sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um Castelo na Escócia Music Awards 2011 - Canções preferidas


Vai quase tudo dar ao pop e rock anglo-saxónicos. Domina o amor. A lista é uma boa lista - o Castelo é muito pretensioso quanto a isso. Tanto que fala na terceira pessoa. Se sobrevivermos ao reveillon prometo que no arranque de 2012 chegará a lista escocesa dos discos preferidos. Beijos e abraços, tenham um ano inspirado entre paredes e fora delas, que sejam aumentados e haja assim pelo menos um par de festas verde e brancas no Marquês. Vemo-nos do outro lado.

(21/1)

21. Um Peito em Forma de Bala, Lacraus



20. Cruel nature, PJ Harvey



19. How deep is your love, The Rapture



18. I don't want love, The Antlers



17. Hearts of love, Crocodiles



16. Under Cover of Darkness, The Strokes



15. Bizness, tUnE yArDs



14. What you need, The Weeknd


13. Cruel, St. Vincent



12. My mistakes, Eleanor Friedberger



11. Helplessness Blues, Fleet Foxes



10. The Look, Metronomy



9. Piledriver Waltz, Alex Turner



8. Holocene, Bon Iver



7. Endless blue, The Horrors



6. Vomit, Girls



5. 212, Azealia Banks




4. The Rip Tide, Beirut



3. The Bay, Metronomy



2. Smash them all (Night visitors), The Dø



(rufar de tambores...)

1. Satellite, The Kills

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Na boca só o namorado

Tem uma noção muito pragmática, talvez desencantada, do sexo. Se gosta e é recíproco, come, mesmo que seja comprometida - é. Homem ou mulher, a dois, a três, não interessa, desde que haja sintonia. Entrega-se ao deboche com vontade. Beijar na boca é que não.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Natalices

(passámos rapidamente da Periquita para o vizinho Escatelar, expressão máxima do bom gosto)
 
Lá em casa todos fazemos alguma coisa no Natal.
 
O meu primo mais novo controla a televisão e ri-se dos erros gramaticais; o meu tio faz barulho e vai correr para a praia comigo na manhã de 25; a minha tia chama parvo ao meu tio e tempera o borrego; o meu primo mais velho frita camarões com whisky e também entra nas correrias natalícias; o meu irmão faz os fritos e realça o que vem para a mesa em promoção; eu vou buscar lenha e controlo a música; a minha avó resmunga, bebe, ri-se, queixa-se, censura o que desconhece, lembra o passado, chora, brinda sem beber, confunde-se, esquece-se de se lembrar e assiste a minha mãe, que faz tudo de todas as coisas, antes durante e depois; a namorada do meu irmão chega do trabalho a tempo de se rir e falar da casa dos segredos, sem porém a ver; que eu não deixo; o meu pai ajeita os óculos e supervisiona a qualidade do produto acabado.
 
Gosto de me deixar ficar pela sala de jantar na noite de 25, fazendo companhia às sobras já depois de todos recolherem aos quartos. Desta vez não houve Sozinho em Casa na televisão. Acho. Que para o ano haja mais neste Verão com sininhos e, mais importante, com a malta rija que nem um pêro.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Alegria

floresta desencantada
O D. fala com autoridade sobre os melhores trompetistas de Chicago, Paris ou Colo do Pito - povoado de Castro d’Aire -, a mesma com que o Gabriel Alves nos dava a conhecer o prato preferido de um futebolista antes de este cobrar um penálti. Dá a ideia de que sabe tudo o que há para saber sobre jazz. Está preparado. Por isso mesmo, e porque é bom moço, aceitei o convite dele para acorrer à reabertura do Hot Clube, ainda na praça da Alegria mas uns números abaixo do espaço anterior. Após estacionar a custo, dei por ele e outro amigo na cauda de uma fila que faria corar de orgulho qualquer funcionário que atenda num centro de emprego em Portugal. É que se perdia de vista. Dez, vinte, trinta minutos; cinco, dez, quinze metros. Entretanto já se percebia qualquer coisa a acontecer perto da entrada. Pareceu-me ver sair de lá o António Costa. Era o António Costa. Pareceu-me que estava acompanhado pelo Sá Fernandes advogado. Era o Sá Fernandes político. (A boina – faltava-a). A fila avançava a passo burocrático e exprimi impaciência através de um cordial “espero que haja uma torneira de cerveja logo à entrada, foda-se”, mas esse e outros argumentos eram de pronto rebatidos pelo D, cujas observações fantasiosas sobre as vantagens de estar lá dentro eram desarmantes. Demorámos quase uma hora a aparecer diante do porteiro. Já tinha ouvido desabafos em meu redor sobre o quanto aquilo estava congestionado, de modo que lhe pedi um conselho. Tive-o: deveria “empurrar as pessoas para ganhar espaço e encostar-me à parede do lado direito”, cito. Obedeci ao génio.

Para quem conhecia o primeiro Hot Clube as comparações são inevitáveis, até dolorosas. Não sei se aquilo é para ficar assim, mas, para já, “aquilo” é isto: uma sala interior possivelmente mais pequena que a prévia, já de si diminuta, com cortinados e paredes verde azeitona, praticamente desprovida de mobília – errr... nem um quadro? -, longe de fazer entender que é pelo jazz que ali estávamos. Como perdi muito tempo na fila para a entrada já só ouvi três ou quatro temas do Septeto do Hot Clube, que fechava os concertos. Clap, clap, clap. Fui depois lá fora, ver o que se passava. Fiquei surpreendido: deparei-me com uma espécie de jardim de Inverno, arborizado mas sem a força do verde. Árvores simples, nuas, tristes. Um espaço com potencial para receber coisas giras, mas, daquele modo, uma floresta desencantada, "careta", "árida", disse em voz alta, demasiado perto de um debate em círculo. Não sei se foi o “careta” ou o “árida” mas algum dos dois termos mexeu com a namorada italiana de um antigo colega de faculdade, que ouviu a descrição e depressa me informou que ali entre nós estava o arquitecto do espaço, que já agora também era o patrão dela. Pensei num bom plano para desaparecer de forma graciosa, mas não encontrei alçapões. Seja como for o D. mostrava-se embevecido com a noite: queria fazer parte daquele recomeço, dois anos depois de ter ardido um dos mais antigos clubes de jazz do mundo. Não lhe quis roubar o chocolate. Aguentei-me à bronca tácita, bem caladinho, que é como melhor estou. Uns minutos, vá.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Passarinheiro

Um dos truques para ter boas noites de sono é evitar passar os olhos pela casa da Fanny, Cátia e companhia. Aprendi isso ontem da pior forma, num serão em família. É que nem preguei olho depois de ver aquilo pela primeira vez. Quero ver quem me tira da cabeça que foi o heil bigode do pai da Fanny a deixar-me naquele desassossego. Não me venham dizer que foram os golos que o lobo falhou em Coimbra, tantos que dava para aviar todos os nossos adversários até Abril. Também não me convencem que a falta de sono se deveu ao excesso de copos da véspera, uma confusão que me levou a estilhaçar um prato no chão da cozinha tão tarde que já era cedo – (o teu sonho de criança é dar os bons dias ao teu pai enquanto recolhes cacos de loiça, balbuciando em vão). Tão pouco teve a ver com  a terapeuta de vidas passadas que conheci nessa noite, uma matulona que me chamou só com os olhos. Naa. Foi mesmo ouvir atentamente a Cátia, ficar fascinado com um novo mundo no qual um grupo de aves é um passarinheiro.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Não é vandalismo, é desespero

Foram anos a fio de protestos, cartazes, manifestações, petições, cartas, entrevistas, marchas lentas, médias e assim-assim, tudo em vão. Nem PS nem PSD quiseram saber. Qual era a parte do “não temos alternativa à Via do Infante” que não tinham percebido? A EN125 é uma rua grande que une Vila Real de Santo António a Sagres. Não são precisos estudos para se perceber porque razão sempre lhe chamaram "estrada da morte". A Via do Infante é a comunicação que nos resta para que o Algarve sobreviva à sua vincada sazonalidade e não é, na sua génese, uma SCUT - apenas o troço Lagoa-Lagos preenche esses requisitos técnicos. Quem anda a destruir os pórticos da Via do Infante, da forma que o tem feito, inutilizando o sistema electrónico de pagamento de portagens, sabe o que está a fazer. É sinal de que, esgotada a via diplomática, o povo continua a querer ser ouvido. Deixou, isso sim, de ser sereno. Ir ao sótão sacudir o pó da caçadeira está longe de ser a opção ideal - é, simplesmente, a última. Os governos que nos estão a empurrar de volta à estrada da morte não podem dizer que não foram avisados.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Vladimiro

Vladimiro, por Platon (Time)
Quando não está a aprovar a chacina do regime sírio ao próprio povo perante a comunidade internacional, ou a mandar prender e, como dizer, matar empresários e jornalistas, é bem provável que o vladimiro possa ser encontrado na sibéria a caçar baleias em vias de extinção ou a enfrentar ursos. Convenhamos: o homem mete respeitinho, que é bonito - o respeito -, e o autor desta fotografia bem o sabe. Trata-se do famoso Platon, que chorou baba e ranho para a poder tirar quando a Time fez do ex-espião do KGB "Homem do Ano” em 2007. A história, aqui (texto), ou ali (vídeo).

O pior da política são mesmo os políticos e a Rússia é um exemplo fiel disso mesmo. Ali tudo se resume a lealdades mafiosas, acordos de circunstância feitos por uma minoria de homens que controla o poder. Uma orgulhosa oligarquia de bandidos. Cada eleição é um espectáculo circense, e, tal como na Sibéria, em contacto com a vida selvagem, o próprio vladimiro já se sente intocável quando lhe pedem para comentar as milhares de denúncias de fraude registadas nas recentes legislativas, além do silenciamento das vozes incómodas através de incontáveis dentenções. “São clichés...”, diz o bicho, um homem que dobra frigideiras, como se quer.

O vladimiro já era primeiro-ministro e foi agora reeleito, mas também já tinha sido presidente por oito anos (2000-2008) e sê-lo-á talvez outros 12 – é candidato oficial desde terça-feira e, muito a propósito, o Medvedev, fantoche político com quem vai trocando de cadeira, alterou a duração dos mandatos presidenciais prevista na constituição de quatro para seis anos. Deste modo, o mais certo é que o vladimiro ocupe o cadeirão da presidência até 2024, governando durante um total de 20 anos. Mais, no Kremlin, só o Estaline (31).

À frente dos destinos da Rússia está um homem que sabe o que faz. Eu é que não percebo os russos. Como recentemente comentava o meu amigo PRR, que volta aqui a ser citado sem o saber, "não sei o que será preciso para compreender o ser-se russo".

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Doutor sem vaidade, na bola e na vida

Valeu, Doutor (1954-2011)
Devemos estar todos  um bocadinho de luto. Morreu o Sócrates, aquele magrinho barbudo que capitaneava a encantadora selecção do Brasil no Mundial'82, ídolo do Corinthians e de quem gosta do desporto-rei. Médico de formação, sempre se envolveu na política ao lado dos mais desfavorecidos. Foi o líder do movimento Democracia Corinthiana em plena época de ditadura militar no Brasil. Foi ele quem mostrou o caminho da igualdade. Gostava também de copos. Demasiado para um só fígado. Ontem morreu aos 57 anos, à terceira internação em quatro meses. Horas depois o Corinthians (Liedson!) era campeão brasileiro. Que violência. Fica o legado de uma referência, doutor sem vaidade na bola e na vida. De punho cerrado, com o sangue dos bons.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Se passares por polícias não cubras a cabeça

Estava fodido. Não me saía da cabeça o jogo em Carnide, perder sendo melhor. Tinha sido também um fim-de-semana agitado aqui do lado esquerdo, que, aliás, desacelerou um bocadinho. Só me faltava não encontrar um lugar para estacionar no regresso do trabalho, tendo o carro cheio de tralha para descarregar. Mas não seja por isso, nenhum buraco ali perto, de modo que o entrincheirei entre bairros de lata sob a benção de um cemitério, a última e mais comum das soluções, a um cigarro de casa - não fumo, mas é um funil temporário preciso. Frequentemente descarrego as coisas em segunda fila e depois vou estacionar o carro já sem documentos e valores, que deixo em casa, só naquela. Assim o fiz. Senti que roçava um dia perfeito quando comecei a sentir mais agudas as dores que já tinha na garganta e no lombo. Estava a chocar uma gripe, pensei, ao estacionar, e depressa cobri a cabeça com o capuz, que é para isso que eles existem, sobretudo quando nos sentimos engripados e é de noite e faz frio. E para casa caminhava quando a minha marcha foi detida por um de quatro ou cinco polícias que por ali andavam. “A sua identificação, por favor”, pediu-me. Perguntei-lhe porque raio me estava a pedir a identificação, ao que o polícia respondeu que tinha sido “registada uma ocorrência” na zona. Devolvi-lhe com tosse à mistura que o que o ocorria era que estava com uma carraspana olímpica, além de que não me podia identificar porque tinha deixado a carteira em casa depois de descarregar a tralha que trazia do Algarve, como de costume. “Esta zona não é famosa”, disse-lhe. Jovem, alerta, o polícia olhou-me, desconfiado, e teve a bondade de me deixar seguir. Agradeci e lá fui com a cabeça ao descoberto até cair de cama à boleia de medicação, com pausas de oito horas para poder pagar os medicamentos.

domingo, 27 de novembro de 2011

Pelas sombras

... não vires a cara, sim, é contigo - a seres livre, que o sejas, primeiro, de ti. Das tuas certezas, os nossos enganos. Sai do teu quintal, vê o que se passa, aprende: dois é a conta que D(eu)s não soube fazer por defeitos de ego. Não é que tenhamos demasiada culpa.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

James Blake

Ao saber que o segundo disco dos MGMT foi o meu preferido em 2010, um amigo chamou-me hipster. Bem, de onde a minha família vem isto resolvia-se com uma caçadeira, mas como eu até conheço a dele preferi chamar-lhe maluco – o Congratulations é honesto, subversivo, rico, rock com o melhor da sensibilidade pop, sei lá, é a melhor coisa que aconteceu à música em 2010. Conto pelos dedos de uma mão aqueles que entre os meus também pensaram assim, então e agora. Na verdade, mais de um ano após o lançamento, ainda não ouvi uma única música do álbum por aí, na noite que interessa. Sim, é menos dançável que o primeiro, mas nem uma?

Isto para falar do James Blake. Os meus amigos adoram-no; eu, epá, não gosto. Há quem ache que ele faz “minimal pós dubstep”. Outros dizem que ele é o grande artesão da electrónica silenciosa. Eu só o acho chato. Insisto em não levar muito a sério um músico cujo trabalho mais aplaudido chegou através de covers de temas da Feist (‘There’s a Limit To Your Love’) e da Joni Mitchell (‘Case Of You’). São covers bonitas? São, muito. E parecidas com as originais. Em ambos os casos. Não chega. Mas dá para fazer crescer água na boca. (Metáfora errada). Após vê-lo, ou suportá-lo, no Alive deste ano, a tendência era de que as posições se extremassem. Porém, algo mudou nos últimos dias - não muito, mas algo, depois de um amigo, um dos poucos que também ama o segundo disco dos MGMT, ter aclamado o arranque do EP “Enough Thunder”, que saiu no mês passado. Fui à procura e ouvi-o em streaming. Três vezes.

Goste-se ou não, há que reconhecer que a música do James Blake é, no limite, ambiciosa: quer a aceitação a partir do aborrecimento - partindo do princípio que se quer sempre uma aceitação favorável de algo que se cria. É estranho, mas implica ousadia. Por outro lado, sendo um cantor de emoções à flor da pele, parece ter vergonha de soar polido. Refugiando-se nos truques do dub, obriga-nos a trepar o muro para ver a beleza. É preciso ter muita paciência para entrar neste jogo do gato e do rato. Nem todos a têm. Eu, por exemplo, sou carneiro. Ascendência em touro.

O tema de abertura, ‘Once We all agree’, é cavernosamente chato, sendo simpático, e uma seca do caralho, sendo preciso. Não creio que aponte em direcção alguma – ou por outra, apontando, é para baixo. O meu amigo P.R.R. discordará. Mas partilhando a essência das restantes cinco músicas - a ideia de que é coisa para se ouvir a sós com os nossos botões - nada tem a ver com a qualidade que adiante descobri.

‘Fall Creek Boys Choir’, em parceria com Bon Iver, seria brilhante não fosse o caso de o James Blake se ter lembrado de encarcerar o falsete do Justin Vernon, frontman dos Bon Iver, numa roupagem auto-tune. Não havia necessidade. De resto é um tema r&b simples, eficaz e bonito, cheio das artimanhas digitais do costume, mas, neste caso, acrescentando algo à canção ao invés de simplesmente lhe segurar os cavalos. O tema-título é das melhores coisas que se pode fazer na inatacável combinação de voz e piano. Sem aditivos. The good old way. Há ainda a referida ‘Case Of You’, uma vitória anunciada. Posto isto: sim, todo o valor a quem desbrava novos terrenos, a quem ergue essa tocha – só assim a música avança. Foi assim que o James Blake ganhou um clube de fãs gigante. Mas, epá, o que ele faz, da forma que faz, aquilo que o difere da restante oferta, não tem sido para mim.

Isto, é. Fácil se torna de perceber que, aos 22 anos, o melhor dele ainda está para vir.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Eusébio calado é um poeta


No Sporting de Lourenço Marques, filial do SCP onde se formou

Tive a infeliz ideia de perder o meu tempo a debruçar-me sobre este tema, mas deves acabar o que começas. Parece que o eusébio concedeu uma entrevista à Única, revista do Expresso. Dizem-me que ofende o Sporting de forma gratuita. Estranho a notícia, pois nunca o vi como um incendiário dessa laia, e faço uma pesquisa na net (tempos modernos). Entro num site que refere o teor da entrevista. Leio umas coisas. Mais de cinquenta anos depois lembrou-se de negar a ideia de ter sido raptado no aeroporto de Lisboa pela agremiação sediada em frente ao colombo, e para lá ter seguido em vez de deixar as malas em Alvalade, como previsto. O eusébio não gostava nem gosta do Sporting, leio. Bem, se for só isto não se passa nada, penso. Continuo a fitar o ecrã. Leio mais. E sim, confirmo o que me tinham avisado.

Que não, que o eusébio nunca iria para o Sporting, que isso seria um disparate porque, diz o próprio, ou neste caso escreve o jornalista juntando em puzzle um qualquer punhado de interjeições cuspidas pelo pantera negra, tratava-se de “um clube da polícia, que não gostava das pessoas de cor, racista”. Leio isto com espanto, confesso. Não esperava que se descesse tão baixo. Percebi depois que estas acusações vinham estampadas na chamada de capa da Única e já circulavam de forma viral na net, dois dias depois de o Sporting participar em Luanda na Taça de Independência de Angola, onde homenageou o angolano Dinis, glória verde e branca dos anos 70.

O Dinis é o rapaz do lado esquerdo
Ora bem numa reacção imediata ocorre-me condenar o que leio, um insulto miserável vindo de alguém que foi recebido de braços abertos no Sporting de Lourenço Marques, uma filial do Sporting Clube de Portugal (SCP), depois de ter sido rejeitado duas vezes pela filial do clube que o notabilizaria como profissional. Gostava de o ver dizer estas coisas à frente do Hilário, amigo de infância com quem o eusébio jogou no Sporting de Lourenço Marques e que depois veio para o SCP. É feio cuspir no prato onde se come. Por outro lado se eu fosse o Pacheco Pereira diria que “a grande questão” se prende com as horas a que a entrevista foi concedida. Mas, honestamente, não tenho a certeza se o eusébio estaria para lá de grosso, o que é bem possível na medida em que conota o Sporting com o Estado Novo ao mesmo tempo que chama de “Padrinho” ao Salazar, aquele porreiraço de quem muita gente tem saudades, que perseguia, prendia e mandava matar opositores e aliás impediu o pantera negra de sair do país para jogar em Itália, no Inter. É.


Mas como eu até penso pela minha cabeça, e vejo mais do que o retrato oferece, diria que o departamento de comunicação da agremiação sediada em frente ao colombo lançou uma ofensiva mediática para encobrir as acusações de racismo que recaem sobre um médio espanhol que por lá têm, o jogador mais desleal que vi em Portugal desde que o Bruno Alves voou para a Rússia. Como? Através de entrevistas metralhadas por toda a imprensa, desportiva e generalista, falando do tempo e outras trivialidades e, numa delas, desviando o foco dessas acusações de racismo na direcção do Sporting, que nada tem a ver com o assunto mas é o próximo adversário no campeonato. (E também, talvez sobretudo, porque sim).

Uma encomenda de quem lhe paga a pinga. Um ataquezinho baixo, degradante, desferido por um antigo grande futebolista lamentavelmente transformado em moço de recados – isto na semana em que se soube que dia 26 será estreada uma rede com cobertura lateral e frontal no último piso da banheira vermelha para onde serão atirados os adeptos do Sporting.

No fim de contas, concluo não haver motivos para me sentir surpreendido: na agremiação sediada em frente ao colombo é patológico isso de se confundir grandeza com tacanhez, salvo algumas honrosas excepções – curiosamente todos meus amigos. E sim, a referida agremiação é o que dela reclamam os respectivos adeptos, de estar mais próxima da religião do que desporto – é que no desporto sempre existiu respeito pelo adversário, isso é cultural, incontornável. Pode haver excepções, mas no fim do dia as instituições têm de dar o exemplo por quem as dirige. E é aí que a agremiação sediada em frente ao colombo mostra o que é na eterna demanda de tudo fazer para que ninguém a suporte, só para depois vergar meio mundo sob o rótulo de “anti”, que é bem mais confortável do que espreitar o que reflecte o espelho. Nunca serão verdadeiramente Grandes, porque não são Inteiros. Dificilmente poderão ser respeitados. Assim foi, assim será.

sábado, 12 de novembro de 2011

?

Não tenho motivos para voltar aqui, disse-lhe, crua, nua, enquanto se dobrava para apanhar do chão o que horas antes foi deixando pelo caminho, com ajuda, não tenho motivos para trocar um amor que sufoca, maior que a vida, impossível, por outro de conveniência, dentro do contexto, correcto, não tenho motivos para achar que isto é melhor do que aquilo, não tenho motivos para voltar aqui, repetiu para si própria, pé ante pé do quarto para o corredor, escadas, rua e metro, incapaz de devolver o sorriso a uma idosa que se sentava ali em frente de mão protegida pela do marido – imaginou 50 anos de amor -, não tenho motivos para achar que isto é melhor, sussurrou ao espelho, assustando-se com a maquilhagem, não tenho motivos para não gostar de mim, mas não gosto, aceitou, não tenho motivos para não gostar de mim e não tenho motivos para não gostar dos outros – não podes gostar dos outros se não gostas de ti -, não tenho motivos para ser como sou, reflectiu na almofada, não tenho motivos para reduzir a conveniência e correcção o que é meu, real, sonhou, não tenho motivos para querer como prioridade quem me vê como alternativa, apercebeu-se, de manhã, à janela, mordendo meio lábio, tenho motivos para voltar, disse.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Ela (e o vento)

"txim txim in 5, 4, 3... (A. e C. deverão desculpar os holofotes)"
Nunca tinha conhecido alguém que chorasse com o vento.
Da castanha esquerda um fio-cascata.
Pingo a pingo um mar tropical.
Adivinho corais.

Mergulho.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Contágio

Dizem que a paixão te conheceu, e em ti ficou.
Pelas minhas contas és duas vezes em ti.
Nos outros, muitas mais.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Sábado à noite

O Transmission é um bar de metal pesado no Cais Sodré que está a atravessar uma aguda e rentável crise de identidade. Hoje em noite mantém as casas de banho mais badalhocas, o serviço de balcão mais antipático e o ambiente mais desprovido de oxigénio de toda a Europa Ocidental, mas é na música, o fio condutor, que tudo se passa. A mudança terá começado durante os meses em que vários bares-discoteca da zona estiveram fechados, arrastando para o Transmission um tipo de clientela pouco familiarizada com antros do género. Ao nariz dos donos deve ter chegado o odor do dinheiro. O intenso e doce odor do dinheiro. Acto contínuo: resolveram ampliar o tipo de oferta musical, dividindo o bolo metaleiro com outros géneros de rock e pop. Não há engano: o espaço pode ser medonho, é na verdade um buraco muito feio, mas se for para ouvir umas guitarradas late night, já meio vesgos, tudo se faz.

O Transmission atrai gente muito interessante. Há uns tempos vi por lá um casal de namorados equipado com óculos de mergulhador. Trocaram carinhos o tempo todo - os óculos dela sucessivamente a mergulhar nos dele. Voto naquele amor. No sábado resolvemos acabar por ali a nossa noite, e, ao contrário do que é comum, havia mais gente sentada em redor da pista de dança do que a fazer headbanging. Os headbangers da ordem pairavam por lá, sentados, mas não estavam para aturar Talking Heads. Uns obviamente entediados, outros mais entristecidos. Havia ainda quem fizesse de Vitinho. Na minha cabeça ouvi aquelas caixinhas de música de dar à corda, para crianças, mais ou menos isto aqui em baixo, mas sem o martelo pneumático que aparece depois do primeiro minuto. E os gritos guturais, lá para o meio.


Mas a hora dos Vitinhos chegou. À ressuscitação desnecessária dos Limp Bizkit, vejo a rapaziada deixar o leito de sono, formar a roda do pescoço na pista de dança e começar a rodá-lo como se não houvesse amanhã. Eram sem dúvida diferentes do habitual, estes metaleiros, um grupo de seis, contei. Um deles, o que tinha ar de ser mais novo, vestia uma t-shirt onde nas costas se lia, “Let’s Rock”, coisa que não lhe assistiu quando o DJ passou Doors ou Arcade Fire. Além do miúdo do rock, havia um com uma t-shirt azul bebé e outro frequentemente preocupado em tirar as beatas das solas dos nike impecavelmente brancos. Os  restantes limitavam-se a ficar por ali encostados, sem interesse no que se passava, ou a aprender sem encosto. Nenhum tinha o cabelo comprido.

Ao lado deste grupo arrastava-se uma mulher com lentes de contacto verde fluorescente e um desenho a meio do queixo que me evocou o David Villa, do Barcelona. Havia uma outra, já nos seus ‘quarentas e’, que se movimentava pelo espaço a grande velocidade, com o pânico de quem procura a saída de um labirinto. (Lembrei-me do Asterix). Passou o tempo a pedir cigarros e a interromper conversas. Fingiu não ter tido a intenção de me passar a mão pelo meio das pernas quando fui à casa de banho e me cruzei com ela, que de lá saía. Quando me virei para a confrontar já ela voava pelo outro lado, montada (snif) na sua vassourinha branca. Achei melhor não arranjar problemas.

Já para o início da manhã começou, enfim, a passar algum metal. Motörhead, por exemplo. Coisas que não conheço, mas com as quais passo bem. Até que o DJ resolveu ir à casa de banho e deixar a rolar um som que me pareceu dos Interpol, mas que desconhecia. Seria, certamente, a música da vida de uma moça que aterrou por ali com o coração à flor do cabedal. No fim da música, já com o DJ de regresso, perguntei-lhe o nome daquela maravilha. Gravei-o no telemóvel, sorri e fui para casa. Tinha a noite ganha.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Mais perto



Tentem escre«ver às escuras, não é fáicl.
Amar, é.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Crónica de um pagode anunciado

pedro rios (cabelo mais curto) e rui coelho (cabelo mais comprido), algures lá atrás depois de verem wrestling a mais enquanto a minha tia se iniciava nas artes da fotografia, primeira aula

Há sempre alguém que nos diz, "tem cuidado", e no meu caso é o meu pai. Sempre achei que ele exagera no antecipar das consequências, que vê perigos a mais por aí, e nisto reflectia no interior do meu carro quando me apercebi que tinha deixado o telemóvel no balcão do nosso bar, na Rocha, depois de me ter despedido dele. Começava com disciplina um trajecto de 600 km até Espinho, três dias para terminar férias com ‘escala’ em Lisboa, estacionar o carro e regressar aos comboios. Dei meia volta, recuperei o telemóvel sob o olhar reprovador do meu pai, com ligeiro abanar de cabeça – “tss, tss” em balão de cartoon - e galguei o país.

Passou pelo menos metade da minha vida desde a última vez que tinha estado em Espinho. Dessas sucessivas férias de Verão cinzento com o meu primo Pedro guardava pequenas noções de espaços e pessoas, mas a maioria foi-me apresentado como novidade.

Depois de uma primeira noite calminha no Porto, com passagem pelas galerias e armazém do chá, passei o dia de sexta-feira a passear pela capital do vólei em Portugal, na qual uma avenida está baptizada com os nomes do Miguel Maia e do João Brenha, heróis da terra. Uma das coisas que me surpreendeu e que decerto já me tinha sido dito quando era puto é que Espinho dá a mão a Nova Iorque nisso de numerar as ruas ao invés de as nomear. Não tem nada que saber: as ruas paralelas ao mar são pares; as perpendiculares, ímpares. É mais fácil não nos perdermos em Espinho, uma rampa gigante que liga a casa do meu primo (nascente) ao mar (poente).

Espinho é tipo NY
Caminhámos ao longo da marginal observando a paixão dos surfistas – aqui o mar é ‘brabo’ e frio, nada a ver com a piscina sem ondas que banha o algarve – e depois seguimos para o centro da cidade. Homem culto e reservado que só abre a boca quando tem algo a dizer, o pai do meu primo relatava-me como tudo já tinha sido diferente, insistindo no pretérito perfeito do verbo ser para das coisas falar. Das minhas memórias de uma cidade e respectiva área circundante altamente industrializadas pouco restou: as fábricas estão fechadas, os grandes empreendimentos foram demolidos ou abandonados e os novos aterram na paisagem urbanística como naves espaciais – casos do multimeios ou da biblioteca, recentemente aberta sem mobília. A favor: a cidade é pequena, mas tem tudo num curto espaço geográfico: hospital, escolas, mar, casino ou infra-estruturas desportivas que fariam corar de orgulho qualquer cidade - estádio de futebol do Espinho à parte.

a via pública é mesmo pública no bairro dos pescadores
O melhor de Espinho, além dos (últimos) dias e noites de Verão que por mim esperaram? As pessoas, uma delícia para qualquer visitante ávido de conhecer o que se passa. Fiquei particularmente encantado com o bairro dos pescadores, onde a via pública é utilizada para estender a roupa. No dia seguinte, durante um jogo de futebol amador, percebi o motivo pelo qual é melhor a câmara municipal não se meter com as gentes vareiras. Antes de regressar a casa para lá deixar o pai e recuperar o filho, fui ao Picoto, a pedido.

Eu e um amigo que muitas vezes me acompanhou a Queimas do Porto sabemos há alguns anos que o Picoto existe, mas nunca fizemos ideia de quais as coordenadas. Frequentemente passávamos pela placa certa, a não sei quantos km, ficando fascinados pelo nome, mas nunca ninguém nos soube explicar onde ficava, que tipo de terra era, essas coisas. Como o pai do meu primo tinha nascido lá ao pé, levou-me onde eu queria. Ou assim achava. Consegui tirar uma fotografia ao lugar do Picoto, mas não vi nenhuma placa indicativa de que o Picoto era o Picoto. Mèrde.

este cruzamento é no coração do Picoto, juro Marcos!

Quando passeei ao longo da marginal gostei especialmente da pinta de um café, o Barco Boador, ao qual regressei assim que o meu primo saiu do trabalho. A empregada, que tinha “o namorado mais fodido para a pancada da cidade”, aviso do meu primo, trouxe-nos dois finos e um sorriso sedutor. Na aparelhagem, Beatles. Quando os fab four se calaram pedi-lhe para repetir a passagem do disco e ela olhou-me de um modo indecifrável, não sei se odiou ou amou. Apostaria na última opção. Misteriosa, a miúda. Ao fim do dia muitos casais fotografavam o horizonte entre beijos e caminhadas sem pressa. A nossa mesa ia ganhando mais pessoas. Por lá passou a Cristina, irmã do Pico, a Jo, namorada do meu primo, e também a Cristina Pinto e a Melissa, aquele tipo de mulher de quem é fácil gostar mais do que se deve. Ao grupo ainda se juntou o Rapper - nadador-salvador e DJ que vinha de férias no Dubai e arredores - e uma estudante de medicina, cujo nome não recordo, acompanhada da respectiva mãe, por quem cruzei a estrada de prato na mão para oferecer parte da minha salada de búzios, que aterrara há segundos na mesa. Uma espécie de “venho em paz” do Novo Oeste, ao pôr-do-sol.

no Barco Boador
Jantámos no restaurante “Parte o Prato”, no Porto – eu, o Pedro, a Jo, a Melissa e mais duas amigas da Jo - a Joana e a Marta. O batalhão de amigos do meu primo não tem fim, nem papa grupos. Uma grande família, quase toda a viver num raio de poucos quilómetros e unida pelo amor ao reggae. Qualquer amigo do meu primo ouve reggae. É uma forma de vida.

jah bless
Pedi um bife Serrano com batata a murro e entornei vinho da casa. Antes, pão com alho e queijo. Depois café e uma entrada a pés juntos na noite com um shot de tequila no bar Praça. Por ali conheci o Ivo, um dos dois amigos do meu primo que tem o bom gosto de ser sportinguista. Troquei impressões igualmente com o Pedro, que perdeu o pai há pouco tempo e merecia uma especial atenção de todos aqueles que o conhecem. Loucas, a Débora e a Diana também agitavam as águas. A noite acontecia.

Hesitámos muito sobre a discoteca à qual acorrer. Do meu lado a opção recaía num espaço que destilasse algum tipo de rock, mas só a Melissa me acompanhava nesses apetites. Por isso mesmo fomos ao Tendinha ainda cedo, só a ver o que se passava, e lidámos bem com a casa vazia. Pedimos aos seguranças para nos deixarem entrar, pulámos 20 segundos ao som de qualquer coisa antiguinha e de lá fugimos. O regresso far-se-ia mais tarde, num registo menos descontraído.

O Pitch foi a escolha. Supostamente deveria acontecer por lá uma festa de moda. Falso alarme. Uff. O clube tinha dois pisos – o superior era bar, com um som electrónico mais calmo e alternativo; o de baixo, discoteca, com um martelo ou outro. Gostei do conceito, não gostei da música, em qualquer dos casos menos arrojada do que o pretendido. Daí que tivessemos ido embora. Esperava-nos a GARE, onde haveria uma festa de ‘drum’ com Marcelinho da Lua. Houve também tempo para visitar uma pista onde passava hip-hop e r&b, um tipo de shake a evocar andamentos de outras vidas. O ambiente era festivo e da paz. A casa esteve longe de encher. Já de manhã voltámos de comboio, eu e o meu primo, resistentes da noite depois de nos termos chateado à porta do Tendinha, no qual todos pretendíamos entrar, menos ele, que tinha aprontado uma com um segurança horas antes, sem nós sabermos.

deitar cedo e cedo é erguer é para malucos
Nessa noite conheci também o Moreira, que vive nos prédios-irmãos àquele em que reside o Pedro, e que joga futebol amador no Rio Largo. Na tarde seguinte ele tinha jogo do campeonato popular de Espinho e demonstrei interesse em ver aquilo. Mal acordámos, com um cabeção olímpico, acorremos à cozinha para almoçar e de seguida viajámos um punhado de quilómetros até ao campo, situado em Idanha. Havia muita gente a assistir ao jogo e pouco espaço para estacionar. Chegámos com a primeira parte a meio. Tal era a quantidade de carros nas redondezas que o Pedro optou por encostar o dele junto ao portão de uma casa, de tal modo que quase tapava a saída da garagem, mas o dono depressa apareceu a enrolar o bigode, depreocupando-nos.

- Eu não devo morrer enquanto o jogo decorre, mas se morrer a minha mulher atira-me ao rio.

Agradecemos as palavras sábias do senhor e fomos directos ao bar do clube investir num par de minis, 50 cêntimos cada. (Juro).

Por aquela altura fiquei a saber que o Rio Largo é um dos clubes mais fortes da prova, e defrontava a aguerrida equipa do Cantinho, oriunda precisamente do bairro dos pescadores, o tal onde a via pública é espectacular. Numa das margens do campo pelado corria um rio, que não o Largo, e na outra passava um troço de auto-estrada. O Cantinho jogava ali, em casa emprestada.

Logo nos primeiros minutos percebi que o Moreira, dez nas costas, posicionava-se a médio ofensivo, frequentemente a cair para as alas, sobretudo a esquerda. Em redor do campo encontravam-se várias figuras ilustres da cidade, casos do senhor Sousa, que faz os melhores panados de Espinho, do presidente honorário do Rio Largo, largamente falho de dentes no teclado superior, e também do dono do Zé Grande, casa onde as sandes de presunto podem alimentar uma família católica de etíopes subnutridos, garantia da Cristina Pinto.

Há uns anos falava muito ao telefone com a Cristina, sem saber muito bem porquê. Esta foi a primeira vez que a conheci, olhos nos olhos. É uma mulata branca, ou uma branca mulata, simpática à brava e também ela amante de reggae – talvez por isso, pelo volume alto do som que trazia no carro, quase me atropelou diante do Barco Boador, na tarde da véspera. Correu tudo bem.

Para surpresa minha, o jogo estava a ter muita qualidade. Ambas as equipas tinham jogadores talentosos e preocupavam-se em tratar bem a bola. Poucos charutos para o mato. O Rio Largo tinha mais bola e a meio da primeira parte o Moreira foi lançado na cara do guarda-redes do Cantinho, mas perante a carga pelas costas de um defesa contrário rematou fraco, à figura.

Grande oportunidade desperdiçada, coisa que não nos assistiu, a mim e ao Pedro, no momento de atacarmos a segunda rodada de minis, ao intervalo. Antes, o primeiro golo do jogo para o Rio Largo, com assinatura do Quim Nando, rapidamente por mim baptizado de Andrea (Pirlo). O “21” apanhou a bola a pinchar e de muito longe, sem companhia em redor, aplicou-lhe veneno direccionado ao ângulo superior direito. Um espanto de golo.

Ao contrário do que seria de prever, o intervalo foi pouco agitado no bar. Não que houvesse lá pouca gente com sede, mas porque as minis já eram. Má sorte dos donos, ou gestão duvidosa, como lembrou o meu primo. À remessa seguinte já todos nos babávamos por uma fresquinha. O sol nunca perdoou.

r.i.p. t-shirt e calções e havaianas 2011

Um dos adeptos mais inquietos era um senhor cheio de escoriações no rosto e várias tonalidades de pele nas mãos. Vestia todo de ganga – o casaco mais escuro que as calças. O meu primo teve pena dele e ofereceu-lhe uma mini com o meu dinheiro, sendo depois louvado por Deus pelo senhor da sede, agradecido como quem recebeu o primeiro gesto de caridade em todo o ano civil.

No regresso dos balneários o Cantinho surgiu mais forte, enquanto o sector criativo do Rio Largo ficava sem pernas. O Moreira ainda jogou bonito aqui e ali, somando uma coxa, toques consecutivos sem deixar cair a redonda e um canto olímpico devolvido pela trave, mas seria substituído juntamente com um dos avançados mais rápidos ali à hora de jogo. Resultado: o Rio Largo ficou sem ideias na frente, o Cantinho entusiasmou-se e com o apoio ruidoso das vareiras chegou ao empate por um quase anão que fazia diabruras pelo flanco esquerdo. A divisão de pontos custava especialmente ao presidente honorário do Rio Largo, já de si furioso por ter sido esquecido numa das rodadas de minis, ele que reclamava já ter acabado os antibióticos na semana transacta. Num jogo do campeonato popular de Espinho a cerveja é como água, não se nega a ninguém.

Mas o verdadeiro foco de interesse ocorreu ainda antes do fim de um jogo que não chegou a acabar. Ao assinalar de um penálti discutível a favor do Rio Largo, com dez minutos para se jogar, os jogadores do Cantinho cercaram o fiscal de linha que o indicou e não houve mais jogo para ninguém, ordem do árbitro principal. A partir daí só se berrou, insultou, perseguiu e agrediu. Com as garrafinhas vazias de cerveja aos pés, eu e o meu primo ríamos muito. Um adepto do Cantinho que tinha passado o jogo com a perna direita em cima da barra que separa a assistência do campo, exibindo alguns centímetros de osso e a meia esticada por baixo da calça de fato, e outro vestido de fato de treino fizeram os 15 metros obstáculos para aviar o juiz assistente e só não o conseguiram porque foram travados pelo primeiro incendiário da coisa, que revelar-se-ia simultaneamente o primeiro samaritano do pedaço. Paulo Cavalo, de nome. “Não admira que seja Cavalo, só dá coices” – dele se disse durante o jogo. Atleta do Cantinho, o Paulo Cavalo é daqueles avançados a rondar os 40 anos, que sabe tudo da bola mesmo que corra pouco, e domina a situação. Domina também a terra do pelado, que agarrou para arremessar à cara de um adversário durante o jogo, e mantém igualmente um amplo domínio das próprias mãos, que utilizou para aplicar uma valente lambada num defesa contrário. Em nenhum dos casos viu sequer o amarelo. Nem aí, nem a seguir do apito para o penálti que não chegaria ser cobrado. No meio daquela confusão toda, com o Cavalo a relinchar encostado à cara do rapazito da bandeirola - “Eu deixei os meus filhos em casa, caralho!!!” - e de novas tentativas de agressão por parte do senhor da meia e do de fato de treino, o árbitro decidiu dar o encontro por terminado. 1-1, mas o Rio Largo deve ganhar na secretaria, opinei ao meu primo, que devolveu: “a secretaria é num tasco ali em baixo, escolhe-se um representante de cada equipa e quem beber mais, ganha.”

Maturei um bom bocado nos méritos daquele tipo de julgamento, e depois virei a agulha, pensando, como vai aquele fiscal de linha com cara de moço de recados regressar aos balneários? Uma multidão esperava-o, sendo que as gentes do bairro dos pescadores estavam em maioria. Houve dois ensaios. O primeiro teve falsa partida, com demasiadas pessoas a espumar pela boca e a encurralar o xavalo para o moer ao punho fechado. No caos uma senhora levou uma chapada e ficou fora de si durante mais que muito, para desespero do marido, que não tinha visto nada – veredicto: culpado.

À segunda, já com o miúdo da bandeirola protegido pelo incendiário de Calcutá Paulo Cavalo e um responsável do Rio Largo, lá se deu a entrada nos balneários do trio de arbitragem. Sempre achei os árbitros loucos. Agora, que conheço aqueles que apitam nas provas amadoras, sem policiamento, vejo tudo numa outra dimensão.

Já de banho tomado, o Moreira assistia a tudo junto de mim, do meu primo e do Ricardinho, o amigo mais alto do meu primo, aquele que tinha entrado pelo Rio Largo no decorrer da segunda parte e dava-se o caso de ser casado de fresco. Não podia jantar connosco, horas depois, para desconforto da Jo, que queria o casal junto dela, mas apareceria na discoteca que abria em Espinho naquela noite, acompanhado pela mulher. Discoteca que, ao que se dizia, abria somente até Janeiro, a título experimental. DJ para cortar a fita: Rui Vargas.

Sabia e continuo a saber pouco da noite no Porto, mas também não andava famoso quanto aos locais obrigatórios a visitar durante o dia. Insisti na Casa da Música e lá me levaram. Já passavam das 18:00 mas nunca nos passou pela cabeça que a circulação no espaço estivesse vedada a todos os pisos, excepto o da entrada, que sucintamente nada tinha que valesse a pena ver. Abordei uma funcionária e esta explicou-me – “o último horário de visitas foi às 16:00, agora só amanhã de manhã”. Fiquei fodido mas sorri-lhe com a mesma candura com que de seguida fui vagueando até ao corredor oposto do piso, muito atento a tudo, e comecei a subir os degraus rumo ao segundo piso, conduzido pelo som de uma orquestra sábia. O Pedro e a Jo fizeram o mesmo, sem que tivessemos combinado coisa alguma. O que tem de ser tem muita força. Fomos apalpando a estrutura, embevecidos com cada detalhe pensado pelo Rem Koolhaas  (e não o Siza, ó burro) – a Jo estava especialmente interessada em sorver tudo, é arquitecta. Continuámos a subir. No terceiro andar vimos uma parede almofadada em triângulos expostos e nela encostei a cara num desconforto fofo. Também por ali havia bancos feitos integralmente em cortiça, o que não deixou de espantar o meu primo, que trabalha nos Amorins. Continuei a subir e cheguei à cafetaria VIP, de onde se podia ver o anfiteatro principal através de uma vidraça. Estava a decorrer um concerto não sei bem de quem. Ao meu lado podia ser visto pelas pessoas que ocupavam a sala, cheia que nem um ovo. Observei os movimentos histéricos do maestro, com resposta a preceito dos músicos, e tirei o som do telemóvel. Desviei o olhar para o terceiro piso e vi o Pedro a beijar a Jo. Senti-me bem. Quando eles se aproximaram do som até o poderem “ver”, apareceu um segurança em sobressalto.

“Boa tarde!, não podem estar aí!”

O meu primo perguntou-lhe, auto-estupidificado, “ai não? Ah..”, enquanto eu fazia uma expressão de espanto pouco convincente. Aguentei mais uns segundos para tirar um último retrato mental e comecei a descer até à saída, com o segurança atrás de nós a fechar as portas pelas quais tinhamos entrado onde não era suposto. Puta que pariu as câmaras de segurança. Saímos com a sensação de termos feito uma 'visita de médico' em que sempre se disse olá.

porto sunset, sem photoshop

Dali fomos lanchar junto ao mar, num café onde pedi um doce tradicional – folhado com creme de ovos, por indicação de uma funcionária atenciosa -, um galão e uma tosta de queijo com pão alentejano. Depois fomos para casa estender as pernas até ao jantar, que seria na Associação Beneficiente dos Amigos Pobres de Grijó. O espaço era assim: entrávamos numa sala típica de tasco onde se vê a bola e se joga às cartas e seguimos para outra de restaurante. Sentámo-nos numa mesa redonda situada no palco do que em tempos foi um teatro. Personagem principal: o barro, que servia de base para toda a loiça. A comida foi servida em telhas. Picanha servida em telhas e regada com o tinto certo.

Fomos quatro na mesa, eu, o meu primo, a Jo e o Moreira, e em breve pareceríamos oito. Eu pelo menos já me sentia por dois quando pedi Jameson à menina que nos atendia, tendo porém que optar por JB 15 anos quando ela me respondeu, “James? Não temos”.

De Grijó voltámos a Espinho, rumo ao Delícia, o café onde tudo começa. Ali conheci mais uma mão cheia de amigos do Pedro enquanto a TVI filmava uma minha conterrânea a enfiar-se debaixo de um cobertor e a estacionar de boca entre as pernas de outro concorrente do programa dos segredos.

“Portimão, respect!!”, gritei.

Próxima paragem? A zona dos bares em Espinho, de perfil com o Barco Boador, e aí encontrei o que tanto queria, finalmente: um bar que passasse rock. Fartei-me de curtir, chateei o DJ tanto quanto podia e fui feliz. O DJ, com tanta e tão rara atenção aos gostos dele, também não se queixou. Drums, dEUS e outros que tais deixaram-me com moral para atacar a discoteca Abox. O nosso grupo era grande, mas faltou a Cristina, que vinha de um casamento, exausta, e a Melissa, também ela exausta da véspera. Ao invés, conheci outros amigos, como o Backup, que estava a treinar para uma maratona e tinha corrido duas horas. Antes ainda fui a outro bar atacar o bolo de uma aniversariante que não conhecia, mas era no Abox que acabaríamos a noite. O som era porreiro, um pouco repetitivo. O ambiente era de bom gosto, excepto quando uma rapariga com musgo nos dentes quis invadir a cabine do DJ, uma e outra vez. Menos gente do que seria suposto. Aguentámos umas belas horas a gingar e já com o meu primo estendido no carro fui com amigos dele comer ao café Latina, onde entrei com um colar do havai e um chapéu indígena como adereços, ou coisa que o valha. Um grupo de mulheres rodeou-nos e declarámos que aquela seria a minha última noite da despedida de solteiro. Casar-me-ia dentro de duas semanas, em Barcelona. Recebi votos de felicidades e a especial atenção de todas, com destaque para a mais velha, já nos seus cinquentas e a única que parecia realmente feliz por me saber prestes a contrair matrimónio. Uma merenda, um galão e muitos conselhos depois, despedimo-nos com afecto.

ia fonde ma na sende
O meu cabeção ao acordar era de novo significativo, mas ficaria ainda maior quando vi a minha adorável tia munida de um saco cheio de comida para eu levar para Lisboa. Trouxera para o Norte uma mochila às costas e voltaria para Lisboa com o supermercado nas mãos. Ele era tupperwares com carne e batata cozida, outros com sopa, sacos com pão, fiambre da perna, queijo, pacotes de massa, leite e fruta. Quando cheguei a lisboa descobri um ovo embrulhado em prata. Não sabia o que dizer mas enchi a minha tia de beijos e deixei pelo menos a fruta e o leite na cama, só para que o fecho da sacola inesperada não ficasse arruinado.

Depois de almoçar no café que supostamente teria a melhor francesinha da cidade - falso alarme: encontrei o bife a meio da refeição, mas depois foi-me explicado que quem cozinhava bem era o pai e não o filho, sendo que era este último que estava ao serviço -, e de ver o City fazer pouco do United no dérbi de Manchester, em Old Trafford, despedi-me e apanhei o comboio das 17:07 sob um temporal revelador. Depois de dias perfeitos, o Verão terminava ali.

Nisto pensava quando, entrando num comboio, comecei a atavessar carruagens a fio à procura da minha até encontrar o “pica”, que me explicou ter apanhado o comboio errado. Teria de sair em Aveiro. Assim o fiz e esperei até aparecer o meu, no qual estive cercado de moças estudantes e passei mais tempo a recolher-lhes as malas da bagageira estupidamente alta do que propriamente a dormir ou ler. A senhora de idade que se sentou ao meu lado aproveitou a deixa e pediu o mesmo. No fim ofereceu-me bolachas maria. Qualquer coisa já tenho emprego.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

De Moncarapacho a Cachopo foram quatro horas de distância e duas de paleio

A mãe da afilhada da minha mãe está mal, acamada, precisa de cuidados continuados e há 850 vagas para demasiada gente, de norte a sul. Aqui por casa fazemos o que podemos: oferecemos um jantar à filha. A afilhada da minha mãe mora aqui em Portimão mas raramente se deixa ver. Vive com um holandês que se portou mal com ela antes de se portar bem. Na dúvida, depois dos 40 anos, sozinha, deixou-se estar. Raramente vem cá a casa mas, depois de uma corrida até ao mar – ir, para voltar - deparei-me com ela aqui na sala, a falar com os meus. Tratei do meu festival de suor com um duche gelado e regressei para lhe espetar dois beijos e integrar a conversa de família.

Trocámos banalidades e rapidamente chegámos à crise, coisa que assiste mais a uns do que a outros. Demorámo-nos na “ideia de que isto está muito mal”, com a minha avó Vivi especialmente empenhada em lembrar que “já ninguém quer trabalhar, só estudar”, o que era o caso da afilhada da minha mãe, hoje com 50 anos e sem emprego. E foi já depois de lhe carimbarmos a procura por um que veio à baila o convite para ficar e jantar connosco um suculento franguinho no churrasco, próxima ceia de natal de tanta casa neste “país”. Ela, frágil a ponto de, achei, se poder partir a qualquer momento, hesitou tanto quanto pôde. No limite, lançou o argumento do facebook – “já lá não vou há uma semana!” -, mas à minha intervenção mais incisiva lá aceitou comer connosco, de olhos encharcados, a reflectir a dor de uma perda anunciada. A minha mãe correu até à afilhada e beijou-lhe a nuca.

Como habitualmente, as refeições cá em casa com convidados são feitas na sala de jantar, uma mesa redonda onde cabem pessoas, bem diferente da mesa da cozinha onde o raio de acção de cada um é parecido ao de um bar aqui da Rocha, o Pipas, em hora de ponta (02:00 – 04:00, sextas e sábados). À cabeceira a minha avó Vivi, claro, mestre de cerimónias. Habitualmente os homens da casa ficam ao pé dela, esforçando-se por lhe sacar o melhor que tem para oferecer uma mulher tão-sem-máscara, tão-exactamente-como-é, nascida nos loucos anos 20: opiniões e estórias castiças. A desta vez prende-se com uma viagem de mula que a Vivi fez entre Moncarapacho e Cachopo, com a missão de encontrar familiares. Reza a minha avó que se montou na mula dela "pelas duas da noite", e no escuro do mato arriscou por caminhos de cabras até chegar onde queria pelas seis da manhã. Ou assim crê ter acontecido. Foram quatro horas de viagem que demorou duas a contar, pois não parámos de a interromper para exigir mais detalhes sobre coisas já ditas, outras nunca imaginadas, ou encher-lhe o copo de Periquita e também a paciência. De Santa. Foram horas bem passadas, cheias do que levamos desta vida: comer, beber, conhecer, brincar, partilhar com os nossos. É o que daqui levamos.

domingo, 16 de outubro de 2011

O Vento dos Outros, Raquel Ochoa


“Era o primeiro vulcão que avistava na minha vida, tinha o brilho do irreal, os olhos piscavam e conformavam-se com a verdade de que a Natureza é algo alucinante, independente, legislador da maior lei do mundo, a lei do acaso.”

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“Nico prometeu-me um verdadeiro safari por aquela zona – se quisesse – com pumas, cobras, casebres no meio das montanhas e efectivo contacto com a Natureza. Entuasiasmava-se tanto a falar que às vezes receava que se esquecesse de inspirar. Descrevia-me anteriores excursões organizadas por ele, em que as pessoas tinham de andar a fugir dos animais selvagens e dormiam nas árvores como koalas. Prometi-lhe que voltaria (...)"

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Tanta luz

Se não fosse portuguesa seria indígena – transmite verdade quando olha. Morena, quase chilena, bonita como poucas. (Per)segui-a à distância assim que a vi. Perturbava-me tanta luz e queria ser atingido. Quando chegou a hora de a chamar apanhei-a desprevenida. Voltou-se sem hesitar e abri as têmporas de espanto: ainda não consegui tirar os olhos do que vi, do que vejo. Nem tentei. O olhar, sereno, esconde um peito inquieto. Nele cabe o mundo – o peito está preparado; o mundo é melhor que se prepare. Fácil é vê-la perder-se pelo fascínio das coisas. É mais alta por isso: vive dois palmos acima porque frequentemente se eleva com (o) muito (que) (pode) (ser) (o) pouco. Dou por mim encantado por uma menina-mulher. A culpa é dela: um espírito livre, de criança, que de magia vive. Impossível resistir. Quero fazer parte daquela vontade descalça de ser feliz.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Celine Dion é para artistas, não é para labregos


"e agora os algarvios!"

O casamento do Hugo e da Sílvia foi aquele em que a pista de dança do copo d’água na Quinta dos Rouxinóis foi aberta pelos convidados e não pelos noivos. Oficiosamente, pelo menos – só um par de horas depois dos primeiros passos trocados é que marido e mulher apareceriam, juntinhos, para voarem até à lua pela Voz do Sinatra.




Tudo começou pouco depois de chegarmos ao restaurante, por uma qualquer falta de motivo, razão suficiente para convocarmos o Nelas com um veloz bater de palmas, assim de lado, junto ao rosto. Martini e caipirinhas também poderão explicar alguma coisa. O Nelas apresentou-se inteiramente vestido de negro, num estilo neo-cigano, sem casaco – que me lembre. Logo na igreja fez da nossa fila um estendal com telemóveis, óculos de sol e carteiras alinhados ao longo do apoio em madeira dos tementes ao Criador.

Desde sempre que o Nelas adora o Hugo – “o meu amigo Hugo” – e não surpreendeu que tivesse sido ele a levá-lo à igreja. E também não foi de admirar que o tivesse feito no Peugeot 305 de 1984 do avô, carro que anda a conduzir há mais que muito porque o moderníssimo Ford Focus dele só dá problemas. O que admirou foi ver o carro a chegar a Lisboa sem perder peças. O Nelas jura que numa rampa favorável da auto-estrada investiu a 130.

O Hugo e a Sílvia conheceram-se no ISEL. Primeiro foram amigos, depois namoraram cinco anos – a primeira vez que os vi juntos foi no Parque das Nações, a ver o Portugal x Angola do Mundial 2006 – e no sábado tornaram-se marido e mulher. Mereciam uma festa de arromba. E tiveram-na depois do “sim” mútuo, sob benção da irrespirável ária na quarta corda para violino de Bach, e de uma valente beijoca que rendeu um aplauso gigante.

"moce, ó o prior a curtir!"
Para o ambiente festivo muito contribuiu a graça natural da mãe do Hugo, que aos 60 anos estava deslumbrante e deve ter feito tantos brindes ao filho como o próprio. O pai, idem. São um encanto. Quase tão jeitosos como os meus pais.

A festa era animada por um DJ cuja auto-estima se revelava inversamente proporcional ao jeitinho para a coisa. A dada altura fomos pedir-lhe músicas mais óbvias, mais pagode, a bem da reunião das várias gerações.

O meu primo Pedro, que amou os meus amigos de infância desde que os conheceu no Verão de 2000 e desceu o país desde Espinho na companhia da namorada, pediu “Despe e Siga, Festa!”. Muitas vezes. Tantas que teve de ir ao carro buscar um disco com a música – essa e outras. Na verdade ensaiou várias tentativas de golpe de palco, mas o DJ aguentou-se à bronca e apenas teve de nos aturar ao lado dele a cantar a discografia quase toda dos Xutos, sob ameaça clara de que o palco ruísse ou eu tomasse conta das teclas cartoon-techno ou algum descalabro do género. Mais tarde soubemos que a presença dele foi uma exigência dos donos da Quinta. Vinha no pacote.

Numa das pausas que efectuou para fumar cigarros, o DJ passou por nós e por ali ficou, altivo. Em tom de desafio, informou-nos: “Celine Dion é para artistas, não é para labregos.” Rimos de choro, ele atirou o cigarro quase fumado para o chão e regressou à arena. No fim de tudo passei por ele e cumprimentei-o com carinho e afecto.



Eram 02:30 e a festa acabava para a grande maioria, já depois de o bolo ser cortado na rua com balões libertados noite acima, mas eu e o Nelas ainda queriamos ver o que se passava. Tinhamos começado a beber com o Hugo - ele tem um filho imaginário há dez anos, o joãozinho; eu tenho uma filhota que não existe, a joaninha, e são amigos - havia quase 30 horas e por isso achei por bem deixar o carro onde estava e voltar para Lisboa à boleia. Venho buscá-lo amanhã, pensei. Tinha dançado várias vezes com uma amiga da Sílvia, a Ana, e ela parecia disposta a acompanhar-nos. A condutora seria uma amiga dela.

Sentia-me extremamente orgulhoso da minha decisão, mas comecei a sentir algumas dúvidas sobre o futuro imediato quando a amiga da Ana deixou o carro ir abaixo 29.834 vezes só a sair do estacionamento. Até na portagem da auto-estrada. Por cima do ombro da Ana fui olhando para o Nelas como quem pergunta: isto é falta de jeito ou ela está ainda mais forinha que nós? Para nosso alívio, venceu a primeira hipótese.



Taxi, Incógnito. Eu, no Incógnito, de fato. Por essa altura os músculos já começavam a pesar, mas depois ouvi The Rapture e tudo reentrou no devido eixo. Passámos um bom bocado. Novo taxi. Cama.


"nelas, isto vai benite e leva jête"
Depois de dormirmos o suficiente fomos acabar com os restos da comida a casa dos pais da Sílvia, onde nos receberam como heróis de festa. Ao som de uma belíssima concertina atacámos sopa derramada em pratos de plástico, ou pelo menos tentámos - tremeliques de parkinson impediam-nos de levar a colher ao caldo da sopa e trazê-lo à boca.

Jovem, se já não és jovem, junta-te a nós.

Já quase ninguém tocou em álcool. A aposta recaiu nos grelhados e doces. O rescaldo de todas as coisas foi depois feito na rua, sentados no asfalto. Tudo cansado e feliz. Boas energias. Viva o Hugo e a Sílvia (L)