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lady in red @ Éden |
A R. e eu inventámos o conceito de amantes de festivais. Acontece sem grande conversa e menos perguntas: ao reconhecimento da presença um do outro aproximamo-nos, sorridentes, e de uma troca de abraços apertados sai um encontro de lábios e braços à volta do pescoço ao som das nossas bandas favoritas. Ficamos ali em transe, com as mãos em busca do prazer fácil. Nada mais existe. Depois eventualmente iremos à procura dos respectivos grupos de amigos, com promessa de reencontro, mas perdemo-nos e acaba por ir cada um à sua vida, que esta tem dois dias. Em Paredes de Coura foram os de sexta e sábado.
Chegámos após cinco horas de viagem, com direito a paragem na Mealhada, que tem provavelmente a zona de restauração mais impessoal da história das zonas de restauração impessoais. Rolámos perto de 40 quilómetros com o carro na reserva até conseguirmos atestar, a seis quilómetros de Paredes, bem pertinho da fronteira com nuestros vecinos, já depois de um sul-americano com pinta de mouro festivaleiro ter forçado uma fila gigante à saída da A3 por ter o carro ali bloqueado. Aparentemente não conseguia pagar com o multibanco os - vi eu, que saí do meu carro para lhe perguntar “que pasa coño?” - mais de 30 euros que devia, provavelmente oriundo da lua.
Quando fui atestar reparei que o mesmo bicho sul-americano com pinta de mouro também estava ali naquela área de serviço, mas com outra missão: levar para o carro três ou quatro litros de coca-cola. Menino. E nessa altura eu nem fazia ideia de que no recinto iria encontrar um bar com bebidas brancas, algo que nunca vi nos outros festivais. Holy fuck, que bom.
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amanhã faz sol, vais ver |
Estacionei o carro na íngreme rampa que liga o recinto à rotunda principal, logo à entrada da localidade. Era uma zona que fazia comichão ao meu amigo P., sempre muito zeloso na relação causa-efeito do acto humano. Ao invés, o spot parecia muito bem ao casal de quarta idade que abordei na esperança de que me dissessem precisamente aquilo que viria a ouvir. O lugar era “óptimo”. Após o consentimento de quem mais sabe deixei-os retomar o caminho de mãos nas costas, na paz do senhor, e sentámo-nos na bagageira aberta a comer sandes mistas e a estrear a nossa belíssima garrafa de jameson que custou três contos ao P. Por essa altura percebia que estavam a terminar os Battles. Seguiam-se os Deerhunter. Deixámos a garrafa com menos de um terço por acabar e ala que se faz tarde. O Bradford Cox é uma figurinha. Enfiado à larga numa calça de bombazine verde-louro morto e num casaco laranja, com o cabelo à ace ventura em áfrica, o líder dos Deerhunter aproveitava cada intervalo entre canções para, de forma pausada, quase monossilábica, explicar até que ponto via Paredes de Coura como um local assombrado. E acrescentava: “I like it”. O momento alto foi a cavalgada épica no hino ‘Nothing Ever Happened’. Por alto contei uns 15 minutos de jam. Não é para todos.
Seguiram-se os Kings of Convenience no Éden, como apropriadamente os noruegueses apelidaram Coura durante e após o concerto no qual foram aclamados como nenhuma outra banda na edição'11, que tenha reparado. A razão é uma cena que neste caso lhes assiste.
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a minha foto ficou mais gira que a tua |
Tinhamos sido recebidos com um sorriso gigante pela Pª, de quem gosto muito. Esta era a minha primeira vez no festival de Paredes e ela, a quem não via há muito, queria saber o que eu achava – a Pª que ama aquilo tanto quanto se pode. Disse-lhe o óbvio.
A zona envolvente ao festival é linda de morrer e a verdade é que toda aquela beleza, sublimada no anfiteatro natural que recebe o palco principal, parece moldar o ambiente, retirando velocidade à malta em prol da contemplação. Talvez por isso se explique o sucesso retumbante dos baladeiros noruegueses, que chegaram mais cedo a Paredes e foram vistos e fotografados a passear pelo rio Coura num barquinho de borracha, cantarolando de viola na mão. Um dos momentos mais emocionantes foi sem dúvida o último tema do alinhamento dos Kings of Convenience, ‘Homesick’. Dedicaram-no a uma miúda – não foram os únicos... - que conheceram no rio. Só lhes fica bem. De pronto os isqueiros saltaram dos bolsos de quase 20 mil pessoas - tanto lume. Arrepiou. Não estava à espera daquilo.
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Kings of Convenience: apoteose final |
Em Paredes de Coura é tudo outra coisa. Se o festival fosse uma droga era sem dúvida erva. Gargalhadas, paz e amor. Algumas trincas a fundo, também, como bem senti na boca – uma vez é giro; sete ou oito vezes para te esburacarem o interior dos lábios tipo máquina de costura ra-ta-ta-ta é desnecessário e tem consequências, digo, sei eu - depois do concerto da matulona Marina Diamandis, líder dos Marina & the Diamonds, aquela galesa que está obcecada com a trapalhada que é a América, a partir de onde nos infectaram ao ponto de querermos beijar à chuva. Passou meio despercebida - a música da banda, não a Marina.
Por essa altura circulámos até ao palco secundário, que é logo ao pé do outro e provavelmente será a coisa mais sem graça que por ali vi. Depressa ficava à pinha e o facto de estarmos à espera de Metronomy só precipitou uma enchente excessiva. Quase não me lembro do concerto: passei esse tempo com a R., que fez questão de me levar pelo braço para junto do grupo de amigos dela, onde estava um rapaz que eu sempre julguei andar com ela, mas nunca o perguntei. Não tenho que perguntar. Mas achei de mau gosto e confesso que não me senti há vontade, pelo que puxei-a para outro lado da confusão assim que a apanhei distraída. Mas ela tem sardas e é bonita e gosta de Metronomy, pelo que a vontade própria tem limites.
As meninas do festival passavam o tempo a fazer bolas de sabão e eu, claro, fiquei sem dinheiro no telemóvel. Também me perdi da R., que me viu a falar com uma DJ de um bar em Lisboa e pareceu não ter gostado muito daquilo. Paciência. Eu cá já não via nada à frente.
Por volta das cinco da matina subimos a encosta para depois a descer pelo outro lado, rumo ao carro. Agendado estava um almoço em Chão, a seis ou sete quilómetros dali, na casa dos donos de uma cervejaria em Lisboa na qual janto há alguns anos. Esta era a terceira vez que os visitava em Agosto e a primeira do P., que é meu vizinho, homem de Direito e bom rapaz.
Esticámo-nos no carro e tentámos dormir, mas o calor da manhã chegou rapidamente e em força. Acabámos por adormecer com as portas abertas, à grande. Algures ali a meio da manhã saí para ir à bagageira buscar qualquer coisa e vi um carro cheio de espanholas feias enlouquecidas com uma média de 80 kg cada e uma condutora a tentar meter a primeira, sem o conseguir. Quase se espetaram contra uma casa onde se doa sangue à boleia de uma marcha-atrás involuntária. Quando acertaram com a mudança chegaram-se ao pé de mim e convidaram-nos para ir com elas. "Vão dormir aí? Temos uma casa em Espanha!"
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Conselho ao P.: para a próxima tenta apanhar o rótulo do muralhas de monção que bebemos à uma da tarde junto de enchidos, pão, queijinho e um belo churrasco |
Ainda perguntei ao P. se estava inclinado para aquilo mas levei logo um arranque e achei melhor dizer-lhes que não tinhamos grande interesse em cruzar a fronteira com elas devido a planos matutinos. Elas nem protestaram muito e salvo erro tentaram outro carro, uns 30 metros à frente. Sozinhas não devem ter dormido.
Dormi duas horas e ao acordar com o cabeção do século reparei que tinha duas chamadas não atendidas do senhor C., o dono da cervejaria. Liguei-lhe do telemóvel do P.: tinha passado por Coura de manhã e queria saber se estávamos numa de antecipar a almoçarada. Eu, que me encontrava perfeitamente desfigurado, a começar pelos lábios, disse para ele esperar um bocadinho.
“Vamos ao rio e já aparecemos!”. Mais tarde soubemos que eles passaram perto do nosso carro de portas abertas e monos lá dentro, e a dona S. percebeu que se tratava do meu. Estiveram para nos acordar. Deus é grande: não o fizeram.
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o senhor C. é o melhor contador de anedotas de sempre - oh a cara dele aqui a desmanchar o P., oh - e adora o meu chapéu de "vendedor de gado", he says. À atenção das meninas: é filho do senhor D., que fez este e mais nove filhos além de ter vivido 18 anos em França |
Ao invés de chapinhar no rio Coura fomos para um café. Lavámos a cara e pusemos as ideias em ordem. Seguiu-se um almoço fabuloso em Chão, onde uma família de gente boa nos esperava de braços abertos. Tinhamos de fazer boa figura e não poderia haver lugar a esquisitices. Eu cá já me sentia fino e comecei a devorar enchidos e vinho como gente grande. Foi um fartote de comer, beber e rir. Temos ali amigos.
Para moer o almoço descemos a rua (a única de Chão, possivelmente) e fomos a um café atacar um digestivo. Lá dentro, como é óbvio, personagens de banda desenhada. À cabeça de todos o iluminado Zé da Tulha, irmão do Quim da Tulha e da Adélia do Cadete Caralho. Isto, claro, além de ser amigo da pinga como poucos. A dada altura o bicho de 50 e tal anos, baixo, franzino, seco, bigodaço, deitou-se mesmo à entrada do café a passar pelas brasas. Mas depressa acordaria, cortesia de uma senhora que lhe derramou cerveja na cara para gáudio de todos quantos ali estávamos. Ela ria-se muito e ele passou por ela a resmungar “filha da puta, filha da puta”. Eu já ia no segundo whisky e tinha as bochechas doridas de tanto rir.
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Não ficámos lá muito tempo porque queríamos ir a banhos e curtir o famoso jazz na relva. Nas margens do rio, centenas e centenas de festivaleiros sentados na relva, a mergulhar ou a passear de barco naquelas águas gélidas. Um ambiente que tem de ser vivido para se perceber o porquê de tanto elogio. Há gente a ler, outros a torrar ao sol, a dormir, a namorar, a fumar, a beber, a roncar, a cantar, a fazer nada. Reina a paz. Também em paz estava o palco do jazz na relva, que aparentemente acabou quando chegámos – foi o que percebi ao dirigir-me feito tolo ao backstage a perguntar pelo concerto a quem arrumava o equipamento de som.
Ouvi esta resposta: “agora só para o ano.” Fuck.
Subimos a serra e atacámos o concerto dos peixe-avião já depois de eu ter passado pela zona VIP e, dizem-me, ensaiado um shake de kizomba. Sempre achei muito sem graça o som dos peixe-avião. Reforcei a ideia. Mas no horizonte estava já o concerto dos Linda Martini no palco principal, praticamente cheio logo às 18:30, só que o meu karma voltou a fazer das suas. Tirei a mochila dos ombros e percebi que o bolso mais pequeno estava entreaberto. E a minha carteira?
Muito serenamente, a explodir por dentro, disse ao P. que precisava de ir ao carro, agora estacionado longe para xuxu, e lá fui, já sem grande fé de evitar uma grande chatice. Mas claro que encontrei aquela merda no porta-luvas, ficando pelo carro a beber o resto do Jameson, imaginando de que forma ‘As putas dançam slows’ e a pensar, “Getting away with it all messed up, that’s the living”.
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Two Door Cinema Club, No Age e Mogwai were next. Os primeiros deram uma grande festa, mas achei que as músicas eram um pouco enfadonhas, na medida em que estavam construídas praticamente da mesma forma. No Age, de quem o meu chefe cool é fã incondicional, fizeram um espectáculo a rasgar tudo. Uma energia inesgotável. Valia tudo. O punk ainda tem quem carregue a sua bandeira. Mogwai foi deslocado. No dia anterior teria feito mais sentido. Pareceram distantes. Pareceu que estavam a tocar ali há dez ou 12 anos e dali não sairam, só o público é que mudou. Por fim, para fechar o palco principal, DFA 1979. Não vou muito à bola com aquilo. É histerismo a mais.
Fui jantar, tarde mas fui, e encontrei amigas do P., ele que se refastelava num harém sem me dizer nada, o macaco. Ficámos com elas, bem simpáticas, e posteriormente fomos todos juntos gingar com Orelha Negra. Ao mesmo tempo, centenas de pessoas concentravam-se junto a um ecrã que passava a final do Mundial de sub-20. Levámos na boca mas só o vi já em casa do senhor C., onde tinhamos combinado ir dormir. Chegámos lá pelas 3.30, tendo sido recebidos pela dona S. e pela filha Cª. Tinham preparado um lanche para nós, adoráveis. Viram connosco como o Brasil virou de 1-2 para 3-2 contra o Portugal e fez a festa à nossa custa. Dormimos que nem anjos, claro.
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No dia seguinte novo almoço e o reencontro com o Zé da Tulha, que estava mais calmo por ter rebentado o pára-lamas do seu renault clio branco speedline na noite anterior, pudera. Um amigo dele com olhos a fitar direcções opostas disse-me que o conhece há 28 anos e nunca o viu tão ceguinho como na véspera. E chegou o tempo das despedidas. Beijos, agradecimentos pela incrível hospitalidade e promessas de retorno. Era tempo de atacar a estrada. Estivemos a um detalhe de ir a Aveiro ver o Sporting, mas a fila, soubemos já perto da saída da A1 que nos interessava, dava a volta ao estádio a uma hora do início do jogo. Vimo-lo na estação de serviço do Pombal. Aquela gente viajada ainda ouviu um par de gritos meus, mas não parti nada. E com isto levámos tenda para Paredes de Coura sem sequer a termos montado. Pfff.