O cigano Arlindo era tão zeloso em conservar o perfil desconfiado e firme dos membros daquela comunidade que, num domingo como os demais, compreendeu ser a altura certa para dotar o filho adolescente de alguma esperteza, enganando-o. Nunca lhe ocorreu, naquela manhã fria de inverno-verão, que transformar semelhante pensamento em acção conduziria a duas mortes e uma viagem. Anos mais tarde, no leito da morte, com o filho do lado, confessou tudo sem arrependimento. No povoado havia quem jurasse a pés juntos que, ao ouvir o pai, Emanuel abriu as fontes, levantou-se e saiu tenda fora, deixando-o morrer sozinho; noutra versão da história, contava-se que o cigano filho teve um desarranjo intestinal e foi aliviar-se no mato sem explicação prévia, encontrando o pai morto de desgosto no regresso.
Na verdade, o plano de Arlindo para fazer do filho crédulo um homem capaz passava por Rosa, a nova e divorciada vizinha da comunidade. Já repara como o filho se assomava à cerca para a ver estender a roupa. Sabia como Emanuel lhe admirava as ancas largas; como desprezava o amigo que com ela passeava na serra todos os domingos antes de almoço, enquanto a população se acotovelava na capelinha para adorar os sermões do padre; como não tinha opinião formada sobre o resto das coisas terrenas e acima. Arlindo chamou o jovem Emanuel à tenda.
Ao ouvir o próprio nome, o rapaz estragou em duas pisadelas a cama de lama que levara três horas a moldar e correu aos S entre galinhas e porcos para chegar ao encontro do pai antes que este tivesse tempo de acender um cigarro. O cigano Arlindo fumava sempre aquele cigarro depois da primeira refeição.
O burro está maluco, só dá pinotes. Leva-o a pastar até à serra. Quero-te de volta antes do sol a pique.
Há muito que a venda de roupa em terceira mão deixara de dar para os gastos. A comunidade já vivera melhores tempos. Certa noite, em redor de uma fogueira, todos ouviram e compreenderam os ensinamentos de Arlindo, o líder. Muito se decidiu a favor das economias, mas nada foi tão lamentado como o entendimento de que o burro seria ensinado a deixar de comer. Se não havia pasto sem chuva, dado o pouco rigor daquele Inverno, também não seria a comunidade a comprá-lo, aliás fintando o destino. Esta ressalva revelar-se-ia decisiva para que a ideia fosse aceite e houve mesmo quem festejasse o jejum do burro em redor da fogueira, dançando e até zurrando, a bem do que tinha de ser. Dali em diante, o burro limitar-se-ia a transportar carga, humana ou não. Era forte. Aguentar-se-ia.
Emanuel já dormia na noite da fogueira e ninguém da comunidade lhe viria a contar que o burro deixara de comer. Eram próximos, Emanuel e o burro. A seguir ao prazer de brincar na lama, fazer correr galinhas à sua frente e procurar as ancas da vizinha Rosa, Emanuel compreendia que o grau máximo de felicidade era montar o burro e correr as redondezas aos pinotes. Nos últimos tempos notava-lhe o focinho abatido, mas atribuira de pronto a culpa a alguma mula mais libertina. A tristeza do burro lembrava-lhe a sua, pelo menos desde que viu Rosa e deixou de conseguir dormir.
Ao sair da tenda, Emanuel foi recebido pelo burro aos pinotes e depressa montou o animal, chegando à serra em menos que pouco. O frio eriçava-lhe os pêlos dos braços e arrepiava também os do burro. O vento gélido era forte e constante. Rezou quatro pais nosso e cinco avés maria para que os céus o poupassem, mas, urinando ao relento no ponto mais alto da serra, levou um abanão tal de uma rajada que por pouco não tombou ladeira abaixo. Com respeito, sentindo-se avisado, devolveu as calças à cintura, apertou-as com um cordão sem futuro e ao longe avistou Rosa, encostada a uma árvore, parecendo a Emanuel que a vizinha encetava movimentos incertos com a cabeça e fazia equilibrismo com as ancas.
A principal virtude de Rosa era também o seu maior defeito: o entusiasmo. Por ele ficou surda antes dos 30, de tanto gritar. Bebia bem, nomeadamente ao domingo, e como tinha olho azul de vidro durante muito tempo passou por cega para aqueles que com ela se cruzavam quando regressava a casa às apalpadelas. Na certeza do que via, aliado ao que sabia, Emanuel vergastou o lombo do burro e acorreu até junto da vizinha de forma a ajudá-la a encontrar o passo, pois julgava-a bêbada. Ao chegar, percebeu que não estavam sozinhos, ele, ela e o burro – não: entre as notáveis ancas da vizinha encontrou a cabeça do amigo dela que ele, Emanuel, desprezava. Furioso, o amigo fez por se levantar e, a bem da verdade, dir-se-ia que lhe passou pela cabeça desfazer o nariz do cigano com os nós de um punho firme. Não chegou a consegui-lo.
Emanuel ruborizou, ficando sem saber o que dizer, e, ainda em cima do burro, aplicou-lhe um valente açoite para que batesse em retirada. O que de seguida se viu foi um tanto diferente do que o jovem pretendia. Aterrorizado pela urgente e confusa mensagem, o asno não seguiu por onde devia e passou por cima do amigo da vizinha do cigano, esmagando-lhe o crânio. Emanuel ouviu os lamentos gritados da vizinha ficarem cada vez menos audíveis à medida que se afastava a trote de burro, num ritmo de competição amadora. Conta-se no povoado que o burro correu sem se deter durante três horas em redor da região, até se deixar vencer pelo cansaço. Indiferente às ordens do cigano, que procurava regressar à comunidade tão depressa quanto possível, o burro travou num pequeno prado. Emanuel julgou-o faminto e estendou-lhe duas mãos de pasto junto do focinho, repetindo o gesto catorze vezes, e assim as coisas iam quando viu o asno estatelar-se no chão, sem respirar. Desabituado de comer, o burro morria num estranho tipo de gula, debaixo de uma amendoeira em flor.
Quando regressou ao acampamento, ao fim da tarde, gemendo por força de grandes feridas nos pés e no coração, Emanuel julgou que seria repreendido e castigado, mas foi com espanto que, de noite, deitado na sua cama de palha, recordou o meio sorriso com que o pai Arlindo recebeu a notícia de tamanhas desventuras, nunca depois partilhadas, e, sereno, ordenou.
Faz o teu saco. Avisa a comunidade. Partimos ao amanhecer.
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