Sr. Pinto: a fazer estudantes levar os dedos à goela desde 1978 |
Já a digerir o leitão do nosso almoço, porco novo ao qual, no entender da mocinha do meu amigo Ricardo Chirola Saleiro, "faltava febra", vagueámos pela alta de Coimbra à procura do Pintos, um café histórico local. Há dez anos que o Chirola não se permitia visitar Coimbra, cidade onde se fez licenciado, e frágil vai aquela memória no que toca a lembrar-se dos caminhos e cantos onde foi enchendo a cara ao longo do curso. Lá demos com aquilo, fruto da boa vontade de duas senhoras que, sentadas à sombra dos edifícios altos que pontuam a paisagem, falavam de forma retraída após serem por nós abordadas - "olá, onde fica o Pintos?". Na verdade, pareciam verbalizar apenas metade daquilo que pensavam. Mais tarde acabariam por declarar que, ao contrario da maioria do nosso grupo de cinco, não eram do Sporting.
Coimbra parecia o que restou de uma cidade que em tempos foi atingida por uma praga de insectos e, de uma forma ou de outra, perdeu o rasto humano sem jamais o recuperar. Durante a tarde, papando calçada romana à procura das rotas universitárias do Chirola, o mais frequente foi estarmos a sós com a cidade. Aqui e ali lá aparecia um turista, mas era raro. Na prática, sem a azáfama da Universidade, Coimbra fechou para férias.
É importante referir que me desorientei quando chegámos à Alta de Coimbra: pelo ar ressoava a 'Guilty', um cafuné em forma de canção gravado pelo bom do Al Bowly em 1931 e que integra a banda sonora do Fabuloso Destino de Amélie, do Yann Tiersen. Apercebi-me pouco depois que era esse disco que alguém ouvia, algures, puxando pelas colunas tanto quanto possível. Gritei várias vezes, "GANDA SOM!", mas fui ignorado. Adiante, pensei, ao reparar que o Chirola já irrompia pelo Pintos a pedir dois traçadinhos - vinho branco com gasosa. O restante do grupo juntou-se de seguida e em menos de nada o Pintos já se tornava o espaço mais animado da cidade, Estádio Cidade de Coimbra À parte. Sentados no interior do café estavam dois clientes; cá fora, com o rabo na calçada romana, um casal de espanhóis. Um amigo do Chirola não pôde deixar de reparar que a espanhola não trazia cuecas. Há 35 anos que o senhor Pinto abriu a porta do seu pequeno café-bunker, mas naquela tarde fazia o seu regresso ao balcão depois de recuperar de uma perna partida. Caminhava com dificuldade, seis meses depois do acidente. Momentos difíceis, para quem já é octogenário. Tirámos fotos e trocámos aquele tipo de impressões que parecem urgentes no momento mas o tempo torna perfeitamente dispensáveis. Já o Chirola apontou amigos mútuos que ocupavam fotografias emolduradas na parede de uma sala que tresandava a abandono. O Chirola sentiu-se em casa e venceu-me nos traçadinhos.
Aproximava-se a hora do jogo e ainda tínhamos de ir buscar os bilhetes às mãos de quem os pagou, já nas imediações do estádio, mas vimo-nos forçados a fazer uma derradeira paragem: na casa de quem tinha passado a banda sonora do Fabuloso Destino de Amélie. É que agora a cena era o Desintegration dos The Cure. Quer dizer, não há coração que aguente. Ao perceber a minha inquietação, o Chirola disse que a coisa a fazer era tocarmos à porta. Desconfiava que se tratava de uma república, e desse modo poderia eu conhecer uma a sério. O Chirola aviou a porta com os nós dos dedos e logo apareceu um puto com cara de pouco amigos e que rapidamente desapareceu para trás de um portátil. De seguida surgiu uma miúda descalça, apenas vestida com uma t-shirt branca que lhe ficava como fica nas garotas que vestem as t-shirts dos namorados.
Avisou-nos que estavam em limpezas, coisa que teríamos percebido de imediato, mesmo que ela não o dissesse. A casa era ampla, repleta de quartos carregados de coisas, e cada um destes quartos aproximava-se a passos largos de um curral se nada fosse feito por eles ao nível de balde, esfregona e caixote do lixo. Pelos corredores multiplicavam-se mensagens contra as praxes e o poder. "Praxismo é fascismo", li. Também vi uma citação da Simone de Beauvoir, mas não a fixei. A garota chamava-se Raquel e era açoriana, São Miguel. Disse-nos que estudava Geografia, o que achei romântico. Não percebia se tinha passado do segundo ano para o terceiro ou do segundo para o primeiro. Despedimo-nos com afecto e, eu, pessoalmente, com admiração - não é qualquer um que abre a porta a estranhos adornados com adereços de clubes de futebol que falam alto. Ou se calhar até é e eu devia era ter tirado o curso noutro lado.
Estádio. Bilhetes. Sporting.
O estádio era quase por inteiro nosso, o que não surpreende: onde quer que jogue, o Sporting rouba a cena, nem que seja em decibéis. O que chegou a meter dó foi a falta de comparência dos adeptos da Académica, a quem tinha em boa conta. Tive pena do speaker que, a dada altura, deixou de gritar, "BRIOOOOSA!", de tanto levar com "SPOOOOORTING!"
O jogo foi um descanso. Mudou aos dois, terminou aos quatro. Sob o olhar indecifrável do Jardim mais discreto da Madeira, a rapaziada joga e vence com alegria. Parece fácil, mas dá trabalho. O regresso foi ao som do Abbey Road enquanto a mocinha do Chirola dormia no banco de trás. Não cheguei a parar numa área de serviço para beber água, apesar da sede de cão, não fosse ela acordar. Sou um moço bem formado.
É importante referir que me desorientei quando chegámos à Alta de Coimbra: pelo ar ressoava a 'Guilty', um cafuné em forma de canção gravado pelo bom do Al Bowly em 1931 e que integra a banda sonora do Fabuloso Destino de Amélie, do Yann Tiersen. Apercebi-me pouco depois que era esse disco que alguém ouvia, algures, puxando pelas colunas tanto quanto possível. Gritei várias vezes, "GANDA SOM!", mas fui ignorado. Adiante, pensei, ao reparar que o Chirola já irrompia pelo Pintos a pedir dois traçadinhos - vinho branco com gasosa. O restante do grupo juntou-se de seguida e em menos de nada o Pintos já se tornava o espaço mais animado da cidade, Estádio Cidade de Coimbra À parte. Sentados no interior do café estavam dois clientes; cá fora, com o rabo na calçada romana, um casal de espanhóis. Um amigo do Chirola não pôde deixar de reparar que a espanhola não trazia cuecas. Há 35 anos que o senhor Pinto abriu a porta do seu pequeno café-bunker, mas naquela tarde fazia o seu regresso ao balcão depois de recuperar de uma perna partida. Caminhava com dificuldade, seis meses depois do acidente. Momentos difíceis, para quem já é octogenário. Tirámos fotos e trocámos aquele tipo de impressões que parecem urgentes no momento mas o tempo torna perfeitamente dispensáveis. Já o Chirola apontou amigos mútuos que ocupavam fotografias emolduradas na parede de uma sala que tresandava a abandono. O Chirola sentiu-se em casa e venceu-me nos traçadinhos.
Aproximava-se a hora do jogo e ainda tínhamos de ir buscar os bilhetes às mãos de quem os pagou, já nas imediações do estádio, mas vimo-nos forçados a fazer uma derradeira paragem: na casa de quem tinha passado a banda sonora do Fabuloso Destino de Amélie. É que agora a cena era o Desintegration dos The Cure. Quer dizer, não há coração que aguente. Ao perceber a minha inquietação, o Chirola disse que a coisa a fazer era tocarmos à porta. Desconfiava que se tratava de uma república, e desse modo poderia eu conhecer uma a sério. O Chirola aviou a porta com os nós dos dedos e logo apareceu um puto com cara de pouco amigos e que rapidamente desapareceu para trás de um portátil. De seguida surgiu uma miúda descalça, apenas vestida com uma t-shirt branca que lhe ficava como fica nas garotas que vestem as t-shirts dos namorados.
Avisou-nos que estavam em limpezas, coisa que teríamos percebido de imediato, mesmo que ela não o dissesse. A casa era ampla, repleta de quartos carregados de coisas, e cada um destes quartos aproximava-se a passos largos de um curral se nada fosse feito por eles ao nível de balde, esfregona e caixote do lixo. Pelos corredores multiplicavam-se mensagens contra as praxes e o poder. "Praxismo é fascismo", li. Também vi uma citação da Simone de Beauvoir, mas não a fixei. A garota chamava-se Raquel e era açoriana, São Miguel. Disse-nos que estudava Geografia, o que achei romântico. Não percebia se tinha passado do segundo ano para o terceiro ou do segundo para o primeiro. Despedimo-nos com afecto e, eu, pessoalmente, com admiração - não é qualquer um que abre a porta a estranhos adornados com adereços de clubes de futebol que falam alto. Ou se calhar até é e eu devia era ter tirado o curso noutro lado.
Estádio. Bilhetes. Sporting.
O estádio era quase por inteiro nosso, o que não surpreende: onde quer que jogue, o Sporting rouba a cena, nem que seja em decibéis. O que chegou a meter dó foi a falta de comparência dos adeptos da Académica, a quem tinha em boa conta. Tive pena do speaker que, a dada altura, deixou de gritar, "BRIOOOOSA!", de tanto levar com "SPOOOOORTING!"
O jogo foi um descanso. Mudou aos dois, terminou aos quatro. Sob o olhar indecifrável do Jardim mais discreto da Madeira, a rapaziada joga e vence com alegria. Parece fácil, mas dá trabalho. O regresso foi ao som do Abbey Road enquanto a mocinha do Chirola dormia no banco de trás. Não cheguei a parar numa área de serviço para beber água, apesar da sede de cão, não fosse ela acordar. Sou um moço bem formado.