terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

amanhecer sobre a lagoa com flamingos


Uma folha em branco: com esses olhos grandes não especialmente bonitos e o rosto a ruborizar perguntas-me para que serve uma folha em branco e eu lembro-te que ainda tenho no quarto as pétalas secas da rosa que te ofereci na noite em que os meus amigos te conheceram e amaram e de ti quiseram saber tudo, e eu sorria mas achava melhor o contrário, para o bem deles e aliás teu e afinal meu, sempre a sós com o ego no final do dia, ainda que o evite,

as pétalas mortas da noite da rosa horas antes de amanhecermos pela primeira vez, tu, eu e a ausência de espaço, só a brisa quente e selvagem do primeiro bocejo, lençóis maltratados e corpos, a tua pele revoltada que tanto afecto pedia, tudo junto e resumido a suores de verão precoce e vontade de ficar,

não é que as guarde, as pétalas mortas estão para ali misturadas no canto poeirento daquela estante que faço questão de nunca limpar, a dos filmes que nunca viste ou irás ver para lá da segunda cena, pelo menos comigo por perto, o teu peito aos pulos e as mãos descontroladas conduziam-te para longe da estante de onde nunca saíram as tuas pétalas mortas, protegidas entre os circos do fellini e o bang-bang do leone, não!, os teus tiroteios eram outros, e a folha em branco, respondo-te, a folha em branco serve para te lembrar isso mesmo, substituiu-te sempre que não estiveste cá para que te pudesse gritar por cima das canções que tanto gostaria que tivesses gostado enquanto faziamos tremer a cama e o terço apertado nas mãos da vizinha, a santa que me olhava fixo nos olhos e nunca me negou oregãos, que é para isso que os vizinhos servem e sabes como eu gosto deles, dos oregãos, e a minha vizinha ouvia-te, claro, ela, o prédio e metade da rua ouviam o que de ti saía como gloriosas explosões pirotécnicas atrás de igrejas em feriados religiosos na aldeia profunda, a sós ou com alguém do outro lado da parede gritavas como uma peixeira de mãos nas ancas com unhas vermelho-berrante já na praça a vender a sua bancada antes de o marido se deitar, torto, vestido, inútil, e achava maravilhoso o sangue que em ti corria e gritava-te que via naquilo tudo uma doença só para te ouvir responder que melhor seria fodermos a cura,

perguntas-me, sei que o fazes, que raio significa isso de amanhecer sobre a lagoa com flamingos, e estampá-lo numa folha branca, qual o significado e para que merda te serviria isso ou uma folha em branco ou qualquer coisa, e digo-te que essas palavras formam o título da fotografia de uma viagem à América do Sul de uma rapariga com quem estive seis horas em 26 anos, roubei-lhe o título da fotografia da viagem que não fizemos porque sempre fugiste com os teus pontos de interrogação e voltaste com as tuas certezas, e o meu refúgio do caos na folha em branco,

teu amigo, não sei se quero ser teu amigo, esse pensa em ti sem corpo e eu dispo-te sempre, estejas a um metro ou a um ano, e faço-o desde que deixaste no meu quarto a tua adorável camisolinha vermelha para teres sem dúvida de voltar, e sabias que a subsequente mensagem à laia de dez cêntimos era um pedido de corpo e não de desculpa pelo suposto incómodo, e não a memória a falhar-te, eras tu e tudo e mais e tanto no jogo que arrastámos, tu e as tuas pernas de 20 anos com o mesmo tacto que deverias ter aos 10 e o teu caminhar barulhento em tacões autoritários quando te afastavas e eu ficava a observar-te da cama, sem cinema porque sem cigarro e fumo no canto da minha boca, apenas silêncio e músculos exaustos, e eu ficava e tu escapavas quarto e casa fora apressada com o teu beijinho falado a transbordar de culpa já a descer as escadas rumo ao carro, de novo a sós com a tua insensatez, tu com a culpa toda e o teu ruído que te impedia de me ouvires dizer que a tua culpa era também a minha, talvez te sentisses melhor se o soubesses e percebesses que não podia ser assim, não de novo, não tudo outra vez e fugir do reflexo do espelho até ao doentio regresso, não isto de hoje me interrogar em que tom de preto me olhas.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Panda Bear: só faltou o mimo


Respeitem as ideias do rapaz!, reclamavam uns, de peito feito. Concordo, mas nem uma amostra do Person Pitch?!, devolviam outros, insatisfeitos com o espectáculo a que acabavam de assistir. Para os mais distraídos, como eu, que ao escrever isto também faço questão de ter onde voltar para recordar como foi, aquele consistiu no curto desfile - nem uma hora - das novíssimas canções de Tomboy, quarto disco ainda por editar do Noah Lennox, baterista dos Animal Collective e exclusiva razão de ser do projecto a solo Panda Bear, que sexta-feira e sábado passou pelo Lux. Temos álbum, pela amostra, com preciosidades como aquela que fica publicada aí em baixo, mas também queríamos mimo – leia-se: uma passagem por qualquer faixa do estratosférico Person Pitch, das melhores coisas que se fizeram em 2007 para tanta e tão boa gente. Ainda assim, o pouco que faltou no espectáculo do Panda Bear, na sala de baixo, houve de sobra na de cima com Dâm-Funk: Damn!, que pinta de DJ set. Na primeira vez que visita Portugal, meses depois de Toeachizown ter assaltado escaparates e pistas de dança, o irrequieto connaisseur de tudo o que cheira a funk levou-nos noite dentro numa deliciosa festa cool, Lisboa mascarada de Los Angeles, de regresso aos anos setenta e oitenta.



(não sei se o título da canção já está definido, se será mesmo o que vem associado a este vídeo)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Arctic Monkeys: os rapazes da net estão crescidos


Enquanto músico, já o sabemos, Alex Turner tem mais para dizer do que tempo de canções para o conseguir. A maior virtude que lhe descobrimos ferve precisamente aí: consegue mesmo esse equilíbrio de virtudes, já que o Alex cantor raramente diminui o raio de acção do compositor – aplica-se a lógica contrária. Melodia e letra fluem par a par. A corda da métrica nunca rompe. É, por isso, simultaneamente um observador nato, um compositor dotado de um talento transbordante - imagina-se uma biblioteca engraçada lá em casa -, e um vocalista convincente. Tudo isto, e pelo peso de que o jovem de 24 anos goza na banda, confere a esta um estado de graça que não garante espectáculos de público ganho ao primeiro acorde, mas ajuda. Ontem foi assim: ou porque a base de fãs dos Monkeys conhece efectivamente o trabalho destes - nem sempre isso acontece, não é Sigmund? -, ou porque, no limite, a malta fez o trabalho de casa. Tudo isto na certeza de que as explosões diabólicas de som dos ingleses, um rock de energia punk com reflexões profundas sobre trivialidades, nem sempre foram distribuídas da melhor forma pelos cantos do Campo Pequeno. A acústica não é mesmo o forte daquela (agora só por vezes) praça de touros e de estupidez, olé.

Ao final da segunda música do alinhamento, 'Brianstorm', já Alex Turner acenava à multidão de expressão e gestos vagarosos, como uma diva de passagem pela província que é escoltada por batedores da polícia. Ou então de quem andava ali a reboque de outras substâncias mais, digamos, exóticas. “Thank you, you are too kind”. Aquele humor britânico. De lata de cerveja na mão, três discos e quatro anos depois dos Arctic Monkeys rebentarem no Myspace, Alex Turner surge confortabílissimo em palco na sua versão ‘entertainer’ ‘goofy’, de rainha a pavonear-se para gáudio dos seus súbditos, loucos por lhe descobrir um piscar de olhos que seja, e lá por dentro, ele, Alex, a Rainha, com inteiro desdém por todos eles. Claro que ninguém o leva a sério – começando pelo próprio.

Além do aspecto mais leve dos seus espectáculos ao vivo, os Arctic Monkeys também já se preocupam em apanhar a malta desprevenida com explosões de confettis. Houston, we have a band. O resto, ao contrário do que diz o outro, não são peanuts: é música, muita e boa. Na terceira passagem dos Monkeys por Lisboa, um dia depois de actuarem no Porto, o terceiro disco (Humbug, 2009) foi tantas vezes tocado como o segundo (Favourite Worst Nightmare, 2007)) e o esmagador primeiro (Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not, 2006), e a notícia está na (óptima) receptividade que isso mereceu de um Campo Pequeno à pinha. Os rapazes estão a deixar esse frenezim adolescente que é o punk em detrimento de um rock com menos velocidades, mais denso, negro – Josh Homme na produção, por supuesto -, e a coisa resulta, ainda que ao vivo as diferenças se diluam. Resumindo: poucos actos falhados, muita canção entoada a cinco mil vozes – ‘I Bet You Look Good On The Dance Flor’ e ‘When the Sun Goes Down’ à cabeça, mas também os singles de Humbug ‘Crying Lightning’ e essa delícia pachorrenta chamada ‘Cornerstone’ -, enfim, tempo ganho, sem deslumbramento mas ganho.

p.s: menção honrosa ao talentoso baterista Matt Helders, a quem farei a vontade e passarei a tratar por ágil besta, nome que vinha impresso no bombo que espancou sem piedade durante hora e meia.