quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Montenegro

A minha bisavó benzia a constipação, o pé torcido e o mau olhado. Ou quebranto, como se ouvia em Quatrim do Norte, onde morava com a minha avó e a minha mãe há tanto tempo como viveriam dois de mim. A localização da fronteira entre Quatrim do Norte e Quatrim do Sul gerava algum debate, na medida em que ninguém se tinha lembrado de a demarcar, mas a minha bisavó Tanta, nome que o meu irmão mais tarde lhe colocaria por ter dificuldades em pronunciar o que de baptismo lhe deram (Firmina), sempre soube que era mais cansativo voltar a casa vinda de qualquer outro sítio do que o contrário. Residia no cimo da rua. Por aí era Norte; em baixo, Sul.

A fama de curandeira chegava, dizia-se, até Olhão. Coleccionava outras virtudes, como o entendimento à distância das coisas e o apego à costura, faculdade que viria a ensinar com aprumo à minha avó Vivi, nome que lhe coloquei por ter dificuldades em pronunciar o que de baptismo lhe deram (Vitalina), mas foi a de livrar as pessoas dos mais variados infortúnios que fez o seu nome correr de boca em boca. Fazia uso de tais qualidades sobretudo a favor da família, mas não fechava a porta de casa a quem vinha de fora: várias foram as vezes em que amizades da terra foram recebidas na sua casa com bolinhos e chá, que saboreavam num silêncio reverente antes do processo que lhes levaria à cura. A minha bisavó Tanta aceitava tais visitas de bom gosto, e não o fazia a troco de dinheiro, mas era frequente ver o candidato à cura aparecer-lhe com um sorriso desesperado e uma garrafa de azeite. Naquele tempo não havia dinheiro, explicará qualquer pessoa que tenha passado a infância de rabo para o ar numa horta. Salvo seja.

Certo dia a minha mãe torceu o pé. As dores eram fortes e ela chorava no momento em que explicava à Tanta que se magoara ao descer de uma árvore. Atenta, esta deu-lhe bolinhos e chá e depois de ver o repasto em silêncio da bonita neta pediu que fosse para o quarto e se deitasse na cama de barriga para cima, como mulher em consulta de gravidez. Obediente, assim fez a Maluquinha, nome que coloquei à minha mãe porque sem dúvida o merece. Depois a Tanta fez-lhe aterrar um pequeno pedaço de pão no peito e benzeu-se com o sinal da cruz:

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

De pronto fez que passava uma agulha numa linha, como quem coze, e anunciou.

Eu cozo.

A Maluquinha acenou que sim, vendo que não, e respondeu: 

Carne quebrada, nervo torto, eu cozo pelo direito e a virgem pelo torto.

Nove vezes repetiu a ladaínha com o pé em cima de um pau de vassoura, movimentando-o para a frente, mas também para trás. Depois a Tanta untou-lhe o pé com toucinho quase estragado para no fim deitar fora o pedaço de pão e arrotar com vontade, de modo a melhor espantar as más energias. E que não estivesse eu com cara de fazer pouco, avisou-me a Vivi, suportando com a expressão séria da certeza a tese de que assim mesmo a mãe lhe curara a filha.

Estas e outras coisas me contou a Vivi no sábado, sentada ao meu lado num café em Montenegro, arredores de Faro, enquanto atacava metade de um croissant misto. Minutos antes, quando chegámos àquele povoado, fiz saber à Vivi que Montenegro era nome de país e perguntei-lhe se sabia onde ficava. Confiante, respondeu-me: “Sei, é na serra.”

1 comentário:

i disse...

como sempre, grande vivi!