O perrito ficaria ao cuidado de uma menina que morava ali na vizinhança, e que se mudaria para nossa casa. Era o que se arranjava, por muito que a todos custasse. Destino da família: Angola. Além de muito amigo de brincar e dos donos, "sem raça", segundo garantia a minha avó, o perrito era também um cão muito astuto. Pressentindo-a, estranhou a azáfama da noite anterior e permaneceu em alerta para o dia seguinte, que seria o de partida, junto ao tapete da porta de entrada. Os movimentos apressados de quem precisa de ficar sem tempo para fazer de herói de cinema, escapando com um número no último instante; as últimas peças de roupa a empurrar mala dentro; a última ronda de despedida aos cantos da casa: nada lhe escapou, nada compreendia. Por isso passeava-se sem paciência, dividindo focos de atenção, sempre de orelhas levantadas e cauda a dar a dar. Ladrava esporadicamente mas firme, de olhar fixo, alternadamente na minha avó e na minha mãe, que tinha 13 anos e era mais bonita do que se podia dizer em Quatrim do Norte. O perrito marcava presença. Estava ali, fazia parte do grupo, exigia uma explicação. Teve-a parcialmente, pela minha mãe, já com tudo e todos na rua. Beijando-lhe o focinho, disse, apontando para a vizinha, a nova dona, que se lhes juntava nas despedidas: “ela vai tomar conta de ti, hein? porta-te bem!”. O perrito não percebia a lingua humana, além do que julgava ser o seu nome, tantas vezes repetido, e por isso ladrou de dúvida, o que erradamente foi interpretado pela minha mãe como certeza. A minha avó aproximou-se e afagou-lhe o lombo. “Estão muito atenciosas, que diabo!”, ladrou o perrito, de si para si. As donas afastaram-se a caminho da paragem da carreira para Olhão. Desconfiado, o perrito foi atrás. Com elas esperou até algo acontecer. Tentou agradar e enrolou-se nos pés da minha mãe, que já fungava, gaguejando para conter o mar de tristeza que nos olhos dela já se via chegar. “P-á-ra perrito!”. Amigo dos adultos, sentinela de Quatrim do Norte e um puro-sangue, o perrito não sabia que, à entrada dos anos 60, pessoas desconhecidas já partilhavam um carro muito grande a que chamavam de carreira e nele desapareciam, estrada fora, com sonhos distintos e destinos muitas vezes comuns. Por isso estranhou, pouco depois, ver a minha mãe e a minha avó abalarem Quatrim do Norte abaixo num desses carros muito grandes, serpenteando caminhos que entroncavam na estrada nacional 125, ora em direcção a Tavira ora para Olhão. Alarmado, o perrito foi atrás. Sabe a gente da terra que nunca deu mais de dois metros de distância à carreira, desde casa até ao fim da primeira subida para Olhão, corrida sôfrega a que a minha mãe assistia lavada em lágrimas no assento do banco corrido de trás, onde os mais novos melhor se sentem. Cerca de dois quilómetros de perseguição e o perrito não dava descanso à carreira. Quando o corpo não aguentou mais, o perrito cedeu e levantou poeira da estrada velha com uma queda aparatosa. Pela terra ficou alguns minutos, observando a custo como a carreira se afastava até desaparecer no horizonte, levando-lhe as donas. O caminho de regresso foi muito longo. Quando finalmente chegou a casa, o perrito arrastou-se até ao quarto da minha mãe e nunca mais de lá saiu, recusando-se a comer nos dias que se seguiram até se tornar, tanto quanto se sabe, no primeiro cão de Quatrim do Norte a morrer de desgosto.
"The only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing but burn, burn, burn like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars." J. Kerouac
quinta-feira, 31 de março de 2011
sábado, 26 de março de 2011
Sabedoria
Vale do Douro |
Elenco:
vivi (avó)
maluquinha (mãe, filha da avó)
rapaz das horas (eu, filho da mãe e neto da avó).
segunda-feira, 21 de março de 2011
Inquietação
Vi um gato desesperar em redor de um pneu à procura da própria cauda quando deixei a boa gente que improvisara de amigos e fui procurá-la. Encontrei-a pouco depois, em sentido inverso, nas traseiras sem gente de um pavilhão, ao lado da escola secundária da vila. Quem por ali passasse, observando a principal parede erguida naquela parte da escola, podia ler a inscrição de boas-vindas em inglês técnico, “Welcam to the Well”. No rosto dela confirmei a expressão permanente de dúvida e curiosidade que na véspera me intrigara, quando nos conhecemos. Adivinhei-lhe o grande ponto de interrogação em estado de alerta vermelho na caixinha das ideias. Era alta. Pele bonita e muito branca, naquele dia rosada pela força do sol autoritário. Uma novidade no habitual rigor da serra. Da boca dela, trejeitos que exigiam atenção. O sorriso demorava a sair. Olhos cor de mel. Tinha o jeito de parecer o que acho que seria uma das mulheres que vive dentro do Chico. Não fiz muito por escondê-lo: duas horas depois de a conhecer, na mesa redonda dos jantares de etiqueta, reprovado pelos olhares mais indiscretos, já lhe tentava cantar ao ouvido “Quem te viu, Quem te vê” e “Com Açúcar, com Afeto”, desesperando por me lembrar da letra de ‘Atrás da Porta’. Lembrar-me-ia depois, com a amnésia adormecida pelo bom vinho.
Beijámo-nos à segunda hesitação, no primeiro passeio. Foi urgente. Uma aflição pouco comum. Deixou de haver pose faz-de-conta-que-é-turista nas ruas impecavelmente velhas, quase desertas, aqui e ali pontuadas pelos movimentos arrastados dos setentas, oitentas e noventas que ali esperam pelo que tem de ser. O relógio contra nós tiquetaqueava. Os gestos eram sôfregos. Dançámos desengonçadamente. O regresso foi longo. Cada esquina uma despedida. A lua tudo abençoaria horas depois, com o maior holofote em 18 anos. Guardei-lhe o olhar inquieto, quase assustado pela hipótese do adeus, e o cheiro de rosas frescas de mulher desejada. Mocinha bonita.
Beijámo-nos à segunda hesitação, no primeiro passeio. Foi urgente. Uma aflição pouco comum. Deixou de haver pose faz-de-conta-que-é-turista nas ruas impecavelmente velhas, quase desertas, aqui e ali pontuadas pelos movimentos arrastados dos setentas, oitentas e noventas que ali esperam pelo que tem de ser. O relógio contra nós tiquetaqueava. Os gestos eram sôfregos. Dançámos desengonçadamente. O regresso foi longo. Cada esquina uma despedida. A lua tudo abençoaria horas depois, com o maior holofote em 18 anos. Guardei-lhe o olhar inquieto, quase assustado pela hipótese do adeus, e o cheiro de rosas frescas de mulher desejada. Mocinha bonita.
quinta-feira, 10 de março de 2011
quinta-feira, 3 de março de 2011
O astrónomo Carl Sagan define o termo cosmos como sendo "tudo o que já foi, tudo o que é e tudo o que será"
O candidato vencedor das próximas eleições presidenciais do Sporting terá de reunir um conjunto de condições mínimas para desempenhar o cargo com sucesso, nomeadamente ser tu-cá-tu-lá com o professor bambo ou, de preferência, ter a capacidade de mudar o cosmos.
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