeno palco instalado na rua e a malta a fazer fila para comes e bebes no interior da associação, a festa era um autêntico arraial, o Santo António de volta, saudades mortas. A banda tocava várias músicas dos Buena Vista Social Club num estilo de rua, com ginga.
"El Cuarto de Tula; le cogió candela.
Se quedo dormida e nó apago la vela."
Ali ao lado dançava em lentos movimentos circulares uma mulher alta, bonita, talvez cubana. A pose de rainha nunca perdia; olhava a plebe de cima, sem mostrar os dentes. Como companhia tinha duas amigas, uma delas indiana, cujas vestes tradicionais salpiquei com cerveja quando tentei, em vão, equilibrar o copo ao mesmo tempo que tentava pôr a gravar o Chan Chan, ou o carinho instantâneo que aquelas e quaisquer outras pessoas sentem quando ouvem os primeiros acordes desse som tão belo e triste. Multipliquei pedidos de desculpa à indiana, mas nada, ela fugiu para o interior da associação sem sequer me fitar. Nunca mais a vi, já a cubana lá continuava, na dela, que em certa medida era a de quase todos. Fiquei muito atrapalhado e só voltei a dançar três ou quatro minutos depois, quando o fim do ataque de vergonha me libertou.
A banda fez uma pausa. Por essa altura já tínhamos partilhado Coxinhas do Ronaldo, uma com frango, outra com vegetais. Estavam tenrinhas. No intervalo passaram um disco que compila cumbias psicadélicas do Peru: Roots of Chicha, primeiro volume. Não foi assim há tanto tempo que andava a ouvir este disco quase todos os dias, achei muita graça. A Fátima também, tanto que sorria e cantava:
"Nunca, pero nunca
me abandones cariñito."
O sol desaparecia, o calor nem por isso, pelo contrário, deixava de ser o efeito de uma causa para se tornar numa incompreensível massa pesada de ar quente, um convite tardio ao suor, um exagero.
Entretanto deixei cair o copo de vez e salpiquei os pés de um casal, que, acto contínuo, sacudiu-me, derrubou-me e fuzilou-me com os olhos.
Foi nesse momento que o Marco Fortes que há em mim percebeu: estava bem era na caminha.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Quando até A Bola faz uma capa destas...


O fiscal de linha levanta a bandeirinha para anular um golo. Está de frente para o lance e vê que há fora de jogo. Faz o que lhe compete num jogo de futebol.

O árbitro tem uma multidão à frente, não pode ajuizar o lance; nem tem como ver - é para isso que existe a função de fiscal de linha, para fiscalizar o que só se consegue ver a partir da linha. Presume-se que o jogo seja retomado. Presume-se mal.

O árbitro corre até ao fiscal de linha. Não aceita a decisão e pressiona-o para que a mude. "Vou-te dar uma ordem que não podes recusar". De repente o fiscal de linha já não acha que viu o que viu, passa a ver o que não viu. Golo validado. O segundo aldrabado, que no primeiro há um jogador da Académica em fora de jogo, mesmo em frente ao Patrício, que não vê a bola sair. E um penálti sobre o Mané que um assobio para o lado arrumou. 

O futebol português de regresso aos anos 90. Outros Pratas, a mesma sensação de que tudo é possível. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Bowie

Músicas poderosas ao ponto de nos fazer sentir maiores que este frágil saco de emoções, carne e ossos.

Crescem, agigantam-se-me pernas e braços, fico capaz de rebentar quando oiço a Heroes, e, rebentando, PUM!, chuva de flores em todo o mundo. Todos os sonhos ao meu alcance quando canto que serei rei e tu rainha.


Perco o chão quando o Bowie recorda Berlim - Where are we now? 

Uma música que parece ser desde sempre porque leva nela a melancolia de todos os adeus - pequenas mortes; que nos obriga a fechar os olhos com a força possível, soltar pela boca o que sai como ar mas por dentro rasga como a melhor faca. Tudo o que ficou por dizer, em quatro minutos e tal. Ainda aqui estarmos; os nossos sonhos é que não.