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terça-feira, 3 de setembro de 2013

Viseu é arrumadinha, espaçosa e sacrossanta

Viseu podia de repente mudar-se para um despovoado nos Estados Unidos que ninguém por lá desconfiaria. Apresenta aquelas ruas amplas e arrumadinhas que o cinema sempre vendeu das cidades americanas. É impecável.

Não se vê um papel ou uma lata vazia no chão. Por contraponto, multiplicam-se arranjos de flores, igrejas e rotundas - é quase comovente a insistência de que é com rotundas a cada 100 metros que o trânsito vai lá. Por todo o lado se casa o moderno com o antigo. Abundam construções em pedra que, de tão bem tratadas, evocam uma cidade antiga na altura em que era nova. Há também muito espaço verde - é num parque florestal (Fontelo), por exemplo, que se situa o estádio do Académico de Viseu. O centro histórico é uma graça e, ainda não percebi se por isso mesmo, por ser acolhedor e cuidado, está abandonado como a maioria. Só me lembro de por lá ver um cão fã do Garfield, devidamente fotografado pela Vânia Chagas, e de uma artista que pintava uma procissão numa porta-tela de madeira.

Na próxima vida pode ser que os centros das cidades sejam feios e a malta lhes descubra.

A urbanização é de uma categoria à parte. As ruas são amplas e os prédios não se acotovelam. Têm um espaço próprio. Respiram. De qualquer lado se pode ver boa parte da extensão de uma cidade que parece ser o exacto produto da vontade de quem manda, o senhor Ruas. Não me surpreendi quando, a dada altura, o Pedro Pascoal fez a observação de que em Viseu não há pobres, ou pelo menos não se sabe por onde andam.

Mas nada do que atrás foi descrito pode ser comparado em matéria de espanto com os tomates do pai do Pascoal, uma das grandes relíquias da agricultura local. Oriundos dos tomateiros que orgulhosamente cultiva em 'Fontearcada' - é assim que se escreve? -, a meia hora de Viseu como quem vai para Espanha, chegam a pesar para cima de meio quilo. O pai do Pascoal tem o cuidado de os regar todos os dias, a bem de não murcharem. Mas há tomates ainda maiores: foi com orgulho que, no domingo, a mãe do Pascoal me mostrou um que pesava 900 gramas. A última refeição do fim de semana, um bacalhau assado para não meter defeito, teve-os como protagonistas. Nota 10.

Naquela casinha simpática em Fontearcada encontrei um cesto de basquetebol ao qual emprestei alguma atenção. O Pascoal era mais triplos; eu, afundanços. Lembrei-me de tentarmos um alley-oop, o que à primeira resultou, mas fomos falhando os seguintes, muito por minha culpa, que oriento-me melhor com uma bola no pé do que nas mãos. Senti que tinha de dar mais de mim e à 5ª ou 6ª tentativa ataquei o cesto com tudo, mas tive a pouca sorte de falhar o afundanço e aterrar com o braço direito num gancho de rede. Conduziria de regresso a Lisboa com o braço besuntado de Betadine e a manga arregaçada, à emigrante luso-francês. Só me faltava a meia branca para estar no ponto.

A estadia no apartamento dos pais do Pascoal foi de príncipe. São uma família funcional, muito equilibrada. O pai trata a mãe por mãe e a mãe trata o pai por pai - se pensarmos bem, faz sentido. E gostam de agradar: sabendo-me algarvio, prepararam salmão grelhado na sexta ao jantar e red fish no forno, sábado ao almoço. Vinho: Casa de Santar, branco, 2012. Na única refeição na companhia deles que se fez fora de casa, domingo ao almoço, na celebração do aniversário de uma tia do Pascoal, apostei em filetes de polvo com migas. Tão, tão bom. À sobremesa atirei-me a uma pêra bêbada e ainda provei requeijão com doce de abóbora. E o bolo de aniversário. Só não me lembro da marca do tinto. Pudera. Pode-se dizer que não me trataram nada mal. Ah!, tudo no melhor restaurante do pedaço, o Santa Luzia, ali mesmo junto do moribundo Day After.

As patuscadas tiveram seguimento na véspera, depois de um Sporting vs. Benfica que esteve mais para cá do que para lá, mas dividiu o mal (1 ponto) pela 2ª Circular. Apostou-se numa churrascada no casarão dos pais da Carolina, ainda por cima na rua - cortesia de uma noite perfeita. Quis armar-me em esperto e, topando um rádio ao pé da mesa, sintonizei-o na Antena 2, mas ao invés da candura apropriadamente sacra de um Bach levámos em cheio com o Requiem do Brahms. O Pascoal, que pela segunda vez vestia o casaco preto novo, independentemente da temperatura - e bem que ele suou, sobretudo na véspera -, não ficou especialmente entusiasmado com o que chamou de "missa do sétimo dia". Quem salvou aquilo foi a mãe da Carolina, que no leitor de CDs tinha um álbum dos Pink Floyd. Obrigado, dona Eduarda. A noite terminou na varanda da sala de sobremesas, com a Raquel Balsa a trocar argumentos com o Dr. Freitas sobre vindimas, já depois de um dueto de Buena Vista Social Club entre mim e o irmão da Carolina, e outras coisas igualmente lamentáveis.

O regresso a Lisboa fez-se ao som de Doors e The National, tendo-me parecido que mais tempo demorámos a fazer 80 quilómetros pelo IP3 do que propriamente os outros 200 pela auto-estrada. O IP3 é a pior estrada do país no campeonato daquelas que se acham mais do que são. Aquilo é meia faixa de rodagem e vamos com sorte, o cúmulo da claustrofobia rodoviária, um aborrecimento atroz. O IP3 é o oposto de Viseu.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

San Mamés é outra coisa


Redes de galinheiro e ao fundo, à direita, pilares assentes no meio da bancada, old school

Algures durante quatro anos na Católica a tirar comunicação fui à mesquita de Lisboa entrevistar o sheik David Munir, o imã local, a propósito de um qualquer trabalho. Comigo estavam dois colegas de turma: um de Setúbal, outro de Vila Viçosa. Provavelmente os meus dois grandes amigos do início ao fim da Universidade. O sheik Munir já estava à nossa espera e recebeu-nos com afecto. Conversámos durante horas, os quatro. Entusiasmados, curiosos, nós, miúdos, batemos o recorde mundial de perguntas no menor espaço de tempo, mas o que até hoje conservei foi uma só resposta do sheik. Com as têmporas bem abertas, disse: "o Islão é amor!". Tínhamos sido conduzidos para uma espécie de escritório, e não uma sala de orações, e por isso não tivemos de descalçar os sapatos. Estava ali a prova de que podíamos ter uma tarde agradável sem ser a beber cerveja numa esplanada. (Não comprem isto).

Coisa bem diferente foi aquela que se passou há uma semana no San Mamés, o estádio do Athletic. Antes de a velhinha Catedral de Bilbao ir abaixo, já em 2013 - o novo anfiteatro do clube está a ser construído num terreno ao lado do velhinho -, devo partilhar com o mundo que antes de entrar no estádio os stewards do jogo com o Sporting me obrigaram a... tirar os sapatos. No meu caso, as botas. Não queria acreditar. Praticamente sem voz quando ainda faltavam quase duas horas para o apito inicial, sentei-me num degrau com o whisky em copo de plástico preso pelos dentes e descalcei-me ao mesmo tempo que um adepto dos nossos me passou uma caixinha com pastilhas elásticas. "Nem esta merda pode entrar: tira uma e vai passando!", disse-me, ao que obedeci parcialmente, tirando duas.

"É isto?!"

Visto por fora, o San Mamés assemelha-se a uma fábrica abandonada. "É isto?!", perguntei com não pouco espanto ao meu camarada sportinguista de aventura, o Bruno, que por sua vez anunciava em directo e exclusivo, no Facebook, ter feito 856 quilómetros (1723, ao todo) para, afinal, estar a ver a estrutura exterior da estação de metro do Campo Grande. Sim, era aquilo o San Mamés. Com capacidade para 40 mil pessoas, o estádio é tão antigo que uma das centrais está suportada por pilares encaixados… no meio da bancada - leia-se: entre os adeptos. Qualquer coisa como a resposta ingénua dos bascos aos lugares atrás de placards, e portanto sem visibilidade, que, após a edificação do novo José Alvalade, achou-se por bem destinar aos adeptos cegos do Sporting. (Ficção enfrenta Realidade e perde).
Confirmava-se: o ambiente era bem diferente de tudo aquilo que alguma vez tinha visto em estádios de futebol. Não é que, por exemplo, as claques em Bilbao sejam especialmente espectaculares: a esse nível, como os próprios bascos reconheceram, fomos os mais criativos, entusiastas e respeitadores que por lá passaram em anos. A pólvora é mesmo a forma como o estádio inteiro puxa pela equipa a uma só voz, tal como eu próprio já testemunhara nas ruas, no meio deles, a puxar pelos nossos - correu melhor que bem quando tinha tudo para correr mal, um encontro muito à imagem daquele entre escoceses e irlandeses no Braveheart.

Antes da batalha tipo escoceses/irlandeses no Braveheart, travada com abraços

Poucos cânticos, os dos bascos, mas bons. Cada ataque um pretexto. Cada canto uma festa. Cachecóis ao ar: "Athletic! Athletic! Athletic!". Na bancada destinada aos nossos vi o Manzarra à minha esquerda e o Bruno de Carvalho à direita. Antes, na plaza Mouya, o nosso local de concentração, já tinha visto o Eduardo Barroso escondido num impermeável. Nós estávamos no meio do Directivo Ultra XXI. À nossa frente o "maestro" da orquestra era um dos rapazes que caiu ao fosso de Alvalade quando tentava agarrar a camisola oferecida pelo Capel, em Novembro, depois de um jogo com o Leiria. Ao nosso lado enrolavam-se mortalhas e ensaiava-se o cântico que mais pegou esta época, com versos de Baudelaire para cima. "Braços no ar/Todos de pé/Vamos cantar/Sporting Allez". O ambiente era imelhorável, exista ou não este palavrão. A bexiga a apertar. "Tivesses apostado no whisky mais cedo..."

errr...

Foi quando me despachei da casa de banho, reentrando no sector dos nossos adeptos, que fiquei perfeitamente tolo. Da parte de cima daquele cubículo não se via qualquer das balizas. Mesmo eu, mais ou menos numa fila central, não conseguiria, já na segunda parte, ver o remate do Insúa ao poste. Tínhamos pago 65 euros e não víamos as balizas! Mais: havia uma rede de galinheiro, bem grossa, a obstruir-nos a visão. Melhor: no fim do jogo, à saída do sector, topei que havia um mini banco de madeira envernizada que tinha sido colocado na última fila. Interroguei-me se os anões também pagariam 13 contos pelo bilhete. À saída, por outros motivos, o queixo permaneceu caído: em vez de irem festejar a passagem à final para as avenidas principais, centenas de adeptos do Athletic, a maioria deles muito jovens, tinham esperado por nós cerca de 45 minutos - aqueles em que ficámos presos no galinheiro basco por imperativos de segurança - e formaram um cordão humano para nos congratular, isto sob o olhar atento de centenas de polícias com capacetes vermelhos e gorros de assaltantes de bancos enfiados na cara. Quem não se metia com eles era eu. Na memória dos bilbaínos ficara a homenagem que fizemos em Alvalade ao Iñigo, adepto do Athletic morto por uma bala perdida da polícia durante os festejos da passagem às meias-finais da Liga Europa, à custa do Schalke. Homenagem essa, que, de resto, foi por nós repetida em Bilbao, fora e dentro do estádio.

onde está o wally?

A resposta foi uma comunhão leonina tremenda entre os Leões de Espanha e os de Portugal: todos nos aplaudiam e cumprimentavam ao ritmo de "Ésporting! Ésporting!"; pediam, "cambio!", "cambio!" - aludindo à troca de camisolas ou cachecóis; cabisbaixo, afastava-me do San Mamés ao som alheio de "arriba, animo!" e de um muy espanholês "bom juego, Ésporting!". Já num banco de jardim perto do Guggenheim, enquanto acabávamos as cervejas e a quiche com modos beirãos, cheia de tudo, da mãe do Bruno, duas garotas passaram por nós com cachecóis do Athletic ao pescoço e interromperam-nos o repasto com o mais bonito dos coros. "Aupa Sporting!". Na looonga viagem do regresso, sempre a cantar, sempre a cantar, um dilema não deixou de me ocupar as ideias ao volante: "merda para estes bascos, não os podemos odiar nem um bocadinho?". 

Em BIlbao é sempre Euro 2004

Já em solo português parámos numa área de serviço para um último assalto a sanduíches preparadas na véspera. Havia mortadela, chourição e queijo. Houve também um auto-denominado padre católico holandês que foi deixado por um condutor perto do nosso carro e que se aproximou de nós assim que meteu os pés no asfalto. Primeiro perguntou se falávamos inglês ou francês. "Sim". Depois, se íamos para Lisboa. "Vamos, pois". Posto isto, a conclusão: "then i'm going with you!"
Eu olhava o Bruno, o Bruno olhava para mim, ambos olhávamos para o padre católico holandês. O aspecto do prior era, na melhor das hipóteses, assustador. Tinha estampa de atleta de basquetebol, óculos de garrafão e capachinho. Este pormenor fez a diferença: não confio em padres que usem capachinho. Dono do carro, o Bruno tinha algo a dizer sobre a questão da boleia, e o que disse, por mim secundado, não foi do agrado do alegado mensageiro de Deus. "Ok, you're not very friendly!", acusou-nos, para nosso descanso, e apressou-se a procurar boleia com outras pessoas, de preferência que não estivessem trajadas à hora de almoço com as cores de um clube de futebol, a somar duas directas, uma dor localizada no lado esquerdo e vozes de Olavo Bilac de tanto puxar pelo Nosso Grande Amor.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Bilbao Ocupada

Plaza Mouya

Atacar a estrada foi o que fizemos de nós,
E trinta horas quanto soubemos dar de nós.
Não nos faltava razões para ver o mundo.

Tivemos tempo p'ra lembrar o Iñigo.
Recebemos vénias, vénias vos digo.
Antes de cerrar os dentes e jogar.
Bonito foi ver tudo junto a cantar.

Coração apertado, golo do Athletic.
Deixámos arder, deixámos arder.
Empata o Sporting, parecíamos putos.
"Não temos aulas amanhã!"

Mas os bascos são feitos de algo mais.
Apertaram demais. Apertaram demais.
Ficou a carne para os chacais.

O tempo que passou, 
Passámo-lo sem medo. 
Mas o fim do dia chegou,
Tingido de negro.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Crónica de um pagode anunciado

pedro rios (cabelo mais curto) e rui coelho (cabelo mais comprido), algures lá atrás depois de verem wrestling a mais enquanto a minha tia se iniciava nas artes da fotografia, primeira aula

Há sempre alguém que nos diz, "tem cuidado", e no meu caso é o meu pai. Sempre achei que ele exagera no antecipar das consequências, que vê perigos a mais por aí, e nisto reflectia no interior do meu carro quando me apercebi que tinha deixado o telemóvel no balcão do nosso bar, na Rocha, depois de me ter despedido dele. Começava com disciplina um trajecto de 600 km até Espinho, três dias para terminar férias com ‘escala’ em Lisboa, estacionar o carro e regressar aos comboios. Dei meia volta, recuperei o telemóvel sob o olhar reprovador do meu pai, com ligeiro abanar de cabeça – “tss, tss” em balão de cartoon - e galguei o país.

Passou pelo menos metade da minha vida desde a última vez que tinha estado em Espinho. Dessas sucessivas férias de Verão cinzento com o meu primo Pedro guardava pequenas noções de espaços e pessoas, mas a maioria foi-me apresentado como novidade.

Depois de uma primeira noite calminha no Porto, com passagem pelas galerias e armazém do chá, passei o dia de sexta-feira a passear pela capital do vólei em Portugal, na qual uma avenida está baptizada com os nomes do Miguel Maia e do João Brenha, heróis da terra. Uma das coisas que me surpreendeu e que decerto já me tinha sido dito quando era puto é que Espinho dá a mão a Nova Iorque nisso de numerar as ruas ao invés de as nomear. Não tem nada que saber: as ruas paralelas ao mar são pares; as perpendiculares, ímpares. É mais fácil não nos perdermos em Espinho, uma rampa gigante que liga a casa do meu primo (nascente) ao mar (poente).

Espinho é tipo NY
Caminhámos ao longo da marginal observando a paixão dos surfistas – aqui o mar é ‘brabo’ e frio, nada a ver com a piscina sem ondas que banha o algarve – e depois seguimos para o centro da cidade. Homem culto e reservado que só abre a boca quando tem algo a dizer, o pai do meu primo relatava-me como tudo já tinha sido diferente, insistindo no pretérito perfeito do verbo ser para das coisas falar. Das minhas memórias de uma cidade e respectiva área circundante altamente industrializadas pouco restou: as fábricas estão fechadas, os grandes empreendimentos foram demolidos ou abandonados e os novos aterram na paisagem urbanística como naves espaciais – casos do multimeios ou da biblioteca, recentemente aberta sem mobília. A favor: a cidade é pequena, mas tem tudo num curto espaço geográfico: hospital, escolas, mar, casino ou infra-estruturas desportivas que fariam corar de orgulho qualquer cidade - estádio de futebol do Espinho à parte.

a via pública é mesmo pública no bairro dos pescadores
O melhor de Espinho, além dos (últimos) dias e noites de Verão que por mim esperaram? As pessoas, uma delícia para qualquer visitante ávido de conhecer o que se passa. Fiquei particularmente encantado com o bairro dos pescadores, onde a via pública é utilizada para estender a roupa. No dia seguinte, durante um jogo de futebol amador, percebi o motivo pelo qual é melhor a câmara municipal não se meter com as gentes vareiras. Antes de regressar a casa para lá deixar o pai e recuperar o filho, fui ao Picoto, a pedido.

Eu e um amigo que muitas vezes me acompanhou a Queimas do Porto sabemos há alguns anos que o Picoto existe, mas nunca fizemos ideia de quais as coordenadas. Frequentemente passávamos pela placa certa, a não sei quantos km, ficando fascinados pelo nome, mas nunca ninguém nos soube explicar onde ficava, que tipo de terra era, essas coisas. Como o pai do meu primo tinha nascido lá ao pé, levou-me onde eu queria. Ou assim achava. Consegui tirar uma fotografia ao lugar do Picoto, mas não vi nenhuma placa indicativa de que o Picoto era o Picoto. Mèrde.

este cruzamento é no coração do Picoto, juro Marcos!

Quando passeei ao longo da marginal gostei especialmente da pinta de um café, o Barco Boador, ao qual regressei assim que o meu primo saiu do trabalho. A empregada, que tinha “o namorado mais fodido para a pancada da cidade”, aviso do meu primo, trouxe-nos dois finos e um sorriso sedutor. Na aparelhagem, Beatles. Quando os fab four se calaram pedi-lhe para repetir a passagem do disco e ela olhou-me de um modo indecifrável, não sei se odiou ou amou. Apostaria na última opção. Misteriosa, a miúda. Ao fim do dia muitos casais fotografavam o horizonte entre beijos e caminhadas sem pressa. A nossa mesa ia ganhando mais pessoas. Por lá passou a Cristina, irmã do Pico, a Jo, namorada do meu primo, e também a Cristina Pinto e a Melissa, aquele tipo de mulher de quem é fácil gostar mais do que se deve. Ao grupo ainda se juntou o Rapper - nadador-salvador e DJ que vinha de férias no Dubai e arredores - e uma estudante de medicina, cujo nome não recordo, acompanhada da respectiva mãe, por quem cruzei a estrada de prato na mão para oferecer parte da minha salada de búzios, que aterrara há segundos na mesa. Uma espécie de “venho em paz” do Novo Oeste, ao pôr-do-sol.

no Barco Boador
Jantámos no restaurante “Parte o Prato”, no Porto – eu, o Pedro, a Jo, a Melissa e mais duas amigas da Jo - a Joana e a Marta. O batalhão de amigos do meu primo não tem fim, nem papa grupos. Uma grande família, quase toda a viver num raio de poucos quilómetros e unida pelo amor ao reggae. Qualquer amigo do meu primo ouve reggae. É uma forma de vida.

jah bless
Pedi um bife Serrano com batata a murro e entornei vinho da casa. Antes, pão com alho e queijo. Depois café e uma entrada a pés juntos na noite com um shot de tequila no bar Praça. Por ali conheci o Ivo, um dos dois amigos do meu primo que tem o bom gosto de ser sportinguista. Troquei impressões igualmente com o Pedro, que perdeu o pai há pouco tempo e merecia uma especial atenção de todos aqueles que o conhecem. Loucas, a Débora e a Diana também agitavam as águas. A noite acontecia.

Hesitámos muito sobre a discoteca à qual acorrer. Do meu lado a opção recaía num espaço que destilasse algum tipo de rock, mas só a Melissa me acompanhava nesses apetites. Por isso mesmo fomos ao Tendinha ainda cedo, só a ver o que se passava, e lidámos bem com a casa vazia. Pedimos aos seguranças para nos deixarem entrar, pulámos 20 segundos ao som de qualquer coisa antiguinha e de lá fugimos. O regresso far-se-ia mais tarde, num registo menos descontraído.

O Pitch foi a escolha. Supostamente deveria acontecer por lá uma festa de moda. Falso alarme. Uff. O clube tinha dois pisos – o superior era bar, com um som electrónico mais calmo e alternativo; o de baixo, discoteca, com um martelo ou outro. Gostei do conceito, não gostei da música, em qualquer dos casos menos arrojada do que o pretendido. Daí que tivessemos ido embora. Esperava-nos a GARE, onde haveria uma festa de ‘drum’ com Marcelinho da Lua. Houve também tempo para visitar uma pista onde passava hip-hop e r&b, um tipo de shake a evocar andamentos de outras vidas. O ambiente era festivo e da paz. A casa esteve longe de encher. Já de manhã voltámos de comboio, eu e o meu primo, resistentes da noite depois de nos termos chateado à porta do Tendinha, no qual todos pretendíamos entrar, menos ele, que tinha aprontado uma com um segurança horas antes, sem nós sabermos.

deitar cedo e cedo é erguer é para malucos
Nessa noite conheci também o Moreira, que vive nos prédios-irmãos àquele em que reside o Pedro, e que joga futebol amador no Rio Largo. Na tarde seguinte ele tinha jogo do campeonato popular de Espinho e demonstrei interesse em ver aquilo. Mal acordámos, com um cabeção olímpico, acorremos à cozinha para almoçar e de seguida viajámos um punhado de quilómetros até ao campo, situado em Idanha. Havia muita gente a assistir ao jogo e pouco espaço para estacionar. Chegámos com a primeira parte a meio. Tal era a quantidade de carros nas redondezas que o Pedro optou por encostar o dele junto ao portão de uma casa, de tal modo que quase tapava a saída da garagem, mas o dono depressa apareceu a enrolar o bigode, depreocupando-nos.

- Eu não devo morrer enquanto o jogo decorre, mas se morrer a minha mulher atira-me ao rio.

Agradecemos as palavras sábias do senhor e fomos directos ao bar do clube investir num par de minis, 50 cêntimos cada. (Juro).

Por aquela altura fiquei a saber que o Rio Largo é um dos clubes mais fortes da prova, e defrontava a aguerrida equipa do Cantinho, oriunda precisamente do bairro dos pescadores, o tal onde a via pública é espectacular. Numa das margens do campo pelado corria um rio, que não o Largo, e na outra passava um troço de auto-estrada. O Cantinho jogava ali, em casa emprestada.

Logo nos primeiros minutos percebi que o Moreira, dez nas costas, posicionava-se a médio ofensivo, frequentemente a cair para as alas, sobretudo a esquerda. Em redor do campo encontravam-se várias figuras ilustres da cidade, casos do senhor Sousa, que faz os melhores panados de Espinho, do presidente honorário do Rio Largo, largamente falho de dentes no teclado superior, e também do dono do Zé Grande, casa onde as sandes de presunto podem alimentar uma família católica de etíopes subnutridos, garantia da Cristina Pinto.

Há uns anos falava muito ao telefone com a Cristina, sem saber muito bem porquê. Esta foi a primeira vez que a conheci, olhos nos olhos. É uma mulata branca, ou uma branca mulata, simpática à brava e também ela amante de reggae – talvez por isso, pelo volume alto do som que trazia no carro, quase me atropelou diante do Barco Boador, na tarde da véspera. Correu tudo bem.

Para surpresa minha, o jogo estava a ter muita qualidade. Ambas as equipas tinham jogadores talentosos e preocupavam-se em tratar bem a bola. Poucos charutos para o mato. O Rio Largo tinha mais bola e a meio da primeira parte o Moreira foi lançado na cara do guarda-redes do Cantinho, mas perante a carga pelas costas de um defesa contrário rematou fraco, à figura.

Grande oportunidade desperdiçada, coisa que não nos assistiu, a mim e ao Pedro, no momento de atacarmos a segunda rodada de minis, ao intervalo. Antes, o primeiro golo do jogo para o Rio Largo, com assinatura do Quim Nando, rapidamente por mim baptizado de Andrea (Pirlo). O “21” apanhou a bola a pinchar e de muito longe, sem companhia em redor, aplicou-lhe veneno direccionado ao ângulo superior direito. Um espanto de golo.

Ao contrário do que seria de prever, o intervalo foi pouco agitado no bar. Não que houvesse lá pouca gente com sede, mas porque as minis já eram. Má sorte dos donos, ou gestão duvidosa, como lembrou o meu primo. À remessa seguinte já todos nos babávamos por uma fresquinha. O sol nunca perdoou.

r.i.p. t-shirt e calções e havaianas 2011

Um dos adeptos mais inquietos era um senhor cheio de escoriações no rosto e várias tonalidades de pele nas mãos. Vestia todo de ganga – o casaco mais escuro que as calças. O meu primo teve pena dele e ofereceu-lhe uma mini com o meu dinheiro, sendo depois louvado por Deus pelo senhor da sede, agradecido como quem recebeu o primeiro gesto de caridade em todo o ano civil.

No regresso dos balneários o Cantinho surgiu mais forte, enquanto o sector criativo do Rio Largo ficava sem pernas. O Moreira ainda jogou bonito aqui e ali, somando uma coxa, toques consecutivos sem deixar cair a redonda e um canto olímpico devolvido pela trave, mas seria substituído juntamente com um dos avançados mais rápidos ali à hora de jogo. Resultado: o Rio Largo ficou sem ideias na frente, o Cantinho entusiasmou-se e com o apoio ruidoso das vareiras chegou ao empate por um quase anão que fazia diabruras pelo flanco esquerdo. A divisão de pontos custava especialmente ao presidente honorário do Rio Largo, já de si furioso por ter sido esquecido numa das rodadas de minis, ele que reclamava já ter acabado os antibióticos na semana transacta. Num jogo do campeonato popular de Espinho a cerveja é como água, não se nega a ninguém.

Mas o verdadeiro foco de interesse ocorreu ainda antes do fim de um jogo que não chegou a acabar. Ao assinalar de um penálti discutível a favor do Rio Largo, com dez minutos para se jogar, os jogadores do Cantinho cercaram o fiscal de linha que o indicou e não houve mais jogo para ninguém, ordem do árbitro principal. A partir daí só se berrou, insultou, perseguiu e agrediu. Com as garrafinhas vazias de cerveja aos pés, eu e o meu primo ríamos muito. Um adepto do Cantinho que tinha passado o jogo com a perna direita em cima da barra que separa a assistência do campo, exibindo alguns centímetros de osso e a meia esticada por baixo da calça de fato, e outro vestido de fato de treino fizeram os 15 metros obstáculos para aviar o juiz assistente e só não o conseguiram porque foram travados pelo primeiro incendiário da coisa, que revelar-se-ia simultaneamente o primeiro samaritano do pedaço. Paulo Cavalo, de nome. “Não admira que seja Cavalo, só dá coices” – dele se disse durante o jogo. Atleta do Cantinho, o Paulo Cavalo é daqueles avançados a rondar os 40 anos, que sabe tudo da bola mesmo que corra pouco, e domina a situação. Domina também a terra do pelado, que agarrou para arremessar à cara de um adversário durante o jogo, e mantém igualmente um amplo domínio das próprias mãos, que utilizou para aplicar uma valente lambada num defesa contrário. Em nenhum dos casos viu sequer o amarelo. Nem aí, nem a seguir do apito para o penálti que não chegaria ser cobrado. No meio daquela confusão toda, com o Cavalo a relinchar encostado à cara do rapazito da bandeirola - “Eu deixei os meus filhos em casa, caralho!!!” - e de novas tentativas de agressão por parte do senhor da meia e do de fato de treino, o árbitro decidiu dar o encontro por terminado. 1-1, mas o Rio Largo deve ganhar na secretaria, opinei ao meu primo, que devolveu: “a secretaria é num tasco ali em baixo, escolhe-se um representante de cada equipa e quem beber mais, ganha.”

Maturei um bom bocado nos méritos daquele tipo de julgamento, e depois virei a agulha, pensando, como vai aquele fiscal de linha com cara de moço de recados regressar aos balneários? Uma multidão esperava-o, sendo que as gentes do bairro dos pescadores estavam em maioria. Houve dois ensaios. O primeiro teve falsa partida, com demasiadas pessoas a espumar pela boca e a encurralar o xavalo para o moer ao punho fechado. No caos uma senhora levou uma chapada e ficou fora de si durante mais que muito, para desespero do marido, que não tinha visto nada – veredicto: culpado.

À segunda, já com o miúdo da bandeirola protegido pelo incendiário de Calcutá Paulo Cavalo e um responsável do Rio Largo, lá se deu a entrada nos balneários do trio de arbitragem. Sempre achei os árbitros loucos. Agora, que conheço aqueles que apitam nas provas amadoras, sem policiamento, vejo tudo numa outra dimensão.

Já de banho tomado, o Moreira assistia a tudo junto de mim, do meu primo e do Ricardinho, o amigo mais alto do meu primo, aquele que tinha entrado pelo Rio Largo no decorrer da segunda parte e dava-se o caso de ser casado de fresco. Não podia jantar connosco, horas depois, para desconforto da Jo, que queria o casal junto dela, mas apareceria na discoteca que abria em Espinho naquela noite, acompanhado pela mulher. Discoteca que, ao que se dizia, abria somente até Janeiro, a título experimental. DJ para cortar a fita: Rui Vargas.

Sabia e continuo a saber pouco da noite no Porto, mas também não andava famoso quanto aos locais obrigatórios a visitar durante o dia. Insisti na Casa da Música e lá me levaram. Já passavam das 18:00 mas nunca nos passou pela cabeça que a circulação no espaço estivesse vedada a todos os pisos, excepto o da entrada, que sucintamente nada tinha que valesse a pena ver. Abordei uma funcionária e esta explicou-me – “o último horário de visitas foi às 16:00, agora só amanhã de manhã”. Fiquei fodido mas sorri-lhe com a mesma candura com que de seguida fui vagueando até ao corredor oposto do piso, muito atento a tudo, e comecei a subir os degraus rumo ao segundo piso, conduzido pelo som de uma orquestra sábia. O Pedro e a Jo fizeram o mesmo, sem que tivessemos combinado coisa alguma. O que tem de ser tem muita força. Fomos apalpando a estrutura, embevecidos com cada detalhe pensado pelo Rem Koolhaas  (e não o Siza, ó burro) – a Jo estava especialmente interessada em sorver tudo, é arquitecta. Continuámos a subir. No terceiro andar vimos uma parede almofadada em triângulos expostos e nela encostei a cara num desconforto fofo. Também por ali havia bancos feitos integralmente em cortiça, o que não deixou de espantar o meu primo, que trabalha nos Amorins. Continuei a subir e cheguei à cafetaria VIP, de onde se podia ver o anfiteatro principal através de uma vidraça. Estava a decorrer um concerto não sei bem de quem. Ao meu lado podia ser visto pelas pessoas que ocupavam a sala, cheia que nem um ovo. Observei os movimentos histéricos do maestro, com resposta a preceito dos músicos, e tirei o som do telemóvel. Desviei o olhar para o terceiro piso e vi o Pedro a beijar a Jo. Senti-me bem. Quando eles se aproximaram do som até o poderem “ver”, apareceu um segurança em sobressalto.

“Boa tarde!, não podem estar aí!”

O meu primo perguntou-lhe, auto-estupidificado, “ai não? Ah..”, enquanto eu fazia uma expressão de espanto pouco convincente. Aguentei mais uns segundos para tirar um último retrato mental e comecei a descer até à saída, com o segurança atrás de nós a fechar as portas pelas quais tinhamos entrado onde não era suposto. Puta que pariu as câmaras de segurança. Saímos com a sensação de termos feito uma 'visita de médico' em que sempre se disse olá.

porto sunset, sem photoshop

Dali fomos lanchar junto ao mar, num café onde pedi um doce tradicional – folhado com creme de ovos, por indicação de uma funcionária atenciosa -, um galão e uma tosta de queijo com pão alentejano. Depois fomos para casa estender as pernas até ao jantar, que seria na Associação Beneficiente dos Amigos Pobres de Grijó. O espaço era assim: entrávamos numa sala típica de tasco onde se vê a bola e se joga às cartas e seguimos para outra de restaurante. Sentámo-nos numa mesa redonda situada no palco do que em tempos foi um teatro. Personagem principal: o barro, que servia de base para toda a loiça. A comida foi servida em telhas. Picanha servida em telhas e regada com o tinto certo.

Fomos quatro na mesa, eu, o meu primo, a Jo e o Moreira, e em breve pareceríamos oito. Eu pelo menos já me sentia por dois quando pedi Jameson à menina que nos atendia, tendo porém que optar por JB 15 anos quando ela me respondeu, “James? Não temos”.

De Grijó voltámos a Espinho, rumo ao Delícia, o café onde tudo começa. Ali conheci mais uma mão cheia de amigos do Pedro enquanto a TVI filmava uma minha conterrânea a enfiar-se debaixo de um cobertor e a estacionar de boca entre as pernas de outro concorrente do programa dos segredos.

“Portimão, respect!!”, gritei.

Próxima paragem? A zona dos bares em Espinho, de perfil com o Barco Boador, e aí encontrei o que tanto queria, finalmente: um bar que passasse rock. Fartei-me de curtir, chateei o DJ tanto quanto podia e fui feliz. O DJ, com tanta e tão rara atenção aos gostos dele, também não se queixou. Drums, dEUS e outros que tais deixaram-me com moral para atacar a discoteca Abox. O nosso grupo era grande, mas faltou a Cristina, que vinha de um casamento, exausta, e a Melissa, também ela exausta da véspera. Ao invés, conheci outros amigos, como o Backup, que estava a treinar para uma maratona e tinha corrido duas horas. Antes ainda fui a outro bar atacar o bolo de uma aniversariante que não conhecia, mas era no Abox que acabaríamos a noite. O som era porreiro, um pouco repetitivo. O ambiente era de bom gosto, excepto quando uma rapariga com musgo nos dentes quis invadir a cabine do DJ, uma e outra vez. Menos gente do que seria suposto. Aguentámos umas belas horas a gingar e já com o meu primo estendido no carro fui com amigos dele comer ao café Latina, onde entrei com um colar do havai e um chapéu indígena como adereços, ou coisa que o valha. Um grupo de mulheres rodeou-nos e declarámos que aquela seria a minha última noite da despedida de solteiro. Casar-me-ia dentro de duas semanas, em Barcelona. Recebi votos de felicidades e a especial atenção de todas, com destaque para a mais velha, já nos seus cinquentas e a única que parecia realmente feliz por me saber prestes a contrair matrimónio. Uma merenda, um galão e muitos conselhos depois, despedimo-nos com afecto.

ia fonde ma na sende
O meu cabeção ao acordar era de novo significativo, mas ficaria ainda maior quando vi a minha adorável tia munida de um saco cheio de comida para eu levar para Lisboa. Trouxera para o Norte uma mochila às costas e voltaria para Lisboa com o supermercado nas mãos. Ele era tupperwares com carne e batata cozida, outros com sopa, sacos com pão, fiambre da perna, queijo, pacotes de massa, leite e fruta. Quando cheguei a lisboa descobri um ovo embrulhado em prata. Não sabia o que dizer mas enchi a minha tia de beijos e deixei pelo menos a fruta e o leite na cama, só para que o fecho da sacola inesperada não ficasse arruinado.

Depois de almoçar no café que supostamente teria a melhor francesinha da cidade - falso alarme: encontrei o bife a meio da refeição, mas depois foi-me explicado que quem cozinhava bem era o pai e não o filho, sendo que era este último que estava ao serviço -, e de ver o City fazer pouco do United no dérbi de Manchester, em Old Trafford, despedi-me e apanhei o comboio das 17:07 sob um temporal revelador. Depois de dias perfeitos, o Verão terminava ali.

Nisto pensava quando, entrando num comboio, comecei a atavessar carruagens a fio à procura da minha até encontrar o “pica”, que me explicou ter apanhado o comboio errado. Teria de sair em Aveiro. Assim o fiz e esperei até aparecer o meu, no qual estive cercado de moças estudantes e passei mais tempo a recolher-lhes as malas da bagageira estupidamente alta do que propriamente a dormir ou ler. A senhora de idade que se sentou ao meu lado aproveitou a deixa e pediu o mesmo. No fim ofereceu-me bolachas maria. Qualquer coisa já tenho emprego.

terça-feira, 21 de junho de 2011

What happens in heaven stays in heaven

a culpa é do Mota I

Para chegar até à praia, o gangue do sorriso teve a destreza das lesmas. Diga-se que o pouco agitado trajecto até à praia do Malhão também ajuda: é regular na irregularidade - sarapintado de buracos e terrapó. Por isso mesmo pareceu-nos bem aproveitar cada segundo, parar os carros junto à berma, saltar cá para fora e fazer um filme na terrapó com dança e disparates. Três rádios, três bandas sonoras, três pistas de dança. No carro de trás o Abreu e a Susana, acabadinhos de perder o dia de praia e ganhar o pôr-do -sol, disparavam Battles; no do meio, o meu, o Mota e eu oferecíamos Jackson Five. À frente o menu sonoro da Xana e da Joana D. contemplava o fim de uma qualquer música da Rihanna e logo a seguir o desabafo sobre (in)fidelidade antes de descarregar o autoclismo um dia assinado pelos Santos e Pecadores. Quando nos apercebemos do que se passava no carro delas... bem... o Abreu ficou com as pupilas dilatadas, o Mota enregelou, eu tive um ataque de tosse e a Susana entrou em negação. Mas tudo voltaria à normalidade e seguimos até à berma de uma falésia para ver o mais básico pôr-do-sol da história. Não havia nuvens e o grande ponto amarelo lá no alto nunca chegou a ficar alaranjado. Umas fotos com as super-máquinas analógicas que a malta cool tanto gosta de comprar e glup!, a grande bola de fogo era engolida em molhado. Ainda estou para contemplar aquela morte do dia em África, coisa de postal que os meus pais me contam com o melhor dos exageros desde que me lembro.

Fins-de-semana com Lisboa pelas costas implicam não dar os bons dias ao Dartagnan à entrada do Incógnito, mas são coisa boa, sobretudo quando a viagem é em si mesma um prémio. Fiz a minha pela costa, rumo a Vila Nova de Mil Fontes, recebendo indicações muito precisas para a praia devida, cortesia da Joana D.. “Moco tams na praia d malhao sabes ond fica?na estrada de quem de vem de porto covo para vila nova é do lado direito antes d chegares a brunheria.dpx na estrada de terra sempre em frente dpx a direita numa estrada de areia no meio de arbustos chegas a um parque de estacionamento ond ves um carro pegeout cizento matricula 12LI10 ou 10LI12.desces as dunas e vais para uma praia grande com uma casinha azul mas ns tams para a direita zona das rochas Numa praia pikena.nao tems rede :( vams estando atentos em busca de rede.bjs grands”

a culpa é do Mota II
Quem me conhece sabe minimamente os efeitos nocivos que este tipo de coordenadas podem ter nas minhas ideias, pelo que fui metendo mudanças até Mil Fontes com o meu cérebro a cheirar ao que a carne esturricada cheira. Cheguei a parar e sair do carro em Porto Covo, ponto morto e motor ligado (ai Rui, Rui...) enquanto atravessava a estrada para questionar uma mulher ainda jovem e bem gira, muito provavelmente mãe da equipa de infantis que a rodeava, como raio chegava a Mil Fontes sem placas por ali com a respectiva indicação. Rodeado do meu próprio fumo lá conseguir aparecer naquele buraco balnear, praia do Malhão, depressa por mim apelidada de lua, dada a proximidade. O grupo estava animado e além dos já citados incluía o digno JPC, a activista Joana F., a mui respeitável leoa Maria e a Filipa, aka Fada do Miradouro, sendo que na noite anterior as duas últimas tinham sido consagradas Grãs-mestres dos Mojitos e horas depois despediram-se do Alentejo, de regresso à capital. Naquela areia de ninguém havia jornais, revistas e livros para entreter e muita comida para ‘picar’, faltando apenas, digo eu, disse eu, uma geleira com minis. Mas havia uma bola, o que no meu caso substitui. Ao ver-me pontapear o esférico com a alegria do Chuck Norris quando de noite encara sozinho um grupo de 50 mexicanos a salivar numa rua estreita, o bom Mota confidenciou à mocinha dele, a Joana D., que, a ter um filho, gostaria que fosse eu. “Olha ele ali a divertir-se sozinho, sem incomodar ninguém!”. Babadíssima, a doce Joana D. veio ter comigo, relatou o caso e de pronto me ajoelhei e dei a mão à minha nova mãe, deixando-me levar até junto do meu novo pai enquanto chuchava o polegar.

girls just wanna have fun (a culpa é do Mota III)
Uma das minhas preocupações naquela estadia era o telemóvel, que estava a ficar sem bateria apesar de o ter deixado a carregar algum tempo durante a noite da véspera. Problema à vista. Não por isso de ficar incontactável durante dois dias, que é das coisas mais sedutoras que existem, mas porque combinara encontrar-me com uma amiga numa terriola ali perto, ao fim do dia seguinte. A sucessão de eventos dir-me-ia que mais fácil seria encontrar ouro por ali do que propriamente conseguir vê-la. Mas se não pus os olhos na miúda, foi na companhia da Xana, do Mota e da Joana D. que tive a minha primeira experiência numa praia de nudismo. Rodeados de pilas e grutinhas mais ou menos cuidadas, seguimos como se nada fosse em direcção à cascata pretendida e tomámos um banho de água doce. Um momento ideal para fotos gordurosas à Baywatch e permitir que, a olhos vistos, a água doce fizesse uma reavaliação dos danos que o rei sol nos deixava na pele após várias horas a torrar como gente grande (e parva). Embora parecesse precisa, a leitura dos estragos pouco teve a ver com aquela que agora faço – há bocado passei por mim em frente ao espelho da casa de banho e vi um corpo com queimaduras de algum grau suficiente para já ter solto uns belíssimos “ai foda-se!” àquele pessoal que teima em assinar reencontros com intensas palmadas nas omoplatas alheias. Banhista sofre.

Sendo um moço virado para a cidade, não resisto à serenidade de uma terrinha onde reúnes amigos a beber cerveja ou vinho (Lambrusco, a pancada daquela gente) no pátio de uma casa com cheiro a bisavós enquanto, cito a Joana F., ouves vacas a foder. E se o campo é bom, campo e costa juntos soam ainda melhor. A vida inspira-nos.

a culpa é do Mota IV
A Xana concordará. Apesar, ou devido à beleza dos olhos que nosso senhor o Criador máximo de todas as coisas lhe concedeu, ela nutre uma simpatia muito grande por sweats com capuz, e é com eles a cobrir a cabeça que se costuma movimentar no Bairro Alto e outros. É a forma mais eficiente que encontrou para, dentro do possível, tentar passar despercebida. Ainda assim, em noites boas, as abordagens são a cada cinco minutos. Todos querem ver de perto aqueles faróis que de tão verdes parecem azuis.

Vila Nova de Mil fontes é uma localidade pacífica por esta altura do ano, merecendo pouco a fama que tem de sítio-que-era-giro-e-onde-já-se-esteve-bem-mas-eh!-agora-tem-muita-confusão. De regresso a casa após uma noite calma, com jantar, gelataria, bar e quase discoteca (no templo Sudwest pedem cinco euros sem consumo aos rapazes, mesmo que a casa esteja vazia, o que era o caso), foi-nos recordado que o silêncio era muito prezado por aquelas bandas, nomeadamente pela vizinha do andar de cima. Os meus olhos cruzaram-se com os dela durante a tarde. Vestia de negro, tinha um buço considerável e à falta de mais dentes mordia praticamente em vão o interior da boca. Os hábitos que conservava no trato connosco eram conhecidos da véspera: reclamava durante a noite por não conseguir dormir e nas primeiras horas da manhã vingava-se com uma cassete de folclore alentejano, volume do rádio no máximo. “Oh não!, a puta da velha!”, desabafaria eu pelas oito da matina a remexer-me na cama de olhos esbugalhados por força das circunstâncias.

a culpa é do mota V (e da puta da velha aí no andar de cima)
Neste relato que é um carrossel especialmente egocêntrico, importa referir que tenho o toque de midas, embora ao contrário. Se, do menos para o mais grave, os níveis dessa escala forem um (descuidado), dois (trapalhão) e três (desastre), o meu nível será o quatro, cujo termo-definição permanece por inventar. Isso mesmo se pôde verificar quando paguei o meu jantar com o cartão multibanco levando atrás do recibo um emaranhado de rolos e peças da maquineta. Não tenho culpa.

Ao fim do dia seguinte, com planos alterados face ao desencontro com a minha amiga, despedi-me do gangue do sorriso e ataquei a estrada de terra rumo à de alcatrão. Na reentrada para a estrada nacional, virar à esquerda significava papar quilómetros de volta a Lisboa, onde trabalhava no dia seguinte. Para a direita as placas indicavam Odemira, São Teotónio, Zambujeira do Mar, Algarve. Como eu gosto de pregar surpresas à famelga...




terça-feira, 25 de agosto de 2009

Volta ao Minho, dia três

09:00 é muito cedo para mim, é mesmo, e agora lembrei-me que ela é, ou era, a cara chapada da vocalista dos Texas, lembrei-me do quanto me desorganiza querer colar os calcanhares ao rabo antes de dormir para os primeiros escorregarem lentamente até à posição muito direita do morto, ou o mosquito que goza comigo há duas noites sem que o consiga apanhar, daí escrever o relato do terceiro e último dia no Minho já hoje, a ver se o encontro aqui por cima, desprevenido, o cabrão, mais esperto que sei lá o quê. Confiámos no GPS para rumar ao Gerês. Um erro aqui, outro ali, mas foi-nos bem útil. O Ricardo acha que eu me comovo com o óbvio, e tem 97,7% de razão. Uma língua torta de azul límpido entre montanhas e clique, clique - o tolinho age como se nunca tivesse visto tal coisa. 2% dos 2,3 que faltam cabem no cartaz da oficina da Citroen de Viana do Castelo. Os outros 0,3 entram nas lagoas que encontrámos Gerês acima, até à cascata de Portela do Homem, na fronteira. Tão acima que, salvo melhor solução em território português, estacionámos em Espanha, na Serra do Xurês, regressando a pé cerca de um quilómetro ou dois para enfiar a pata nas águas cristalinas, quase frias, do rio Homem. Andar por ali, de rocha em rocha, apenas para ver de perto um rio entre pedregulhos que se despenha numa lagoa é claramente estúpido, tal o perigo - uma miúda espanhola escorregou numa réplica da cascata maior e, bem, ouch! Mas nós, animais extremamente racionais, fazemo-lo à mesma, que só se vive uma vez e aquilo é giro à brava. A estrada que nos levou a Portela do Homem era tão sinuosa, tão íngreme, que arriscámos dar a volta pelas belíssimas estradas galegas rumo a Paredes de Coura, onde, como há um ano, estava agendado novo jantar na casa da família do Sr. Carlos, dono da cervejaria Solar dos Mouros, ali nos primeiros metros da Calçada lisboeta do Poço dos Mouros. Chegámos ao sítio de Chão, onde o Sr. Carlos mora, já com o Sporting a perder com o Nacional. A viagem foi longa, umas duas horas?, e, na verdade, o clube que por estes dias só me dá alegrias esquisitas não precisa de muito tempo para ficar atrás dos outros. O amor é fodido, já diria o MEC. Como na cervejaria, a Dona São, mulher do Sr. Carlos, apostou em fazer churrasco para um regimento de infantaria. Come mais Rui, olha tanta comida. Pois isso vejo eu Dona São, já azul, olhando de ladeiro para o Sr. Carlos, que nunca me deixou ter o copo vazio de Alvarinho verde branco - o suspeito do costume. A Carla, filha, ia para Ponte de Lima ver Daniela Mercury. Com o assentimento do Ricardo, a Célia acha que eu me ando a fazer à mocinha. Não percebo. Seguindo o rasto de Colin McCarlos, já com uma sarda considerável, descemos e subimos e curva contracurva até Sapardos, onde a grande festa anual de Nossa Senhora de Fátima atraía centenas de casais que ali chegavam em carros de matrícula francesa. As mulheres, pintadíssimas; os homens, de patilha fina em diagonal e cruz dourada ao pescoço. Cabeças de um cartaz monocéfalo: Função Publika, pois então. Com vários membros novos, entre os quais um argentino chamado Carla, esta big band teima em arrastar multidões no querido mês de Agosto. Covers de Bombocas, Queen e Roberto Leal fizeram parte de um repertório versátil, como a enumeração adivinha, mas não esgotaram um espectáculo farto em surpresas. "Vamos oferecer uma bengalazinhas cintilantes e uns balõezinhos amarelos de borracha", anunciou, de repente, um membro espanhol da banda, elevado numa plataforma que apareceu no meio do público, tal como em 2008. Porra, pensei, feliz, isto é Portugal! O fogo de artifício que interrompeu a actuação meteu os narizes em sentido e colheu aplausos apoteóticos. E nós, já depois de o Sr. Carlos, escapando à mulher, me ter levado por um braço para beber um último copo, mal sabendo eu, zonzo de tanta coisa junta, que este seria de penálti, voltámos a Antas, Esposende, que havia um comboio para apanhar no Porto pela manhã. Dormi - tentei dormir - quase uma hora sentado, não fosse a bílis tecê-las. Um punhado de horas depois já me encontrava na redacção, sentado em frente a um computador, tac tac tac num domingo sem pessoas. A tradição ainda é o que era.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Volta ao Minho, dia dois

09:30 é muito cedo para mim. Quem também se orientar por um horário de trabalho de vampiro que se sente ao meu lado. Daí que me tenha sido doloroso o despertar do corpo, não tanto o da mente, quando o telemóvel chateou. (O telemóvel é uma dor no rabo, diriam os ingleses). Destino: Castelo do Neiva. Um intenso fedor a estrume recebeu-nos antes da chegada a um areal quase deserto. O exacto oposto do que foram 12 dias no Algarve. O equilíbrio desejado - dispensava era o perfume. Castelo do Neiva. Para outros lados não se podia, observou a voz da razão. A areia naquela zona é mais espessa do que aquela a que me habituei, mas nem por isso notei diferenças quanto à temperatura da água. Esperava um ataque furioso de lâminas afiadas e eis que se mergulhava sem especial dor. De passagem por casa para um almocinho light - salada e douradinhos - depressa partimos para Viana do Castelo rumo à Citroen. Para quem nunca valorizou especialmente o potencial de sedução desta empresa, aqui fica a minha sugestão: roda batida para a oficina de Viana e mãos em baixo quando se depararem com o cartaz que se encontra estrategicamente afixado na parte de dentro do vidro de um dos escritórios de atendimento, com o que interessa virado para fora. Depois fechem os olhos e sintam a coisa. Feita a revisão ao carro, seguimos viagem para uma caracolada. A ideia inicial era rumar até à casa de pasto Os Telhadinhos, em Ponte de Lima, onde a ementa nos acena com iguarias tão irresistíveis como fodinhas quentes (pataniscas de bacalhau), mentirosos (bolinhos de bacalhau que, é certo e sabido, têm mais batata do que bacalhau) e, claro, corninhos de marcha lenta (caracóis), mas ficámo-nos ali perto, por Viana, no Diplomático. A condizer com o nome, o Diplomático tem empregados extremamente correctos, mas a cozinheira fala pelos cotovelos. Quando esta reparou que a Célia, namorada do Ricardo, não estava a dar o palito à corda tantas vezes quanto isso, veio até junto de nós para saber os motivos de tamanha timidez. Até estou a comer bastante, replicou a Célia, apontando para os três ou quatro caracóis vazios que já tinha espalhado pela loiça. A Célia não gosta de caracóis. Três ou quatro era mesmo um (justificado) elogio. Deixámos o horizonte engolir o sol na companhia de dois amigos do Ricardo: o Manuel Iglesias, que lutava com muita droga previamente prescrita contra uma infecção no estômago, não podendo por isso beber durante três meses, e o amigo discreto, de aspecto nórdico, que era mesmo discreto, de modo que nada sei dele. De seguida, arroz de cabidela. Não dá para comer assim a coisa com arroz normal? Aquela pasta de sangue, só de pensar.. dá, não dá? Deu. Gente boa. Misturei-o só com o molho da carne, para não ficar tão branquinho, pelo menos, a destoar tanto. E o vinho, bem, o vinho estava divinal, como sempre, mas menos fresco, o que se nota. Alvarinho, salvo erro, tal como no jantar da última noite, já na típica localidade de Chão, Paredes de Coura, Cruzes Credo, onde tudo acaba. Antes houve copo e paleio em Viana do Castelo, num bar que eu pedi que fosse de rock e vá que tinha reggae, e olha que bem fixe, algumas horas de sono e a visita possível ao Gerês, em contra-relógio. Aviso do Ricardo: amanhã é para levantar cedo. Cedo?, desesperei. Mas, mas, cedo até que ponto?

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Volta ao Minho, dia um

Vai para cima de uma dezena de anos que Espinho é passagem. Longe - tão longe - vão os Verões passados no pátio de um apartamento mesmo em frente ao liceu, no topo da cidade, que é uma colina grande e urbanizada, e as idas e vindas a pé com o meu primo Pedro até à praia e ao gélido mar de Espinho, eu e o meu primo Pedro a fazer disparates a caminho da praia de Espinho com o Guilherme, que jogava hóquei em patins, e nunca com a Joana, que me deu 100 escudos em troca de um beijo. A minha primeira experiência como prostituto gerou trauma cá dentro: a Joana não tinha culpa, mas era muito feia. Fins mais altos, porém, se levantaram - a vitrina de uma pastelaria ali perto da casa do meu primo. Com o estômago a sofrer e a hora de jantar distante, fiz o sacrifício. Teria uns dez anos. Nunca mais fui o mesmo. Agora Espinho é só passagem. E de comboio, como mais gosto. Foi uma das últimas cidades por onde passei no meu sortudo roteiro de quinta-feira 13, quando varri o país num dia. Às 12:00 no Algarve; às 20:00 no Minho. De carro, primeiro, entre Portimão e Lisboa. De comboio, depois, entre a capital e o Porto, onde me esperava o Ricardo, que depois me levou até à casa onde cresceu, em Esposende. Um ano depois voltei à casa da mãe do Ricardo, aos cozinhados da mãe do Ricardo, à simpatia da mãe do Ricardo. E à família da irmã da mãe do Ricardo, que, nem de propósito, vive na casa ao lado. Localizada em S. Paio de Antas, concelho de Esposende, a casa da mãe do Ricardo era uma coisa antes de ser construída a auto-estrada que lhe passa por cima. Vá, um bocadinho ao lado. Agora é outra. Jantando no terraço ouvíamos de vez em quando o chiar das guias sonoras, aquelas linhas brancas sem fim que nos dizem, Abre a pestana, quando esta teima em fechar. Estará tudo maluco?, pensei. Tanta chiadeira junta, tudo no mesmo local? Explicação: os amigos da família passam ali para se meterem com eles, que é o mesmo que dizer Olá na linguagem muito própria dos carros. Niiioounnnn. Nioun para ti também. Depois de metermos a conversa em dia sobre um arroz de peixe empurrado a vinho verde fresco, fresquíssimo - só melhora - e de ter conhecido o Quique, uma caturra que canta e encanta, segundo me tentou convencer o clã Saleiro, não tendo eu porém ouvido mais do que o esganiçar de cria de gaivota, perto do que um amigo meu entoou há dias ao arriscar o Stayin' Alive dos Bee Gees no karaoke do Boogie Bar, esse trampolim para a fama reservado aos grandes talentos. Fomos a Esposende beber um copo. Espaço escolhido: Pé no Rio - ou Penúrio, como a proximidade entre letras sugeria, ou Penúrias, como depressa lhe baptizei. O Penúrias tem todo o aparato de ser o bar mais bonitinho da zona, com música ao vivo no interior e uma esplanada muito moderna, com wireless e puffs. Mas era lá dentro que tudo se passava. Liderado por uma vocalista de nome Mónica Coelho, um quinteto revisitava projectos como Bryan Adams, Pink Floyd e até deu uma perna num fadinho. À segunda caipirinha - três euros, esperava outra multa, gostei - ouvi a cantora chamar um casal à pista de dança e dedicar-lhes uma espanholada qualquer. De não pouco espanto foi vê-los a dançar como verdadeiros profissionais. Provavelmente porque o são, pensámos, depois de os ver junto de outros casais que tais a ensaiar novíssimos passos de dança a cada música seguinte. Tudo sem falhas. Um longo bocejo. Era parte do staff. E aplaudiam em apoteose cada solo de um músico. E perfaziam entre si quase metade da lotação naquela noite. E dois terços da festa. E nós com uma dúvida: seremos os únicos a perceber isto? Não regressámos a casa sem que antes eu tivesse apanhado a grande desilusão da viagem. A árvore no meio da estrada. Fotografei-a em 2008 na certeza de que estava perante um monumento de rara beleza. A natureza a ser quem mais ordena. Agora, caput. Menos mau que deixaram as raízes, e a estrada já está lentamente a empinar. Entretanto, aviso do Ricardo: amanhã praia. É para levantar cedo. Cedo?, desesperei, Mas, mas, cedo até que ponto?

sábado, 13 de junho de 2009

(Eu achava que) a torre da Faculdade de Direito de Coimbra se chamava cabra mas o Ricardo, concordando com o nome, diz que ela é da Universidade

I

Coimbra sente-se. Isso saltou-nos para a espinha logo à chegada, quando o autocarro que nos trazia de Lisboa passou uma ponte acima do Mondego, para depois atacar rampas aparentemente sem fim rumo à praça da República, onde havia encontro marcado com a Carolina, amiga do Pascoal. Coimbra tem o improviso dos carrosséis. A Carolina também. Chegada de Viseu em 2004 para ganhar um canudo em Direito, vive desde então numas águas-furtadas em estilo Taj Mahal, onde é possível experimentar o exotismo de tomar banho sentado ou virar o último grito dos pequenos almoços: oregãos com tosta mista empurrados por um café com leite servido numa chávena de porquinhos. Agora que me lembro, já se adivinhava qualquer coisa do género quando descobrimo-la a saltitar na curva acima retratada, com a velocidade e o sorriso de quem corre por gosto – e de quem, digamos, desce, bem diferente das mil e uma etapas de montanha de categoria especial que nos esperavam nas próximas horas. Por aquela altura, cerca de quatro horas antes de se iniciar o concerto da Mayra Andrade no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), concluimos que, depois da sorte de poder assistir em casa aos programas de horário nobre da SIC, o segundo grau de felicidade consistia em ter uma guia turistica saltitante, e o terceiro em ver a Mayra Andrade ao vivo, dali a quatro horas. Essas contas ficaram baralhadas assim que chegámos ao Taj Mahal para descarregar a escova de dentes. Quiseram os ventos que, em lugar de sermos guiados por uma Carolina, fossemos conduzidos por duas. Equipada com uma Nikon - “não profissional”, lembrar-nos-ia mais tarde, para nosso espanto -, a Carolina que é de Mértola e fez Erasmus em Barcelona foi por nós raptada quando se preparava para uma fuga solitária, em busca da foto perdida. Em época de exames, queria respirar um pouco. Fotografar. Embora estude sociologia e fale como uma socióloga, depois de pensar como outra, a Carolina de Barcelona quer mesmo é ganhar a vida no jornalismo. Fotografando. Fiz-lhe saber que a vida na comunicação social é actualmente o ideal paraíso, ganhando-se o suficiente para viajarmos até Coimbra e de lá regressarmos a planear um assalto a um ninho de gente abastada, como a casa do dono de um banco ou uma igreja. Esta última ideia foi do Pascoal. Herege.

II

“Esta é a Faculdade de Medicina. À direita vai aparecer a de Letras. E ali ao fundo está a cabra com a bandeira. Chamamos-lhe cabra, à torre. É ali que temos aulas. Às vezes os turistas entram quando estamos a fazer exames.”


“Esta é a casa do Zeca. Ali ao lado, naqueles degraus, começa o quebra-costas. Já vão perceber porquê. Aqui em frente, nas escadas da Sé velha, há um spot clássico de fumos. Se ele também as fumou? Provavelmente.”


- (Às 17:30) Diz aqui que o jardim botânico fecha às 17:30.
- Não é às 20h?
- Podemos sempre fazer como naquele filme [Band à Part] do Godard em que se quebra o recorde mundial da volta mais rápida ao Louvre.
- Boa ideia. Mas não nos vão expulsar de certeza, olha ali criancinhas. Ninguém expulsa criancinhas.

III

Foi com alguma tristeza que, chegando à porta do Quim dos Ossos, para ali jantarmos, demos com ela fechada. O espaço tinha sido elevado por meio mundo à qualidade de cozinha de mãe, pelo que ficámos na expectativa, primeiro, e permanecemos na ignorância, depois: será o mito verdade? Em todo o caso, pouco se perdeu. Exactamente ao lado, outro café nos recebeu com o aprumo que se antevia no vizinho. Moelas, bitoque, alheira, tudo devidamente guarnecido e regado com um tinto Quinta de Cabriz do Dão que se concorresse às europeias eu votava nele. Mais queijinho e pão de entrada. Mais café. Uma amêndoa para cobrir. Tudo de lamber. Sete euros e meio. Não o disse, porque estava satisfeito, mas ocorreu-me a ideia de jantar de novo. Porém, o concerto da Mayra Andrade esperava os rapazes e os livros esperavam as meninas, o que forçou uma separação de duas horas. Até já Carolinas, bom estudo. Beijinhos, bom concerto.

IV

Coimbra tem o improviso dos carrosséis. Pode sempre surgir uma curva inesperada. Em cada esquina um estudante. Em cada esquina um amigo. Em cada mesa um copo. Ou vinte. Foi isso que percebemos ao chegar junto da Carolina do Tibete (destino de sonho dela) e da Carolina de Barcelona, depois de um concerto de encantar, com a Mayra dos cabelos longos agora a expor o rosto de miúda com os cabelos curtos, e a encantar o público do TAGV com a sua voz de diva precoce, e alma cheia, e África a cada gesto. Apresentou Stória, Stória..., o novo disco, ouviu piropos que retribuiu com sorrisos, teve uma claque muito especial de Cabo Verde, perguntou pela Ilha de Fogo e despediu-se com um solo “a cappella” que precipitou soluços e aplausos de pé. Vamos ter com elas, coitadas, a estudar no Tropical enquanto nos deliciámos aqui com uma das vozes mais bonitas que se ouvem por aí. O resto da noite, que passou pelo bar da associação, pelas faces coradas da Vanessa, pela lingua afiada da Filipa, pelo sotaque imbatível da Diana luso-venezuela e pelo Noites Longas, verdadeira bandeira nocturna da democracia, de onde o Dj sai intacto ainda que passe Morrissey e Europe num espaço de dez minutos, explicou que a cidade de Coimbra tem uma forma muito própria de estudar. Até de manhã. E de receber as pessoas. A saltitar.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Reportagem


Esta foto é muito bonita. O Tejo com azul a bold, dois ferries, a Sé. Não tem é coisa alguma a ver com o que tenho para dizer. É só mesmo para vos roubar a atenção. Obrigado!

O que tenho para falar, se fosse filmado da ponte 25 de Abril, rodávamos agora a câmara para a esquerda, com a mesma inclinação, e parávamo-la na zona dos Jerónimos. Foi mais ou menos para lá que me dirigi esta tarde, em reportagem. Destino: Travessa da Memória, na Ajuda. Enviaram-me para a Travessa da Memória, na Ajuda. Claro que não sabia o caminho. Acresce que chovia daquela forma que irrita. E era hora de ponta.

Acho que entrei pela Zona dos Jerónimos dentro como aqueles activistas que invadem os campos de futebol inteiramente nús, mas sem ideias para reivindicar politicamente o meu acto. Isto depois de ter parado na primeira rua sem caos que encontrei. Quatros feixes alaranjados se entrecruzavam pelo carro, que ficou estacionado diante de uma garagem luxuosa. Entrei no primeiro café.

- Olá, sabe onde fica a Travessa da Memória, na Ajuda?
- Travessa da Memória? Não, não me lembro. Mas espere só um instante. ‘Oh Alfredo!, anda cá, ajuda aqui este rapaz’.
- Boa tarde jovem, diz de tua justiça.
- A Travessa da Memória, na Ajuda, não sei onde fica, não sou de cá.
- Oh rapaz, isso é longe daqui. Vai ali em frente aos pasteis de Belém e pergunta, ali sabem.

Consciente da significativa probabilidade de vir a ser abalroado de frente por um eléctrico, segui em frente, ou assim achava. Na verdade, por feliz se pode dar aquele que esta tarde, sem saber, se meteu à estrada pela zona de Belém e, quem sabe, cruzou-se com um condutor que não via um carro à frente dos olhos: eu. Não era pela chuva, embora intensa, nem pelo nevoeiro, porque não o havia. Foi já no regresso à redacção que me saltou a rolha. Dois ou três milagres já se tinham manifestado no entretanto.

Desrespeitando os conselhos do senhor Alfredo, estacionei entre dois carros da polícia, bem atrás dos pasteis de belém, numa zona onde as placas de trânsito não me beneficiavam o coiro em demasia. Entrei num posto de correios.

- Olá - disse.

Vi cidadãos assustados a cruzar o respectivo olhar com o meu. Todos, um por um. Apesar da franja a gotejar e do rosto sombreado de uma barba ofensiva, compreenderam que as minhas intenções eram as melhores quando me dirigi ao primeiro, e este me pousou a mão direita no ombro esquerdo.

- Oh meu amigo, então não sei. Venha cá fora que lhe explico melhor.

O mónologo do senhor dos correios demorou aproximadamente quatro minutos. A conferência de imprensa começava às 18:00. Ao espreitar o relógio, afastei água da testa como se de suor se tratasse, e notei que o primeiro orador teria iniciado o seu discurso há dois minutos. Despedi-me.

Missão: virar a seguir aos pasteis, e depois gancho na segunda à direita. Baixei o volume da Europa Lisboa, repeti incessantemente as palavras-chave, e só desviei o pensamento daí quando, ao deixar para trás o café dos bolinhos, encarrilhei nos carris do elétrico enquanto a restante manada de carros se afastava pela esquerda entre buzinadelas e sinais de máximos. Ou assim me pareceu, quando voltei a entrar no curso preciso do trânsito lisboeta, já depois de ter passado por duas ou três senhoras de mãos na cabeça numa paragem de autocarro.

Entrei no que me pareceu a dita segunda à direita. Gostei do que vi, e sobretudo de não ter ouvido coisa que fosse. Era um bairro residencial, sossegado. Chovia como dantes. Fui-me arrastando em segunda, a olhar para os lados, e encontrei dois senhores a caminhar cerca de 30 metros à minha frente. Aproximei-me e apitei.

- Olá - disse, após me ter esgueirado para o vidro contrário, o do pendura, uma vez que o do meu lado estava com o elevador constipado.

Com gestos efusivos, um deles, depois de se virar, apontou-me para uma placa que já só me dava as costas. Sem reagir ao meu pedido prévio, de saber onde ficava a Ajuda, mais precisamente a Travessa da Memória, pediu-me para recuar. Fi-lo com precaução, descobri a fachada do sinal, e rapidamente compreendi que entrara em contra-mão. Pedi desculpa, disse que não era de Lisboa, e entrei numa transversal ainda mais sossegada, com muito eco de cão a ladrar. Estacionei o carro diante de uma casa com várias luzes subitamente acesas. Suspirei fundo. Saquei de um pano e limpei furiosamente o vidro frontal por dentro e por fora. Depois sacudi-o, enterrei-o na porta lateral, tranquei as portas e dirigi-me a pé para onde a estrada subia.

No curto trajecto que fiz até encontrar novo café, pensei na febre que tivera até há dois dias, pelo que amaldiçoei a chuva e o cão que me perseguia. Os donos já estavam a fechar o dito estabelecimento, mas sempre me disseram que me encontrava no bom caminho. Insisti 20 metros à frente com um rapaz que entrava num prédio. Tê-lo-ei apanhado de surpresa, porque se virou com um ar assustado quando lhe fiz uma pergunta pelas costas.

- Olá – disse antes.

- Ah, a Travessa da Memória? Estás perto. Vira aqui à direita, depois sobes e viras de novo à direita. Segues e é lá ao fundo à esquerda.

Meti o capuz, e fiz-me à estrada, confiante, até que encontrei a Travessa, logo se descobrindo o espaço onde ia decorrer o evento. Cheguei 30 minutos depois da hora. Ainda não tinha começado. Os oradores despacharam a coisa com a rapidez de verdadeiros profissionais. Voltei ao carro depois de me esquecer duas vezes na volta do trajecto que fizera na ida. Liguei o carro já com o pano nas mãos, e zás-zás no vidro frontal. Segundos após ter arrancado já não teria visto uma avestruz que se debruçasse sobre o capôt.

Subi até ao prédio do rapaz com quem falara pelas costas, e vi parar, sem fazer qualquer sinal de mudança de direcção, o carro que há alguns segundos perseguia. Espreguicei-me muito torto, bocejei, procurei as horas no pulso esquerdo - não uso relógio -, e quando voltei à posição atenta compreendi que o condutor da frente estava a fazer marcha-atrás, o que só não resultou num violento embate com a dianteira do meu carro porque estávamos numa subida, e limitei-me a carregar na embraiagem, recuando sensivelmente à mesma velocidade que o meu perseguidor de traseira, que por fim preencheu um buraco vazio entre carros, à direita.

Suspirei fundo, ganhei coragem, e ao passar pelo esperto fuzilei-o com os olhos.

Foi a pensar nisto tudo que, já no trânsito da marginal, no lento trajecto de volta à redacção, dei conta de que o problema do vidro frontal se poderia chamar humidade, pelo que estaria bem ligar o ar quente e direccioná-lo para cima.