segunda-feira, 21 de março de 2011

Inquietação

Vi um gato desesperar em redor de um pneu à procura da própria cauda quando deixei a boa gente que improvisara de amigos e fui procurá-la. Encontrei-a pouco depois, em sentido inverso, nas traseiras sem gente de um pavilhão, ao lado da escola secundária da vila. Quem por ali passasse, observando a principal parede erguida naquela parte da escola, podia ler a inscrição de boas-vindas em inglês técnico, “Welcam to the Well”. No rosto dela confirmei a expressão permanente de dúvida e curiosidade que na véspera me intrigara, quando nos conhecemos. Adivinhei-lhe o grande ponto de interrogação em estado de alerta vermelho na caixinha das ideias. Era alta. Pele bonita e muito branca, naquele dia rosada pela força do sol autoritário. Uma novidade no habitual rigor da serra. Da boca dela, trejeitos que exigiam atenção. O sorriso demorava a sair. Olhos cor de mel. Tinha o jeito de parecer o que acho que seria uma das mulheres que vive dentro do Chico. Não fiz muito por escondê-lo: duas horas depois de a conhecer, na mesa redonda dos jantares de etiqueta, reprovado pelos olhares mais indiscretos, já lhe tentava cantar ao ouvido “Quem te viu, Quem te vê” e “Com Açúcar, com Afeto”, desesperando por me lembrar da letra de ‘Atrás da Porta’. Lembrar-me-ia depois, com a amnésia adormecida pelo bom vinho.

Beijámo-nos à segunda hesitação, no primeiro passeio. Foi urgente. Uma aflição pouco comum. Deixou de haver pose faz-de-conta-que-é-turista nas ruas impecavelmente velhas, quase desertas, aqui e ali pontuadas pelos movimentos arrastados dos setentas, oitentas e noventas que ali esperam pelo que tem de ser. O relógio contra nós tiquetaqueava. Os gestos eram sôfregos. Dançámos desengonçadamente. O regresso foi longo. Cada esquina uma despedida. A lua tudo abençoaria horas depois, com o maior holofote em 18 anos. Guardei-lhe o olhar inquieto, quase assustado pela hipótese do adeus, e o cheiro de rosas frescas de mulher desejada. Mocinha bonita.

2 comentários:

João Barbosa disse...

onde é que já vi/vi/ouvi isto? ;-)

Anónimo disse...

Belos encontros por ai relatados dessa maneira. Soó um conselho, não esperes por uma nova lua cheia para voltares a ter essa experiencia com essa moça olhos de mel :)