segunda-feira, 11 de abril de 2011

Os apetites da senhora Dylan


Cafezinho?, perguntou o dono do café, pequeno e obrigatório ponto de passagem para gente apressada na rua Morais Soares, em Lisboa. O cliente acenou que sim. Fê-lo sem convicção ou contacto visual, pois o que naquele momento o distraía era a presença ruidosa da mulher que se sentava na mesa do fundo, junto à casa de banho, com cabelo de quem acabou de acordar, à Bob Dylan, mas ruivo de tinta.

“O meu marido tem tanto serviço, coitado, fica todo enchouriçado”, dizia num tom de discurso público, inventando plateia. O dono não lhe ligava coisa alguma e, debruçado sob o centro do balcão, já tentava explicar ao cliente, o do cafezinho, que o futebol era sem dúvida aquilo de que a nação portuguesa se podia orgulhar – isso e os folares transmontanos, de Chaves, “pesados, com enchidos”.

Notoriamente estrangeiro, com roupa de trabalho, o cliente do cafezinho assentia com o riso simpático da ignorância, neste caso simultaneamente ‘amarelo’, ao mesmo tempo que lhe saíam palavras avulsas com sotaque do leste europeu. Ainda não tocara no café.

- Almoço. Borrego. Tradição. Páscoa. Mal disposto.
- Entendo. Mas isso da tradição tem muito que se lhe diga, amigo... -, disse o dono, que de pronto apontou para a vitrina dos doces.
- Está a ver aquele bolo ali ao canto? É um folar do Algarve, sai doce do forno, e com ovos. A tradição também diz que só se deve fazer aquilo na semana santa, até domingo de Páscoa, mas nós andamos a vender bolos daqueles há semanas. É preciso viver, amigo.

A dona tinha menos talento do que o dono para se esquivar às investidas da senhora a quem por falta de imaginação tratarei por ‘senhora Dylan’, mas sempre que possível carregava em exigência na empregada que na copa confundia com salada aquilo que eram pedidos de batata frita no acompanhamento do bitoque, prato sem época na gastronomia portuguesa - é de todas. Quando passava mais de cinco minutos a ouvir a própria voz, a senhora Dylan calava-se e mexia a cadeira como se lançasse um foguete de sinalização em alto mar, uma vez à deriva. Alguém haveria de reparar que ela existia. Também tossia com frequência, frequentemente sem tosse.

Mas os argumentos começaram a escassear e trinta minutos depois entregou os pontos. Levantou-se. Assumia que a comunicação que ali mantinha era de sentido único – ou melhor, ia sem chegar e vinha sem querer. Ao ver a senhora Dylan arrastar-se rumo ao balcão, a dona abandonou a marcação cerrada à empregada das trocas de pedidos e chegou-se à máquina registadora.

- Paga um chá, certo?, perguntou a dona.
- Quanto é?
- Um euro.

Vagarosamente, a senhora Dylan tirou uma pequena bolsa de moedas da sua mala pele de leopardo e despejou tudo na mesa, semeando a vidraça de trocos modestos.

- Chega?
- Sobra.

Sorrindo, a senhora Dylan virou costas à dona e dirigiu-se no seu ritmo de bocejo até à vitrina dos doces. A dona chegou lá primeiro e abriu-a.

- O que vai ser?
- Apetecia-me comer ovos de chocolate. Ou amêndoas. Talvez coelhinhos de chocolate. Tem miniaturas dessas?
- Decida-se – retorquiu a dona.
- Amêndoas, então.
- Quais?
- Não sei.
- Quer as de chocolate?
- Dão-me azia.
- Mas... está bem. Quer um saco das de açúcar torrado, é isso?
- Levo dois: um para mim, de chocolate, e outro para oferecer, de açúcar – sentenciou.

Ao centro do balcão a conversa animava. Esquecendo-se do café, por esta altura já sem graça, o cliente compreendia, por indicação do dono, as características únicas do folar alentejano, “massudo, sem canela, com o aroma ditado por leite, natas ou derivados”. Entre perguntas sem resposta, a senhora Dylan pagou um chá, dois saquinhos de amêndoas e despediu-se – “adeus!”, mas, ao invés de ligar os movimentos corporais à fala, puxou de uma cadeira junto à porta e avisou que se iria sentar um bocado.

Acomodada, retomou o raciocínio sobre o marido, devidamente enchouriçado pelo intenso serviço. Uma menina de mochila às costas entrou e, triunfal, empoleirou-se em cima da arca frigorífica dos gelados, como quem descobre um tesouro milenar. A senhora Dylan sorriu, desta vez sem se fazer ouvir. Apoderou-se de uma revista e folheou-a, não se demorando em cada página mais do que o tempo de a virar. Devolveu a revista ao canto das revistas. Espreitou o pulso sem relógio e, redireccionando o olhar, perguntou pelas horas.

- Quatro da tarde -, ouviu.
- Agradecida. Está na minha hora, então.

Novamente de pé, a senhora Dylan viu a menina do gelado passar-lhe à frente e desaparecer em passo de corrida na louca azáfama da rua, de tesouro a derreter na mão. Inclinou-se e agarrou nos seus haveres. No braço esquerdo dois sacos cheios de roupa nova. No direito a mala leve. Estava descompensada. A mancar, aproximou-se da porta e soltou um “adeus” que apenas teve eco pela mesma boca, segundos depois, fora do tempo e conteúdo em que o eco ecoa. Virou-se para o balcão.

- Apetecia-me um folar.

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