"The only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing but burn, burn, burn like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars." J. Kerouac
quarta-feira, 30 de julho de 2008
Já não vamos ao circo com JP Simões
Longe vai o tempo do bigode. Aqueles que outrora acompanhavam os exóticos projectos musicais de João Paulo Simões – Belle Chase Hotel e Quinteto Tati à cabeça -, em busca da grande farsa, podem abordar o concerto de amanhã na Zé dos Bois (ZDB), às 23h, por um de dois métodos: ignoram-no, ou juntam-se à manada e preparam-se para experimentar uma outra coisa: JP Simões, a solo, mais cáustico no seu eterno equilibrismo pelas traves da lusofonia e, decididamente, numa outra ve-lo-ci-da-de.
Antes perseguia-se um moderníssimo fantoche de cabaré - baton e bigode, traje feminino na madrugada do Técnico -, hoje contemplam-se as diabrices linguísticas do homem que refinou por detrás desse mesmo fantoche, filho bastardo de uma geração hedonista que tropeçou em si mesma, e a cantar caíu. Não que fosse uma urgência - "Exílio", dos Quintento Tati (2004), é delicioso -, mas a mensagem do músico conimbricense aprumou-se: aos 38 anos, escreve com autoridade sobre uma colheita da qual ele próprio brotou, uma Coimbra a olhar para os lados, esvaziada de sentido, arrastando-se pelo experimentalismo dos anos 80.
“A minha geração já se calou”, avisa JP Simões, na canção que dá título ao seu disco de estreia a solo, “1970”, ano em que o próprio nasceu e sabrina sobre a qual o concerto de amanhã rodopiará; espartilhado entre a geração “dos grandes paizinhos do céu”, e o borbulhar do egocentrismo convicto, JP é metade de tudo, metade de nada.
Noutros tempos, entraríamos na ZDB à procura de uma evocação colectiva do esdrúxulo, que é simultaneamente detalhe e, enfim, o essencial. Mas como já não há bigode, e muito menos traje de cabaré para perseguir, o melhor é mesmo pedir o nosso copo e aproveitarmos a boleia do novo JP: alguém com a perfeita dicção, que canta "os mesmos dilemas, mais velhos", e estatelou-se “docemente contra o céu”.
terça-feira, 15 de julho de 2008
.. e Nova Iorque não foi o centro do mundo
10 de Julho
Era pelo menos cruel o cartaz deste festival. Meses de comoção antecipada. Quem, de alguma forma, soube (ou quis) desacelará-la sofreu um pouco menos quando percebeu que vários concertos teriam forçosamente de se sobrepôr. Ainda que o bilhete estivesse comprado há já dois intermináveis meses, foi já perto do grande dia 10 de Julho que essa percepção verdadeiramente chegou. Talvez se compare o momento deste tipo de escolha, entre duas necessidades primárias, com a expressão culpabilizante do náufrago Matt Berninger, voz dos fabulosos The National, quando agarra o microfone com as duas mãos como se de uma bóia de salvação se tratasse. À imagem de tantas outras bandas a quem devemos mais do que nos é possível explicar, segui outro caminho – o dos MGMT.
Se dermos alguma importância ao facto de ambas serem de Brooklin, talvez o processo acima referido doa menos. Não foram as únicas. Lisboa foi Nova Iorque. Nota: pode ser apenas engano de ego opinando sobre ego, mas em muito este timbre de escrita poder-se-á parecer com o tratado de paz que é a voz de Ben Harper. Acompanhado dos Innocent Criminals, o músico californiano fechou com um concerto de alcance panorâmico – assim se sentiu do sofá - o que foi um festival sem raças, idades, etnias ou nacionalidades. Tudo era mesmo de todos. Algures na tenda Metro Stage resistia MSTRKRFT e a sua bíblica tarefa de abanar esqueletos já com vista para um certamente grandioso 2009. Consta que a superou com a esperada distinção (que bom é ter a possibilidade de não pedir menos do que o melhor num festival de música).
Será nesse registo que a organização - este ano assegurou a presença, a título de amostra, dos novatos Vampire Weekend e MGMT, dos libertinos Gogol Bordello e The Gossip, dos agora mais calma e, aliás, corrosivamente lendários Bob Dylan (cuja voz cada vez se parece mais com a portuguesa da personagem Cell, respeitante à série animada Dragon Ball) e Neil Young, e de um regresso no domínio do mito para os Rage Against the Machine, oito longos anos após a prematura separação da banda californiana -, terá de trabalhar.
Tamanho brilho, diga-se, terá diminuído a possivel desilusão que muitos terão sentido perante as ausências forçadas dos "Cancelei de Ser Sexy" e Nouvelle Vague. Dada a desproporção verificada entre tanta qualidade e o pouco tempo que houve para dispersá-la por dias e palcos, esse episódio terá provavelmente facilitado a vida a muita gente. Particularmente aos que se preparavam para carregar sozinhos um pesado fardo: escolher uma banda de que se gosta em detrimento de outra que se adora, podendo a ordem destas inverter-se sem problemas de maior. E todos nós sabemos o alívio que fugir disto nos pode trazer.
Vampire Weekend
Ao vivo e a pó – o chão da tenda Metro On Stage era metade gravilha, metade tapete -, os meninos-com-aspecto-de-quem-vai-estudar-quando-chegar-a-casa-porque-têm-frequência-para-a-semana-que-vem não desiludiram quem deles faz a bandeira do novíssimo fervilhar musical de Brooklin (a par de Santogold, Yeasayer e dos MGMT, que os substituiriam mais tarde do que o previsto) apresentaram-se no Alive! 08 como a nova banda de estimação da geração myspace. A missão, adivinharam, passava por massificar o produto Vampire Weekend no cosmopolitismo inegável de Lisboa, que a recebeu com o nervosismo e ânsia próprios de uma primeira vez com alguém que queremos.
As cores contudo, poderiam ser outras. Não só o imenso e citado pó que era chão atrapalhou o “escrever história” numa tenda com capacidade para aproximadamente 6000 pessoas, como o concerto tarde-dentro soou a erro de casting na medida do espaço escolhido.
Sugestão: tivesse a organização colocado os rapazes a tocar na parte de trás da tenda Metro On Stage - qualquer coisa como Stage Metro behind the Tent - onde o sol das 19h não pudesse agredir bárbaramente a visão do público, juntado uma tenda de caipirinhas às de hamburgueres e da Sagres, e talvez aqueles (mais de) 6000 se lembrassem de temas como “Bryn” ou “Walcott” daqui a dois pares de décadas, quando tivessem de pôr a dormir algum neto que troque a obediência por uma história divertida. Mas já se sabe como é isto do complicador.
O punk-pop dos Vampire Weekend - banda de meninos que não percebem o fascínio por uma cerveja gelada num dia de esturrico colectivo, sobretudo quando podem beber um copo de leite fresco -, que é África no registo mais esbranquiçado de David Byrne ou Simon & Garfunkel, acabou por satisfazer sem deslumbrar; a mim, particularmente, que esperava por um número que nunca chegou (a improvável kisombada que abriu o concerto, "Mansaard Roof", - que perdi -, terá sido ímpar no contacto com o público). Ainda assim, e ao contrário dos vindouros MGMT, tocaram dois temas novos, de modo que pouca gente terá olhado para o relógio com demasiadas reticências.
Resulta que, em todo o caso, os vampirinhos ficaram aquém do estatuto que ergueram no veloz - e muitas vezes frágil - passa-palavra da internet. A qualidade, percebemos, não é problema. Já se sabe é como funciona isto de primeiras vezes.
MGMT
À imagem do que acontecera com a vampirada vizinha, na actuação anterior, também os MGMT tinham pouco para mostrar. Pior: o anúncio de que os brasileiros "Cancelei de Ser Sexy" não tinham viajado para Lisboa dava-lhes a ingrata possibilidade de estender por mais algumas dezenas de minutos o seu concerto. E tudo iria pelo melhor, terá pensado o duo de rapazes que forma a banda, não fosse o seu repertório de originais esbarrar nas dez músicas que compõem "Oracular Spectacular" - disco de estreia.
Sem jogo de rins para números ensaiados em cima do joelho, os MGMT tocaram ainda menos tempo do que os Vampire Weekend. O público, cuja ansiedade pela cerca de meia hora de atraso da banda foi canalizada na convicta vaia com que brindou a chegada ao palco daquela, delirou. Afinal eram os The National que no palco principal – longe – amoleciam plasticina com um rock nublado e (quase) imperdível, viagem interior aos lugares menos explorados do "eu". A diversão era, pois, uma urgência.
Recuperando Zé Mário Branco, e uma certa fixação com o vocalista dos The National, “não pode haver razão para tanto sofrimento” quando Matt Berninger se aproxima de um microfone. Não fosse a tremenda qualidade dos músicos que formam a banda, aliada ao recuperar de um certo refrão orelhudo que deu razão de ser às grandes bandas de estádio dos anos 80 - e a aura de encantar serpentes, e a cirurgia lírica, e o negrume aconchegante, e que não desça mais o olhar nesta reflexão aquele que assentir ao que acima foi disposto -, e os nova-iorquinos estariam possivelmente condenados ao mais perfeito anonimato da garagem, recalcando a depressão própria de quem só se sente quando nos relembra as inquietações que já repisámos, convertendo-as a faixas de um disco (Boxer, 2007) que não se abandona. Haverá pouco músico por aí, é uma aposta segura, que transmita em palco de uma forma tão evidente a ideia de que precisa de um abraço como este senhor.
Ainda assim foram os hinos dos MGMT, “Electric Feel", “Weekend Mars” e, sobretudo, “Time to Pretend”, que desenharam os primeiros contornos de um festival notável, não tanto lembrado como mais um na conta dos inúmeros que se espalham pelo país em tempo de banhos e sol, mas pela comoção que gerou em quem o experienciou no passeio marítimo de Algés. A tal coisa estranhíssima de se assistir a um acontecimento histórico no local onde ele acontece, de percebê-lo à medida que os nossos sentidos assimilam a equação “génio + génio = isto vai ficar entre nós”. Também por isso, o concerto de MGMT chegou atrasado, foi intenso, e pareceu confrangedoramente curto.
Gogol Bordello
Numa entrevista realizada momentos antes de subirem ao palco em Sines, no Festival Músicas do Mundo do ano passado, o vocalista dos Gogol Bordello, Eugene Hütz, disse: “Nós conhecemos a nossa cultura (Eugene cresceu numa comunidade de ciganos ucranianos), mas a nossa ideia de cultura é ter a capacidade de perceber outra cultura. De outro modo serás apenas um idiota nacionalista”.
Se ele o diz, nós acreditamos. Na verdade, e depois da forma desenfreada como passou (saltou) por Paredes de Coura e Sines em 2007, e da festa que liderou no primeiro dia do Alive! 08, já acreditamos em tudo o que um membro dos Gogol Bordello disser. Principalmente aquele violinista com ar de corsário da Idade Média.
Bem, fazemo-lo em quase tudo, exceptuando talvez aquele prelúdio a “Start Wearing Purple”: “Ela não gosta de mim”, lamentava o vocalista-compositor-contrabandista, num "brasilês" admirável. Talvez confiemos mais na boa vontade das fãs do grupo norte-americano/ucraniano, particularmente de uma rapariga que se avistou num dos ecrãs empunhando um cartaz direccionado a Eugene. “Quero beijar o teu bigode sexy”, podia ler-se.
No mais, foram cerca de 90 minutos de um fervoroso carnaval protagonizado por aquela que deverá ser uma das bandas mais acarinhadas pelo púbico português, sábio papagaio de temas como o citado “Start Wearing Purple”, “Ultimate” e “Not a Crime”. A primeira grande festa do Alive! 08, treino de pré-época que deixou alguns entusiastas perfeitamente arruinados para acompanhar The Hives, logo de seguida. O regresso à tenda Metro Stage foi consensual. Além de alma, o grande grito de raiva contra a máquina, que chegaria após a actuação do quinteto sueco, precisava de pernas (e coluna, no meu caso).
Hercules and Love Affair
Como se esperava, o andrógino Antony Hegarty (vocalista dos Antony & the Johnsons e também destes Hercules and Love Affair - projecto do DJ nova iorquino Andy Butler) não apareceu, de modo que a sonoridade disco dos anos 70 e 80 da banda ficou secundada pela estranha imponência de Nomi: assim o é quando vemos subir (ou descer ou fintar, alguma coisa se passava ali) ao palco alguém que fitamos ser uma inacreditável mulher – elas também concordavam com esta ideia, que eu bem ouvi entre o público -, e depois tomamos conhecimento que essa mesma Nomi continua a ser uma ela, já tendo sido um ele: é um transexual.
Arrasadora à distância, ela (sim, hoje é uma ela pelo pouco que percebo disto) passou uma hora a arriscar venenosas danças com os seus quadris descartáveis. O público, já nem arrisco definir de que género, achava tudo aquilo bastante injusto. Bem a contrastar, diga-se, com a outra vocalista da banda - espécie de menino estagiário, cliente assíduo e sistemáticamente afastado das rondas iniciais de programas como os “Ídolos” e, afinal, a única menina nascida enquanto tal da banda. Kim Ann Foxman, toda ela andrógina, pois claro. Nem era a timidez. Cantava mesmo pouco.
Tal como o género, também o som que ouvimos dos Hercules and Love Affair é perfeitamente indeterminado. Vale que, durante o tempo em que estiveram em palco, ninguém parou entre o pó e o tapete, varrido que esteve aquele espaço por uma cirúrgica fusão de géneros dançáveis, qualquer coisa que nos é familiar numa era – hoje – que se define precisamente pelo conceito melting pot. Literalmente, no caso amoroso deste Hércules com voz de mãe.
Rage Against the Machine
Para alguns, o 10 de Julho deverá ter implodido na tenda Metro Stage, lotada com as bandas mais ligadas ao b.i da nova cena cool: o pop-tudo dos (tidos como) esquisitinhos. Mas por muito que estes, os novos esquisitinhos portugueses (e espanhóis, ingleses, norte-americanos e por aí fora), tivessem a pole-position diurna com as actuações de Vampire Weekend e MGMT, a noite tinha lugar marcado com a História para outros fãs, os de Rage Against the Machine (RATM).
Oito anos depois: muito tempo para quem cresceu a ouvir o sermão subversivo de Zach de la Rocha, com o virtuoso Tom Morello nas descargas eléctricas, Tim Commeford no baixo e Brad Wilk na bateria – estes três formaram os Audioslave em 2001, logo após a separação da banda, enquanto Zach perdeu-se em projectos a solo e parcerias que foi abandonando sucessivamente. De punho ao alto e bem cerrado, avistando a enorme cruz vermelha que alimenta a iconografia da banda, milhares de fieis devotaram-se ao quarteto californiano com a paixão de um soldado que regressa a casa após uma eterna missão militar.
Talvez tenha sido isso que aconteceu. Os míudos que os ouviam aos 18 anos têm agora 26. Já entraram no mundo sujo do trabalho. Possivelmente já descobriram "o que era aquilo do desemprego". Já perceberam o culto da papelada. A soberba do mesquinho. O passar por cima. O isto por aquilo.
Na quinta-feita ouviram-se as mesmas músicas compostas no outro milénio, mas as letras sofreram alguns ajustes. É o passado a instalar-se no presente, com o futuro inteiro pela frente: tal como há oito anos, os RATM alinharam a consicência de quem esteve no passeio marítimo de Algés, convertendo indecisos e não desiludindo os fieis (tantos).
Homenagear os camaradas com uma bandeira de Che Guevara estendida no palco, respirando entre hinos, mais tarde, para aclamar a obra do escritor português José Saramago, é perceber muito desse processo. E se um grande concerto pede comunhão total entre músicos e público, então os RATM deram uma prova bem cabal do quanto o seu rapcore está aí para o combate. Foram 40 004 aos saltos durante quase duas horas. Memorável.
O comboio é de todos
À saída, espanto: disponibilizados que estavam – assim nos rezou quem de direito – comboios para os melómanos do festival até às 04h, pouca gente terá chegado a saber que só haveria um. Às 04h. Um comboio e 40 000 pessoas. Naturalmente que houve quem tenha perdido os sentidos, uma vez no vapor das 04h. O resto dividiu-se entre estender-se na estação - até o amanhecer trazer consigo novíssimas carruagens -, ou voltar para casa a pé. Seguramente que uns e outros estarão presentes na próxima edição do melhor festival de música que o país conheceu este ano, até ver.
Não o seria se ninguém se tivesse luminosamente lembrado que um comboio era o bastante para engolir 40 000 pessoas. E que estas respirassem. Ao acordar já os tinhamos perdoado, e 2009 ao virar da curva. Já circulam nomes. Um tal D., com presença assegurada. David Bowie? O mais seguro é mesmo voltar lá para confirmar.
Créditos: a Rita Carmo é a maior.
terça-feira, 8 de julho de 2008
Isto é um camaleão
Herbie Hancock
Loulé: menos estrelas que vento e a rádio, horas antes, denunciava chuva no Porto. Junto ao Monumento Duarte Pacheco, bem no centro da cidade, cerca de 1000 cadeiras aquecidas por outros tantos traseiros sedentos de uma jam session à antiguinha. Faz sentido atirar a âncora lá para trás: prestes a cumprimentar o Algarve com a simpatia que um jantar bem regado e 68 sábios anos podem trazer estava Herbie Hancock, antigo membro do famoso quinteto de Miles Davis que há muito viaja com os seus próprios músicos pelos ritmos do jazz de fusão.
Foi já bem atrasado que Herbie entrou em placo. Sorridente e de gestos confusos, de pronto apresentou o seu quinteto que ali iria abrir o Allgarve Jazz 08 (no dia anterior Lucky Peterson transpirou blues em Alvor como, aliás, só poderia fazê-lo): Lionel Loueke na guitarra eléctrica – tímido músico do Benim que fizera a abertura do concerto num registo de raízes inconvenientemente anestesiantes, salvando-se o mérito de ter pasmado o público com a incrível capacidade que demonstrou em emitir sons com a boca -, o igualmente ex-músico de Miles Davis, Dave Holland, no baixo eléctrico (não o tocava há 18 anos, sublinhou Herbie) e contrabaixo acústico, Vinnie Colaiuta na bateria, Chris Potter no saxofone e as vocalistas Amy Keys e Sonya Kitchell.
Esta última, precisamente: pele de cal e 19 anos de uma garganta soul negra, Kitchell foi a primeira grande protagonista da noite ao fazer com mestria as vezes da delicodoce Corinne Bailey Rae em “River”, single que dá nome ao disco-grammy 2008 de Herbie Hancock – “River: the Joni Letters” -, o segundo albúm de jazz galardoado na história cinquentenária das estatuetas norte-americanas, dedicado à canadiana Joni Mitchell. Rendido, um senhor de cabelo grisalho levanta os seus aproximadamente 2,10 metros na plateia à terceira malha, cantada pela voz de colo de Amy Keys. Mãos atiradas ao alto, gestos em ritmo aleatório, sozinho. É alemão e vive há alguns anos na serra do Caldeirão, onde se dedica a fazer jardins e fumar charros com alguns compatriotas, também eles estendidos pela serra algarvia vagarosamente em busca do tempo perdido. À quinta malha, respeito: Herbie canta os seus fantasmas. Percebe-se a formação clássica. O piano é cavernoso e afiado.
Mas o concerto parecia estar a afastar-se das pessoas. Ou elas dele. Alguém se lembra de cheirar a Algarve, sem problemas quanto ao prefixo. Entre piano e sintetizador – formação e obsessão, respectivamente -, o público impacienta-se com os números ostensivos do lendário músico, constantemente inclinado a divertir-se com um sampler sem conseguir entusiasmar um mosquito tonto que fosse com o dito experimentalismo. Até final salvou-se um solo de contrabaixo memorável de Dave Holland e o conceito colado a um concerto em U, onde início e fim acomodam-se mais facilmente numa memória que tende a esquecer o vale de experimentalismo tão eclético quanto postiço onde Herbie parecia querer afundar a noite.
Foi já com um intenso cheiro a maresia espalhado pela cidade que o senhor alemão, voltando a erguer-se junto aos céus, tirou a t-shirt. A insanidade era tanto maior quanto a lotação do recinto na recta final do concerto parecia-se cada vez menos com a que o iniciou. E a temperatura da noite algarvia, igualmente. Bem antes, sublinhe-se, de o-não-demasiadamente-exigido e único encore finalizar as hostes pelos caminhos apaixonantes do sempre funky “Chameleon”, metáfora síntese do senhor Hancock - um artista diferente. Daqueles que possuem um certo carisma que não sabemos definir, um génio que a si mesmo se ultrapassa e nos faz admirá-lo quando o empenho por ele investido parece abraçar a distância. Um respeito recalcado, por desconhecidos motivos empurrado para onde podemos confundi-lo com o pó das coisas. Talvez seja o sorriso de garoto de Hancock, aquele com o qual apareceu atrasado em palco; próprio de uma sumidade viva que fez do jazz um género sem limites, ou simplesmente de quem tratou muito bem de si ao jantar.
Loulé: menos estrelas que vento e a rádio, horas antes, denunciava chuva no Porto. Junto ao Monumento Duarte Pacheco, bem no centro da cidade, cerca de 1000 cadeiras aquecidas por outros tantos traseiros sedentos de uma jam session à antiguinha. Faz sentido atirar a âncora lá para trás: prestes a cumprimentar o Algarve com a simpatia que um jantar bem regado e 68 sábios anos podem trazer estava Herbie Hancock, antigo membro do famoso quinteto de Miles Davis que há muito viaja com os seus próprios músicos pelos ritmos do jazz de fusão.
Foi já bem atrasado que Herbie entrou em placo. Sorridente e de gestos confusos, de pronto apresentou o seu quinteto que ali iria abrir o Allgarve Jazz 08 (no dia anterior Lucky Peterson transpirou blues em Alvor como, aliás, só poderia fazê-lo): Lionel Loueke na guitarra eléctrica – tímido músico do Benim que fizera a abertura do concerto num registo de raízes inconvenientemente anestesiantes, salvando-se o mérito de ter pasmado o público com a incrível capacidade que demonstrou em emitir sons com a boca -, o igualmente ex-músico de Miles Davis, Dave Holland, no baixo eléctrico (não o tocava há 18 anos, sublinhou Herbie) e contrabaixo acústico, Vinnie Colaiuta na bateria, Chris Potter no saxofone e as vocalistas Amy Keys e Sonya Kitchell.
Esta última, precisamente: pele de cal e 19 anos de uma garganta soul negra, Kitchell foi a primeira grande protagonista da noite ao fazer com mestria as vezes da delicodoce Corinne Bailey Rae em “River”, single que dá nome ao disco-grammy 2008 de Herbie Hancock – “River: the Joni Letters” -, o segundo albúm de jazz galardoado na história cinquentenária das estatuetas norte-americanas, dedicado à canadiana Joni Mitchell. Rendido, um senhor de cabelo grisalho levanta os seus aproximadamente 2,10 metros na plateia à terceira malha, cantada pela voz de colo de Amy Keys. Mãos atiradas ao alto, gestos em ritmo aleatório, sozinho. É alemão e vive há alguns anos na serra do Caldeirão, onde se dedica a fazer jardins e fumar charros com alguns compatriotas, também eles estendidos pela serra algarvia vagarosamente em busca do tempo perdido. À quinta malha, respeito: Herbie canta os seus fantasmas. Percebe-se a formação clássica. O piano é cavernoso e afiado.
Mas o concerto parecia estar a afastar-se das pessoas. Ou elas dele. Alguém se lembra de cheirar a Algarve, sem problemas quanto ao prefixo. Entre piano e sintetizador – formação e obsessão, respectivamente -, o público impacienta-se com os números ostensivos do lendário músico, constantemente inclinado a divertir-se com um sampler sem conseguir entusiasmar um mosquito tonto que fosse com o dito experimentalismo. Até final salvou-se um solo de contrabaixo memorável de Dave Holland e o conceito colado a um concerto em U, onde início e fim acomodam-se mais facilmente numa memória que tende a esquecer o vale de experimentalismo tão eclético quanto postiço onde Herbie parecia querer afundar a noite.
Foi já com um intenso cheiro a maresia espalhado pela cidade que o senhor alemão, voltando a erguer-se junto aos céus, tirou a t-shirt. A insanidade era tanto maior quanto a lotação do recinto na recta final do concerto parecia-se cada vez menos com a que o iniciou. E a temperatura da noite algarvia, igualmente. Bem antes, sublinhe-se, de o-não-demasiadamente-exigido e único encore finalizar as hostes pelos caminhos apaixonantes do sempre funky “Chameleon”, metáfora síntese do senhor Hancock - um artista diferente. Daqueles que possuem um certo carisma que não sabemos definir, um génio que a si mesmo se ultrapassa e nos faz admirá-lo quando o empenho por ele investido parece abraçar a distância. Um respeito recalcado, por desconhecidos motivos empurrado para onde podemos confundi-lo com o pó das coisas. Talvez seja o sorriso de garoto de Hancock, aquele com o qual apareceu atrasado em palco; próprio de uma sumidade viva que fez do jazz um género sem limites, ou simplesmente de quem tratou muito bem de si ao jantar.
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