quinta-feira, 31 de março de 2011

perrito

O perrito ficaria ao cuidado de uma menina que morava ali na vizinhança, e que se mudaria para nossa casa. Era o que se arranjava, por muito que a todos custasse. Destino da família: Angola. Além de muito amigo de brincar e dos donos, "sem raça", segundo garantia a minha avó, o perrito era também um cão muito astuto. Pressentindo-a, estranhou a azáfama da noite anterior e permaneceu em alerta para o dia seguinte, que seria o de partida, junto ao tapete da porta de entrada. Os movimentos apressados de quem precisa de ficar sem tempo para fazer de herói de cinema, escapando com um número no último instante; as últimas peças de roupa a empurrar mala dentro; a última ronda de despedida aos cantos da casa: nada lhe escapou, nada compreendia. Por isso passeava-se sem paciência, dividindo focos de atenção, sempre de orelhas levantadas e cauda a dar a dar. Ladrava esporadicamente mas firme, de olhar fixo, alternadamente na minha avó e na minha mãe, que tinha 13 anos e era mais bonita do que se podia dizer em Quatrim do Norte. O perrito marcava presença. Estava ali, fazia parte do grupo, exigia uma explicação. Teve-a parcialmente, pela minha mãe, já com tudo e todos na rua. Beijando-lhe o focinho, disse, apontando para a vizinha, a nova dona, que se lhes juntava nas despedidas: “ela vai tomar conta de ti, hein? porta-te bem!”. O perrito não percebia a lingua humana, além do que julgava ser o seu nome, tantas vezes repetido, e por isso ladrou de dúvida, o que erradamente foi interpretado pela minha mãe como certeza. A minha avó aproximou-se e afagou-lhe o lombo. “Estão muito atenciosas, que diabo!”, ladrou o perrito, de si para si. As donas afastaram-se a caminho da paragem da carreira para Olhão. Desconfiado, o perrito foi atrás. Com elas esperou até algo acontecer. Tentou agradar e enrolou-se nos pés da minha mãe, que já fungava, gaguejando para conter o mar de tristeza que nos olhos dela já se via chegar. “P-á-ra perrito!”. Amigo dos adultos, sentinela de Quatrim do Norte e um puro-sangue, o perrito não sabia que, à entrada dos anos 60, pessoas desconhecidas já partilhavam um carro muito grande a que chamavam de carreira e nele desapareciam, estrada fora, com sonhos distintos e destinos muitas vezes comuns. Por isso estranhou, pouco depois, ver a minha mãe e a minha avó abalarem Quatrim do Norte abaixo num desses carros muito grandes, serpenteando caminhos que entroncavam na estrada nacional 125, ora em direcção a Tavira ora para Olhão. Alarmado, o perrito foi atrás. Sabe a gente da terra que nunca deu mais de dois metros de distância à carreira, desde casa até ao fim da primeira subida para Olhão, corrida sôfrega a que a minha mãe assistia lavada em lágrimas no assento do banco corrido de trás, onde os mais novos melhor se sentem. Cerca de dois quilómetros de perseguição e o perrito não dava descanso à carreira. Quando o corpo não aguentou mais, o perrito cedeu e levantou poeira da estrada velha com uma queda aparatosa. Pela terra ficou alguns minutos, observando a custo como a carreira se afastava até desaparecer no horizonte, levando-lhe as donas. O caminho de regresso foi muito longo. Quando finalmente chegou a casa, o perrito arrastou-se até ao quarto da minha mãe e nunca mais de lá saiu, recusando-se a comer nos dias que se seguiram até se tornar, tanto quanto se sabe, no primeiro cão de Quatrim do Norte a morrer de desgosto.