domingo, 25 de agosto de 2013

Académica 0-4 Sporting: só perdi nos traçadinhos

Sr. Pinto: a fazer estudantes levar os dedos à goela desde 1978

Já a digerir o leitão do nosso almoço, porco novo ao qual, no entender da mocinha do meu amigo Ricardo Chirola Saleiro, "faltava febra", vagueámos pela alta de Coimbra à procura do Pintos, um café histórico local. Há dez anos que o Chirola não se permitia visitar Coimbra, cidade onde se fez licenciado, e frágil vai aquela memória no que toca a lembrar-se dos caminhos e cantos onde foi enchendo a cara ao longo do curso. Lá demos com aquilo, fruto da boa vontade de duas senhoras que, sentadas à sombra dos edifícios altos que pontuam a paisagem, falavam de forma retraída após serem por nós abordadas - "olá, onde fica o Pintos?". Na verdade, pareciam verbalizar apenas metade daquilo que pensavam. Mais tarde acabariam por declarar que, ao contrario da maioria do nosso grupo de cinco, não eram do Sporting.

Coimbra parecia o que restou de uma cidade que em tempos foi atingida por uma praga de insectos e, de uma forma ou de outra, perdeu o rasto humano sem jamais o recuperar. Durante a tarde, papando calçada romana à procura das rotas universitárias do Chirola, o mais frequente foi estarmos a sós com a cidade. Aqui e ali lá aparecia um turista, mas era raro. Na prática, sem a azáfama da Universidade, Coimbra fechou para férias.

É importante referir que me desorientei quando chegámos à Alta de Coimbra: pelo ar ressoava a 'Guilty', um cafuné em forma de canção gravado pelo bom do Al Bowly em 1931 e que integra a banda sonora do Fabuloso Destino de Amélie, do Yann Tiersen. Apercebi-me pouco depois que era esse disco que alguém ouvia, algures, puxando pelas colunas tanto quanto possível. Gritei várias vezes, "GANDA SOM!", mas fui ignorado. Adiante, pensei, ao reparar que o Chirola já irrompia pelo Pintos a pedir dois traçadinhos - vinho branco com gasosa. O restante do grupo juntou-se de seguida e em menos de nada o Pintos já se tornava o espaço mais animado da cidade, Estádio Cidade de Coimbra À parte. Sentados no interior do café estavam dois clientes; cá fora, com o rabo na calçada romana, um casal de espanhóis. Um amigo do Chirola não pôde deixar de reparar que a espanhola não trazia cuecas. Há 35 anos que o senhor Pinto abriu a porta do seu pequeno café-bunker, mas naquela tarde fazia o seu regresso ao balcão depois de recuperar de uma perna partida. Caminhava com dificuldade, seis meses depois do acidente. Momentos difíceis, para quem já é octogenário. Tirámos fotos e trocámos aquele tipo de impressões que parecem urgentes no momento mas o tempo torna perfeitamente dispensáveis. Já o Chirola apontou amigos mútuos que ocupavam fotografias emolduradas na parede de uma sala que tresandava a abandono. O Chirola sentiu-se em casa e venceu-me nos traçadinhos.

Aproximava-se a hora do jogo e ainda tínhamos de ir buscar os bilhetes às mãos de quem os pagou, já nas imediações do estádio, mas vimo-nos forçados a fazer uma derradeira paragem: na casa de quem tinha passado a banda sonora do Fabuloso Destino de Amélie. É que agora a cena era o Desintegration dos The Cure. Quer dizer, não há coração que aguente. Ao perceber a minha inquietação, o Chirola disse que a coisa a fazer era tocarmos à porta. Desconfiava que se tratava de uma república, e desse modo poderia eu conhecer uma a sério. O Chirola aviou a porta com os nós dos dedos e logo apareceu um puto com cara de pouco amigos e que rapidamente desapareceu para trás de um portátil. De seguida surgiu uma miúda descalça, apenas vestida com uma t-shirt branca que lhe ficava como fica nas garotas que vestem as t-shirts dos namorados.

Avisou-nos que estavam em limpezas, coisa que teríamos percebido de imediato, mesmo que ela não o dissesse. A casa era ampla, repleta de quartos carregados de coisas, e cada um destes quartos aproximava-se a passos largos de um curral se nada fosse feito por eles ao nível de balde, esfregona e caixote do lixo. Pelos corredores multiplicavam-se mensagens contra as praxes e o poder. "Praxismo é fascismo", li. Também vi uma citação da Simone de Beauvoir, mas não a fixei. A garota chamava-se Raquel e era açoriana, São Miguel. Disse-nos que estudava Geografia, o que achei romântico. Não percebia se tinha passado do segundo ano para o terceiro ou do segundo para o primeiro. Despedimo-nos com afecto e, eu, pessoalmente, com admiração - não é qualquer um que abre a porta a estranhos adornados com adereços de clubes de futebol que falam alto. Ou se calhar até é e eu devia era ter tirado o curso noutro lado.

Estádio. Bilhetes. Sporting.

O estádio era quase por inteiro nosso, o que não surpreende: onde quer que jogue, o Sporting rouba a cena, nem que seja em decibéis. O que chegou a meter dó foi a falta de comparência dos adeptos da Académica, a quem tinha em boa conta. Tive pena do speaker que, a dada altura, deixou de gritar, "BRIOOOOSA!", de tanto levar com "SPOOOOORTING!"

O jogo foi um descanso. Mudou aos dois, terminou aos quatro. Sob o olhar indecifrável do Jardim mais discreto da Madeira, a rapaziada joga e vence com alegria. Parece fácil, mas dá trabalho. O regresso foi ao som do Abbey Road enquanto a mocinha do Chirola dormia no banco de trás. Não cheguei a parar numa área de serviço para beber água, apesar da sede de cão, não fosse ela acordar. Sou um moço bem formado.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Sporting 5-1 Arouca: quotas, pinos e poesia


O novo espaço de atendimento ao cliente do Sporting tem o charme de uma lavandaria romena no tempo do Ceausescu - não que alguma vez tenha visto uma, filmes no King à parte. Calma com os cortes, pá. Não era suposto lá estar a meia hora de começar o nosso primeiro jogo do campeonato, mas como sou parvo esqueci-me de pagar as quotas e/ou memorizar os dados para o pagamento via multibanco. Cinco funcionários atendiam centenas, malta como eu, que se esquece de se lembrar de pagar o que deve. 

Esperei meia hora e o número da senha continuava o mesmo, o 51, longe de avançar para o 78, o meu. O jogo que me fez antecipar num dia o regresso das férias começava dentro de cinco minutos. "MERDA". 

Lembrei-me de ligar para o meu irmão: "Joe!, o que tens a fazer é correr para um computador, entrar no meu gmail, procurar os mails do Sporting, entrar no mais recente, sacar os dados para o último pagamento de quotas e enviar-mos por SMS. Já." O meu irmão achou aquilo tudo muito confuso, mas lá me fez a vontade - é de se dizer que por aquela altura eu batia o calcanhar direito de forma insistente, gesticulava ferozmente e maldizia o calor,  os contratempos, o esquecimento e o destino.

De seguida, abri caminho por entre a multidão que se atrasou para o jogo e suava nas filas sem fim e fui de encontro ao multibanco mais próximo. Chegaram-me os dados ao telemóvel, cortesia do meu irmão. Inseri-os. Deu erro. Não me ocorreu, naquele momento, duvidar daqueles dados, na certeza porém de que o montante ali disposto era 48 euros e a quota mensal apenas 12. Irmão é irmão. Certo é que não conseguia fazer o pagamento, por muito que insistisse, de modo que meti a viola no saco e fui para a zona da restauração do Alvaláxia ver a primeira parte numa televisãozinha sem som, acompanhado de mais que muitos sportinguistas que tinham desistido de esperar ao sol por um bilhete, nas filas.

Vi o Arouca meter o primeiro, sem surpresa - segundos antes um antigo ao meu lado tinha-o comunicado para quem pudesse ouvir o que ele próprio já ouvira no rádio. Um dos grandes flagelos da sociedade, e sem conserto, mas ao mesmo tempo algo ternurento, isto dos antigos insistirem em ouvir os relatos via rádio nas casas que mostram os jogos na TV. É como recusar a abandonar um grande amor.

Respondeu à altura o centralão Maurício, que não está ali para brincadeiras: deu uma marrada na redonda e pim!, 1-1. Não festejei por aí além: o tal antigo ao meu lado já anunciara o empate. Aproximava-se o intervalo e regressei à lavandaria romena, onde alguém gritou "golo!". Por exclusão de partes, teria de ser do Sporting. "Montero!", confirmou o meu irmão via SMS.

A lavandaria romena continuava mais composta que muitos estádios de futebol, mas o atendimento acelerou, como que por milagre. Lá me chamaram. A primeira coisa que fiz foi reclamar com o funcionário do balcão 1. "Não consegui pagar a quota e por causa disso perdi a primeira parte!", disse-lhe, mostrando o telemóvel no qual jaziam os dados na SMS que o meu irmão enviara. Mais calmo que o Putin perante um urso polar de jejum há uma semana, o funcionário concordou comigo, notando, contudo, que a quota mensal é de 12 euros, não de 48, o que poderia justificar o erro. Engoli em seco, ri-me - o riso nasce frequentemente do desconforto -, voltei a meter a viola no saco, paguei e corri para a maior Curva de Portugal, onde expliquei ao meu camarada Ricardo Chirola o motivo de chegar ao intervalo quando tinha vindo de propósito de Portimão para ver a nossa estreia no campeonato.

A bola voltou a saltar e celebrámos mais um, dois, três golinhos. No 5-1, o Montero transformou um defesa do Arouca num pino. Quanta pinta. O Sporting tem um ponta de seta com pés de maestro. Foi mais ou menos por aí que me lembrei dos versos que me chegaram aos ouvidos na sexta-feira, por um médico amigo, e que pertencem ao Freitas, um poeta da Guarda que estudou em Lisboa nos anos 70.

"Não sei porque sou leão,
Motivo deve haver, 
E talvez alguma pista.

Mas estou muito agradecido,
A este destino atrevido, 
Que me fez sportinguista."