Herbie Hancock
Loulé: menos estrelas que vento e a rádio, horas antes, denunciava chuva no Porto. Junto ao Monumento Duarte Pacheco, bem no centro da cidade, cerca de 1000 cadeiras aquecidas por outros tantos traseiros sedentos de uma jam session à antiguinha. Faz sentido atirar a âncora lá para trás: prestes a cumprimentar o Algarve com a simpatia que um jantar bem regado e 68 sábios anos podem trazer estava Herbie Hancock, antigo membro do famoso quinteto de Miles Davis que há muito viaja com os seus próprios músicos pelos ritmos do jazz de fusão.
Foi já bem atrasado que Herbie entrou em placo. Sorridente e de gestos confusos, de pronto apresentou o seu quinteto que ali iria abrir o Allgarve Jazz 08 (no dia anterior Lucky Peterson transpirou blues em Alvor como, aliás, só poderia fazê-lo): Lionel Loueke na guitarra eléctrica – tímido músico do Benim que fizera a abertura do concerto num registo de raízes inconvenientemente anestesiantes, salvando-se o mérito de ter pasmado o público com a incrível capacidade que demonstrou em emitir sons com a boca -, o igualmente ex-músico de Miles Davis, Dave Holland, no baixo eléctrico (não o tocava há 18 anos, sublinhou Herbie) e contrabaixo acústico, Vinnie Colaiuta na bateria, Chris Potter no saxofone e as vocalistas Amy Keys e Sonya Kitchell.
Esta última, precisamente: pele de cal e 19 anos de uma garganta soul negra, Kitchell foi a primeira grande protagonista da noite ao fazer com mestria as vezes da delicodoce Corinne Bailey Rae em “River”, single que dá nome ao disco-grammy 2008 de Herbie Hancock – “River: the Joni Letters” -, o segundo albúm de jazz galardoado na história cinquentenária das estatuetas norte-americanas, dedicado à canadiana Joni Mitchell. Rendido, um senhor de cabelo grisalho levanta os seus aproximadamente 2,10 metros na plateia à terceira malha, cantada pela voz de colo de Amy Keys. Mãos atiradas ao alto, gestos em ritmo aleatório, sozinho. É alemão e vive há alguns anos na serra do Caldeirão, onde se dedica a fazer jardins e fumar charros com alguns compatriotas, também eles estendidos pela serra algarvia vagarosamente em busca do tempo perdido. À quinta malha, respeito: Herbie canta os seus fantasmas. Percebe-se a formação clássica. O piano é cavernoso e afiado.
Mas o concerto parecia estar a afastar-se das pessoas. Ou elas dele. Alguém se lembra de cheirar a Algarve, sem problemas quanto ao prefixo. Entre piano e sintetizador – formação e obsessão, respectivamente -, o público impacienta-se com os números ostensivos do lendário músico, constantemente inclinado a divertir-se com um sampler sem conseguir entusiasmar um mosquito tonto que fosse com o dito experimentalismo. Até final salvou-se um solo de contrabaixo memorável de Dave Holland e o conceito colado a um concerto em U, onde início e fim acomodam-se mais facilmente numa memória que tende a esquecer o vale de experimentalismo tão eclético quanto postiço onde Herbie parecia querer afundar a noite.
Foi já com um intenso cheiro a maresia espalhado pela cidade que o senhor alemão, voltando a erguer-se junto aos céus, tirou a t-shirt. A insanidade era tanto maior quanto a lotação do recinto na recta final do concerto parecia-se cada vez menos com a que o iniciou. E a temperatura da noite algarvia, igualmente. Bem antes, sublinhe-se, de o-não-demasiadamente-exigido e único encore finalizar as hostes pelos caminhos apaixonantes do sempre funky “Chameleon”, metáfora síntese do senhor Hancock - um artista diferente. Daqueles que possuem um certo carisma que não sabemos definir, um génio que a si mesmo se ultrapassa e nos faz admirá-lo quando o empenho por ele investido parece abraçar a distância. Um respeito recalcado, por desconhecidos motivos empurrado para onde podemos confundi-lo com o pó das coisas. Talvez seja o sorriso de garoto de Hancock, aquele com o qual apareceu atrasado em palco; próprio de uma sumidade viva que fez do jazz um género sem limites, ou simplesmente de quem tratou muito bem de si ao jantar.
1 comentário:
Em Oeiras esteve frio e o senhor deixou escapar o concerto entre dois solos quebrados, para oferecer no encore de dois temas o que deveria ter dado a noite toda...
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