terça-feira, 29 de abril de 2008

O Preto




- Era o paraíso. Tínhamos o cine-esplanada “Flamingo”, com cogumelos e um jardim cheio de flores onde passeávamos nos intervalos dos filmes. Pagávamos uma avença mensal e íamos ao cinema todas as noites, das 21h às 23h30. E a praia, era mergulhos na hora de almoço e depois voltávamos para o trabalho sabendo que, ao final do dia, mar. Há qualquer coisa em quem nasceu lá, ouves o mesmo do pessoal que fala na televisão. Todos nos invejam, a nossa alegria. Lá não havia repressão, nem PIDE. Foi lá que saiu à rua a primeira mini-saia. Todos querem saber como foi, mas só quem lá viveu pode falar. Há também quem regresse, mas aquela terra já não é minha e sim dos pretos. Enxotaram-nos de lá, fugimos da nossa terra com a comida ao forno e tanta roupa quanto a que levámos no corpo.
- Esse é um capítulo de um livro grande. As colónias holandesas, francesas… a afirmação dos nacionalismos depois das guerras. O desmantelamento dos impérios. O século XX. A História.
- Não sei dos outros. Nós tínhamos cinema e a praia, as farras e o calor. Havia trabalho. Os pretos não, que são malandros e não gostam de trabalhar. O preto recebe o dinheiro e gasta-o ao sábado nas bebedeiras.
- A raça negra é menor face à branca?
- Não é isso que estou a dizer. Mas hoje as barbas do preto velho, sentado numa cadeira à porta de casa, contam ao preto novo as saudades que sentem dos tempos em que lá estávamos. O preto não é formado. No nosso tempo nem mosquitos havia.
- A classe média costuma usufruir da água potável como um recurso não luxuoso.
- Eu vivi lá, não é como tu que só sabes o que vem nos livros, onde só escrevem mentiras. Não percebes.
- Há cada privilégio.

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