domingo, 11 de maio de 2008

Guernica, séc. XXI




Quando Guernica, “o mais poderoso manifesto anti-guerra de arte moderna jamais produzido”, foi posto em exibição no pavilhão espanhol, por altura da Exposição Internacional de Paris, em 1937, o regime nazi (que, naturalmente, tinha na imprensa um braço panfletário da sua ideologia) reagiu com indignação. Tentou diminuir a obra, tabelando as qualificações necessárias à produção geométrica (cubista) de Picasso com as de uma criança de quatro anos. Até o regime soviético, que então apoiava a facção republicana na guerra civil de Espanha (1936-1939), reagiu à obra de forma distanciada. A ideia situacionista, que então explicava esta tenebrosa união contra Guernica, prendia-se com uma certa noção de arte, na qual entende-se que, para retratar eficazmente uma guerra, um quadro tem de ser forçosamente realista, ou romântico, ou ambos.
Bem real foi a confusão instalada no cérebro do pintor espanhol, petrificado com as noções de humanidade veiculadas pela Luftwaffe, força área nazi, que resolveu dar uma mãozinha ao exército fascista do general Franco, na medida em que testou a sua capacidade bélica sobre a pequena cidade basca de Guernica, situada no norte de Espanha, durante três horas seguidas. Centenas de mortos, milhares de feridos e desparecidos numa cidade reduzida a cinza e escombro naquele trágico dia 26 de Abril de 1937 foram a razão suficiente para a produção deste inquietante painel monocromático (Picasso inspirou-se nos relatos que lhe chegaram dos jornais franceses - morava em Paris - e, aliás, a barbárie não merece cor), cubista, simbólico, imenso.
Sete décadas depois, a estudante Lena Gieseke (a informação disponível no seu site, www.lena-gieseke.com, não esclarece qual é a sua nacionalidade) faz-nos uma visita guiada ao apocalíptico quadro do pintor espanhol, a três dimensões, como se de uma visita guiada a um museu de escultura se tratasse. Ou se, terminadas as três horas de bombardeamento ininterrupto da Luftwaffe, o tempo tivesse parado e alguém estivesse a testemunhar aquela tragédia no terreno, pelos olhos do próprio Picasso.

domingo, 4 de maio de 2008

Estavam à espera de quê?

No que me toca, esperava ter visto pardais masoquistas despenhando-se a alta velocidade contra limousines numa avenida parisiense em hora de ponta. Como tal não aconteceu, fica a esperança de que, para o ano, alguém se lembre de contar esta história, na certeza de que reclamarei os respectivos direitos de autor. Eis o meu Indie 2008.

El Asaltante, de Pablo Fendrik - Argentina - 2007

Discreto na postura, engavetado num perfil de executivo, de olhar pérfido e a revelar uma auto-reprimida gula por devorar atenções: eis a horrenda descrição que o argentino Arturo Goetz merece, actor principal de "El Asaltante" que retrata, com doses industriais de relato psicológico, o que pode ir na cabeça de alguém que não consegue deixar de roubar pessoas. Ao realizador Pablo Fendrik interessa, sobretudo, perceber que a cleptomania consome este homem (Arturo Goetz) aparentemente integrado na sociedade, já que tem por ofício ser funcionário de uma escola. De modo que apresenta-se, desarma por charme e confiança, depois rouba, diz que mata e matará se lhe negarem o que acabará por levar. Fendrik filma-o de perto, em tempo real. Não o larga.
O plano-sequência de entrada é arrasador, e talvez disso se ressinta o restante filme ao não conseguir manter essa dimensão. Talvez por isso tenha ficado a impressão, no final da fita, que esta interessante longa-metragem poderia, facilmente, ser uma brilhante curta.

Tejút, de Benedek Fliegauf - Hungria - 2007

12 planos, nos quais ser humano e natureza são uma e a mesma coisa. Experimental e arrojado, "Tejút" consegue, simultaneamente, ser chato e refrescante, na certeza de que algumas destas “curtas-metragens” (planos parados onde pessoas movimentam-se num dado espaço) são um monumento bem moderno ao sono. E foi para esse sítio que vocês adivinharam que pelo menos uma dúzia de espectadores enviou este filme do realizador húngaro Benedek Fliegauf que, inserido na secção “laboratório” do festival, agradou o suficiente para, sem encantar, ter ficado pelo perfeitamente suportável. O que já não foi nada mau, dado o experimentalismo da coisa.

A Zona, de Sandro Aguilar - Portugal - 2008

Foi notoriamente nervoso que, após o (segundo) visionamento de “A Zona” no Indie 2008, o português Sandro Aguilar falou sobre a sua primeira longa-metragem aos espectadores presentes na sala 2 dos cinemas Londres. A dada altura, e para surpresa generalizada do público e do próprio realizador, o seu coração batia tanto que o vertiginoso batuque cardíaco era captado pelo microfone que empunhava. Mais ou menos por esta altura apareceu em cena um senhor de idade respeitável, que primeiramente deu a entender poder ser da família de Sandro Aguilar e, depois, revelou “fazer filmes diferentes”. Apropriando-se do dito microfone, mantendo o seu posto nas primeiras filas, dignou-se a percorrer tudo o que a lingua portuguesa tem de adjectivos elogiosos para classificar o que acabara de ver. Tinha ficado positivamente transtornado com o que Sandro Aguilar explicou ser um filme de transição, sobre uma zona entre a vida e a morte, não sendo tão importante contar uma história mas antes descrever detalhes muito específicos daquela. Forçosamente dolorosa e sufocante, esta transição deixa o espectador confiante que, a dada altura, apareça um traço racional de fio condutor, que explique um argumento que nunca chega a estar sequer latente (mas que Sandro Aguilar afirmou ter escrito naquela exacta medida).
“A Zona” fica na memória por misturar o acto de sangrar com o de chorar, porque é mecânico e a vida é triste, de modo que aquele que se reviu nisto jurou imediatamente amor eterno. Os restantes espectadores presentes na sala - que foram muitos – não aguentaram estacionar nessa zona indefinida e de indefinível dor por muito tempo, pelo que acharam por bem não ouvir as explicações de Sandro Aguilar no final, além de metade do seu filme.

Throw Down, de Johnny To - Hong-Kong - 2004

Aqui, percebam, mistura-se drama e comédia, jazz e judo, alcoolismo e jogo. Johnny To, realizador consagrado de Hong Kong, faz o espectador caminhar desesperado e nú, tão louco quanto o senhor Jing que, neste filme, é o único, sabe-se lá porquê, a merecer oficialmente esse epíteto. Isto quando há um antigo judoca, convertido num empresário nocturno amigo de copos e que, tendo uma dívida dantesca por pagar, é já de si bem enlameado que se esforça por atolar o seu lombo ainda mais no lodo. E que é ajudado por um rapaz que também pratica judo e que ajudá-lo-á na empresa de saldar essa dívida desde que os dois combatam. E também por uma aspirante a cantora que se queixa de ter sido forçada a prostituir-se em tempos, ainda que apresente posições distintas quanto a esse facto consoante o contexto em que estiver envolvida. O tragicómico está ao leme, e a verdade é que tudo correu pelo melhor se atentarmos que a sala riu descontroladamente durante a maior parte da sessão. Sobretudo quando a música entristecia ainda mais o ridículo de cada cena, o que não tem nada a ver. Há desempenhos felizes, uma fotografia conseguida e um jogo musical interessante que pende o filme para o burlesco, quando tinha tudo para ser um viscoso melodrama.

Rescaldo: não tendo visto o "My Blueberry Nights", desde já me disponibilizo, como castigo preciso, para ouvir o Chalana falar sobre o que bem entender durante três dias consecutivos.