quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Aveiro não tem rock, excepto se abrires a pestana


A Fátima contemplava o lago do jardim do hotel sem perceber se um peixinho branco muito quieto seria efectivamente um peixinho branco ou um calhau. Era um peixinho branco. Talvez por isso, lembrou-se do tempo em que teve um bicho-da-seda. A Fátima gostava muito da lagarta; quando esta morreu, enterrou-a numa caminha de algodão e procurou uma explicação que a confortasse. Concluiu que a lagarta tinha morrido de solidão e decidiu que para a próxima teria não um, mas dois bichos-da-seda, que um casal sempre dura mais.

Depois teve cágados. Também morreram.

Chegámos a Aveiro em espírito de missão: era preciso desconstruir o mito de que a cidade não tinha rock. Antes disso enchemos a barriga n'O Mercantel, que fica na Praça do Peixe. À nossa frente, um jantar de natal daquele tipo de malta que se embebeda com um copo de sangria; na televisão, o Carrillo fazia slalom entre bandeiras na relva. Na nossa mesa, cabrito no forno mais espetada de porco com gambas mais Esteva. A par do café pedimos um licor da terra e a dona do restaurante deu-nos um do bairro (Beira Mar). O licor levava menta, por isso era verde. Achámo-lo espesso. Pedia licença para passar na garganta. Não repetimos.

A dona era de tal maneira do tipo de agradar que não nos deixou sair sem nos levar à janela para indicar a cúpula da Capela de São Gonçalinho, do lado de lá de um dos canais da ria de Aveiro. É lá que acontece o ponto alto das festas de São Gonçalinho, no início de janeiro: aveirenses, devotos e malucos sobem à cúpula e atiram cavacas para pagar promessas ao padroeiro da cidade, de quem se diz ser entendido em resolver problemas de romance e ósseos.

As cavacas são doces, mas também são duras, por isso a multidão tenta apanhá-las com um guarda chuva virado ao contrário. O culto local ao beato é grande, e ficámos a saber que dali a dois dias haveria um cortejo de oferendas "pastoras" e um leilão. Cheirou-nos a forrobodó. Prometemos ir. Fomos. O cortejo era animado por uma fanfarra, um quarteto com peso e idade que incluía tambor, seu fiel bombo, saxofone e acordeão. A organização ficou a cabo da Mordomia de São Gonçalinho. Os cânticos eram das pastoras e do Grupo de Xailes. Na frente arrastavam-se duas mulas com focinho de quem preferia estar a pastar noutro lado.

Terminado o cortejo, os mordomos esperaram que as crianças, os antigos e a Fátima fizessem festinhas nas mula. Depois lá deram início ao leilão. O primeiro artigo, uma garrafa de vinho de litro e meio, foi arrematado por vinte e cinco euros. O segundo artigo a ser arrematado foi o terceiro, um bacalhau: trinta e cinco euros. Só mais tarde dei conta, porque a Fátima o referiu, que o arrematante tinha sido o Dj do leilão, que era aliás o Dj de um bar onde tínhamos ido na véspera e também um dos 17 mordomos do beato que aproxima corações desavindos e favorece ossos mais frágeis. Encontrámos no cabaz uma garrafa de Jameson; fugimos antes que nos desse ideias.

Não faltou rock na cidade sem rock, assim como não faltou uma música de kizomba num bar de reggae, o Posto 7. Ainda não decidi se o roça/roça de rabo a fazer de mesa ter sido misturado com Serge Gainsbourg melhora ou piora a coisa. Tivemos um problema com o Kitten's, um irish pub: meteram uma Celine Dion a BERRAR Led Zeppelin. Aliás, ali praticamente só passava boa música em segunda mão, de modo que faltou sempre um bocadinho "assim" a um bar até bem acolhedor. Gostámos muito do Mercado Negro, uma associação cultural mesmo em frente ao canal central da ria que ocupa o andar de um prédio comum restaurado. Era noite de passar vinis, cortesia dos donos de uma loja de discos. David Bowie, Beatles, Franz Ferdinand. Nas paredes, gente desenhada com as vísceras à mostra. Resmas de hipsters pelas várias salas do andar.

O último dos bares que visitámos foi o Morgan & Jacob's Guesthouse. A primeira impressão, depressa confirmada, foi que o espaço tresandava a chouriça assada. A segunda foi que o Dj, o tal que arrematou um bacalhau por trinta e cinco euros, não falhava uma. Depeche Mode, Smiths, James, Strokes: pow!, cada tiro, cada melro. Pedi Arcade Fire. Na música seguinte já estávamos a ouvir a Rebellion (Lies). Gente boa.

De maneira que abanávamos os ossinhos à pala da cidade sem rock quando um rapaz caiu redondo, à nossa frente. Caiu de olhos abertos, de costas, desamparado, e bateu com a nuca no soalho. Lembrei-me do Fehér. Gritei à primeira pessoa que o acudiu para o meter de lado, como dizem por aí. O Dj calou o Win Butler e premiu o 112. Algumas pessoas saíram, o cenário não era propriamente coisa de se ver. A maioria das pessoas ficou por ali, atónita, à espera.

Sem cor, com os olhos abertos, o rapaz não se mexeu durante alguns segundos, mas lá pareceu recuperar a consciência. Ao meu lado estavam dois amigos dele. Um, mais velho, dizia que o rapaz estava bem e que deveriámos levantá-lo. Disse-lhe que nem pensar. Ao outro amigo vi em estado de choque. Era mais novo e por vezes ria-se quando lhe faziam perguntas, aquele risinho nervoso dos parvos. À minha questão, olha lá, o que é que vocês meteram para dentro, respondeu, só vinho. Procurei os olhos dele até incomodar e disse-lhe que não acreditava - ninguém acreditaria num puto que tem o amigo quase a morrer e continua no céu com diamantes. Vinte minutos depois chegaram os bombeiros. O rapaz que desmaiara vomitou mal o tentaram erguer. Menos mau. Soubemos no dia seguinte que ele tinha ficado bem, disse-nos o Dj, que nos encontrou à passagem do cortejo e abriu caminho entre as mulas para nos dar a boa nova.

Aveiro pode ser tudo, menos ingrata. A cidade soube modernizar-se, mas cada recanto parece um bom lugar para homenagear quem dela fez o que hoje é. O Zeca Afonso, filho da terra, está em todo o lado. Os pescadores e as varinas também. Gostámos muito das pinturas populares que decoram os moliceiros, os barquinhos que no outro tempo serviam para a apanha do moliço, uma espécie de alga colhida para ser utilizada como fertilizante agrícola, e agora levam o rebanho turístico. Também fomos carneiros. O nosso moliceiro ganhou a simpatia imediata da Fátima porque tinha uma pintura alusiva ao Eusébio na proa. O meu preferido trazia a caricatura de um malandro aos pés de uma mulher de lingerie, a quem dizia, "que rica fruta a menina aqui tem."