sexta-feira, 30 de março de 2012

Castelos na areia

O conde de Ségur e sua condessa tinham menos dinheiro para gastar do que seria de supor, dada a respectiva condição, de modo que se entretinham a fazer filhos, só parando ao oitavo. Foi quando deu descanso ao útero que a condessa, conhecedora de literatura para crianças, começou a contar histórias aos filhos, e depois aos netos, e somava 58 anos de idade quando assinou o seu primeiro conto, ainda a tempo de se tornar numa das referências mundiais da literatura infantil, como decerto a M. concordará.

As férias de Verão da M. eram uma animação. Ao contrário das amigas de Lisboa, ela passeava com frequência, frequentemente até Ferragudo, terra da mãe. A M. era uma miúda que dava pouco trabalho aos pais e, nessas viagens até ao Algarve, sentada no banco de trás, dividia o tempo de nariz colado ao vidro a antecipar os castelos de areia que iria construir na praia dos Caneiros ou recostada a ler “As meninas exemplares” da condessa de Ségur.

As meninas exemplares eram a Camila e a Madalena, filhas da senhora de Fleurville e, como o nome indica, nada tinham de maldade. Eram bondosas e meigas e nunca erravam a um ponto que não pudesse ser corrigido. Na verdade, quando saltavam bem cedo da cama era para salvar o mundo. Em casa ajudavam a mãe a limpar o pó, a lavar roupa e loiça, a pôr e tirar a mesa, a varrer o cocó seco de pássaro do quintal e ainda acordavam o pai para almoçar. Na escola sentavam-se sempre na primeira fila e acenavam com as melhoras notas da turma. Os professores adoravam-nas como, aliás, a restante população mundial, incluindo a M., que queria ser perfeita como elas e desse modo estar habilitada a salvar o mundo.

Um dia, à saída da escola, a M. encontrou um senhor estatelado no passeio, a dormir. A M. aprendera com as meninas exemplares que as crianças não devem falar com estranhos, mas ficou preocupada quando percebeu que o senhor em causa tinha um aspecto distinto, pois vestia de fato, e nunca lhe tinham dito ser normal que os senhores de fato dormissem na rua.

Hesitou mas decidiu aproximar-se porque naquele dia ainda não tinha salvo o mundo. Mais de perto, enquanto reparava que o fato estava maltratado por traças, viu-se forçada a tapar o nariz: do senhor emanava um cheiro intenso cuja origem desconhecia. “Deve ser veneno!”, pensou. Respirando fundo, deu um passo em frente, recuando dois logo depois de lhe tocar num ombro.

O homem acordou, mas a custo, balbuciando algo imperceptível sem olhar a M. nos olhos. A princípio tinha erguido um pouco a cabeça e chegou a olhar em várias direcções, mas nada do que viu lhe pareceu interessar e por isso deixou-se estatelar de novo na calçada.

A M. continuava preocupada. Os senhores de fato que conhecia nunca falhavam a missa ao domingo e esse indicador tornava este homem um bom filho do Senhor. Por outro lado, também ficara a saber pelo exemplo das meninas Camila e Madalena que nunca devemos desistir daquilo que acreditamos ser o Bem, que, como toda a gente sabe, é o contrário do Mal.

Insistiu e desta vez obteve uma reacção concreta.

- “O que queres, pá?” – perguntou o senhor, rude, ainda sem olhar a M. nos olhos e a tresandar ao tal veneno de forma mais intensa.

A M. achou a abordagem muito contra os bons costumes que lhe tinham sido ensinados, mas engoliu em seco, esticou a espinha, juntou os pés, respirou fundo duas vezes, rezou para dentro um pai nosso e meia avé maria e apresentou-se.

- Olá, pensei que estivesse envenenado e vim ajudá-lo.

O senhor coçou a cabeça e levantou-se. Já de pé, rodando sobre si próprio, de costas, espreguiçando-se, denunciou grandes buracos no tecido das calças que deixavam à mostra o traseiro. A M. não pôde deixar de o observar: levou a mão à boca e conteve um risinho nervoso. O homem virou-se e encontrou-a.

- Acertaste, estou mesmo envenenado. E o que eu preciso agora é de um remédio - disse, fitando-a pela primeira vez.

A M. assustou-se com os olhos do senhor, escuros onde costuma haver cor e repletos de raios vermelhos onde por norma tudo é branco. O cheiro era insuportável. Dado o cenário, nomeadamente o estado das calças do senhor, achou por bem oferecer-se para ir buscar o tal remédio. O senhor agradeceu e deu as indicações devidas: o remédio estaria dentro de uma garrafa de vidro sem cor e poderia ser comprado na maioria das lojas, não só em farmácias. A M. acumulava tanta vontade de praticar o Bem que até se ofereceu para pagar a despesa com os trocos que tinha encontrado num bolso das calças do pai, logo após virá-las do avesso para as esfregar no tanque, e que tinha guardado para que não se perdessem. O senhor agradeceu e voltou a cair redondo na calçada, não sem antes soltar um preocupado , “não te percas e volta rápido que este veneno mata!”

A conselho do senhor, a M. entrou à pressa numa dessas lojas que vendia o tal remédio e, mesmo sem altura para se assomar ao balcão de atendimento, colocou-se em bicos de pés, inclinou o pescocinho e fez o pedido a um funcionário que eventualmente estivesse lá para trás, embora a M. não o conseguisse ver. Ouviu, isso sim, muitos e muitos risos, ao fim dos quais se seguiu um breve momento de silêncio. Foi aí que sobre ela apareceu um rosto de homem, ligado ao que, pensou, poderia – ou não – ser um tronco e respectivos membros de homem. O funcionário empoleirava-se do lado de lá do balcão, divertidíssimo com a pergunta da pequena cliente.

- E para quem é esse remédio, menina?

- É para um senhor de fato que está aqui perto estendido num passeio, envenenado! – respondeu a M., levando às rugas de tanto rir a cabeça de homem possivelmente atrelada ao que também seriam tronco e membros de espécie humana.

Ao cair da noite a loja tinha uma luz muito baixa mas pouca gente. O volume da música era mais alto do que o que a M. entendia ser comum. Sentadas ao balcão, em trajes frescos, à espera que a vida acontecesse, Prazeres e Arlete falavam de tudo e de nada.

“Eu não tenho o colesterol alto mas também não tenho juízo!”, observou a menina Prazeres à menina Arlete, ambas de 50 anos de idade para cima segundo boatos nunca confirmados.

A M. não deixou de estranhar que naquela loja houvesse um cheiro muito semelhante àquele que emanava do senhor de fato maltratado pelas traças, mas aquilo que mais a surpreendeu foi ter visto o próprio pai à entrada da loja, de braços cruzados e cara de poucos amigos, enquanto a mãe passava por ele a correr, de olhos aguados para a agarrar e sacudir.

- Onde te meteste, M.?! Estávamos tão preocupados!! Que estás a fazer aqui neste bar depois da escola?! À minha frente já para casa!!

Embora tentasse a todo o custo explicar o sucedido, a M. não foi levada a sério. Ficou de castigo: naquele Verão ficaria sem o balde e a pá com que tanto gostava de erguer castelos nos Caneiros.

Nesse dia, depois de jantar, recolheu ao quarto mais cedo do que era habitual e deitou logo a cabeça na almofada. Achava-se incompreendida, sobretudo quando pensava nas meninas exemplares. “Elas teriam o feito o mesmo que eu – teriam ajudado o senhor envenenado!”, pensou, ranhosa.

Para afastar a tristeza e convocar o sono puxou d’As meninas exemplares, e foi enquanto folheava as páginas escritas pela condessa de Ségur que a M. se apercebeu pela primeira vez que não conhecia ninguém tão perfeito como as irmãs Camila e Madalena. Acto contínuo, deixou-se tomar por uma pergunta antes de fechar os olhos. "Afinal de contas quem é normal – eu ou elas?"

segunda-feira, 26 de março de 2012

Ser português é tocar a gaita


O dono de um dos cafés da avenida Morais Soares é um antigo polícia militar que não sabe falar inglês mas já me revelou que só vê os noticiários da euronews e da CNN. “Eu percebo tudo, esteja descansado!”, garantiu-me, de indicador em riste e tacha arreganhada, respondendo à pergunta que não cheguei a fazer.

Aproveitava o primeiro de dois dias de folga accionando o modo inútil. Levantei-me tão tarde quanto possível, tomei banho, escovei os dentes, desodorizante, vesti uns trapos, dedos no cabelo, desci a rua a dois à hora, fiz covinha para a morena apressada em contramão, tratei de assuntos de Estado com o sportinguista do talho – “a ver se comemos os ucranianos na quinta!” -, comprei o jornal, entrei num café, escolhi uma mesa mais para lá, pedi o almolanche.

Naquele dia a maioria dos jornais dava à estampa a cobardia: um polícia batia numa repórter de imagem na rua Garrett. Escolhi o “i”. Lá dentro explicava-se a história. Ela queria documentar para a AFP a manifestação "anti esta merda toda" associada à greve geral de 22 de Março. Ergueu a objectiva. Fitou o alvo. Disparou. Flash! Flash! Flash! Ele, um agente da autoridade, ou alguém de cima, muito célere a dar ordens, achou desapropriado ela querer documentar a carga da polícia de choque em tudo o que encontrava - nem mulheres curvadas pela idade foram discriminadas, a bem da igualdade de direitos. A primeira bastonada deitou logo a fotojornalista por terra. Um manifestante saiu das “trincheiras” e socorreu-a. Ajudou a levantá-la. Ela sacou da documentação devida e identificou-se ao mesmo polícia, que não gostou da afronta. Zás!, segundo golpe e jornalista de novo ao chão, amparada pelo próximo namorado.

Ao chegar à minha mesa com um galão numa mão e manteiga com pão torrado na outra, o dono do café fez o seu juízo de valor sobre os acontecimentos. “O que falta a estes polícias novos é formação! São mal formados! Não tenha dúvidas!”

Fitei-o e concordei o concordar discreto da cabeça. Uma vez. Outra. Na verdade não fiz outra coisa durante a hora em que ali estive - ouvir e assentir o que dizia o bom do ex-militar, um tagarela natural da terra do Salazar com opinião formada sobre as causas e os efeitos do mundo, cabelo para fritar batata, olhos pequeninos, estômago dilatado e coração bom.

À minha frente um senhor com o aparato modesto dos filósofos lançava retórica em desânimo: “Pensei que tinhamos feito o 25 de Abril para acabar com isto...”

Ocupávamo-nos do duelo do bastão contra a máquina fotográfica até que entrou o Doutor e sua companhia de ocasião. Para ela, quase 50, que trazia um casaco de pele comprido e cheirava a cabeleireiro, uma cerveja; para ele, quase 60, desvio colossal entre os dentes, cabelo cor de algodão, bem puxado para trás, um daqueles remédios servidos em copos pequenos que curam gripes.

O dono do café falava comigo por cima do ruído, espreitando a minha reacção. Quando eu não acenava ele falava mais alto e concluía com um, “está a ver ou não está?”

“Estou, estou sim chefe! Vejo tudo!”, respondia eu, passando rapidamente os olhos por uma notícia na tentantiva em vão de ter tempo de a compreender.

No entretanto, mais animado pelo remédio, o Doutor sacou de uma gaita que trazia no bolso do casaco onde outros guardam cigarros e tocou de forma brilhante “Ó rama, ó que linda rama”. Desisti do jornal. O jeito do Doutor para o improviso era notório e por isso recebeu ainda mais aplausos do que seria de esperar, além de um elogio em particular.

“Também toca ópera, isto serve para tudo!”, disse a senhora que o acompanhava, aludindo aos méritos da gaita do Doutor.

A agitação no café chamou a atenção de vários transeuntes, nomeadamente duas mulheres e um rapaz de traços asiáticos. O grupo entrou. O Doutor ganhava plateia e ofereceu nova interpretação de um tema histórico do cancioneiro português, “A azeitona já está preta” - este, como o outro, da autoria do compositor popular Arlindo de Carvalho, jurava-me o dono do café a pés juntos.

Uma das mulheres recém-entradas estava encantada com a gaita do Doutor. “Isto é que é nível, tão bom! Isto é que é ser português!”, dizia, aplicando valentes safanões ao imperturbável amigo asiático. Este pouco compreendia aquilo que o rodeava mas isso não parecia roubar-lhe a satisfação serena e improvável de estar naquele sítio, àquela hora.

O Doutor continuava a empenhar a gaita com muito talento e recebeu nova salva de palmas pela actuação sem reparos. Depois prometeu ao dono: “Amanhã já trago dinheiro!”. Foi com saudade que se despediu das pessoas. E foi cortês à saída. “Tu primeiro, minha querida”, disse, adorando as formas da companhia de ocasião. O dono procurou-me do balcão. “Este senhor é advogado mas brinca com a vida, qual é o mal?”

"Mal nenhum, chefe!". Sorri e pedi a conta.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Abrindo a pestana

As mulheres do Cais do Sodré querem atenção. Sabem que sabes que estão a olhar para ti. As mulheres do Cais do Sodré não temem a rejeição. “Mais perdes, palerma”. As mulheres do Cais do Sodré deixam-se ver sobretudo durante a semana, quando podem ser mais como são. Põem-se bonitas naquele tipo de desleixo vaidoso. Entram em calças pretas impossíveis de tão justas e erguem-se quase meio palmo em botas-ameaço. Raramente têm frio. Em última análise sentem-se sós e não podiam estar menos interessadas no desconcerto dos Ena Pá 2000 versão Homer Simpson sem cerveja que está a acontecer na Pensão Amor, onde entraram sem dar conta disso. Estão ali porque gostam do nome e há um fresco falso por cima do balcão do bar que compreendem ser mais belo do que tudo o que sempre lhes foi dado a conhecer por verdadeiro. As mulheres do Cais do Sodré rodopiam por cima dos esguichos de cerveja em copo de plástico amolgado que vão besuntando a pista de dança de cima do Roterdão ao mesmo tempo que passa o Eyes Wide Shut sobre a cabine do DJ, que por sua vez devora prosa profana em dimensões bíblicas no Dia Mundial da Poesia, entre Kinks e Strokes. As mulheres do Cais do Sodré gostam de te ver acompanhado e certificam-se de que te apercebes disso. Tu e quem te acompanha. Despedem-se com covas no rosto e promessas de amanhã.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Não é uma guerra. Não tem de ser

Quinta-feira. Ela ainda se ri dos defeitos dele.

Sexta-feira. O primeiro silêncio. Incómodo.

Sábado. Não se falam.

Domingo. Ela abdica de tudo.

Segunda-feira. Magoa-o. Muito.

Terça-feira. Arrepende-se.

Quarta-feira. Regressa. Vem a enrolar as pontas do cabelo. Dá-lhe a mão. Morde o lábio de baixo. Pede-lhe para esquecer.