segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Podes Ser

A miúda de leste, infinitamente feliz desde que empurra um carrinho de bebé, loira, bem sardenta, peito para sobrenutrir dez filhos saliente num corpo de mãos ao barro, por mim passou bonita e vagarosa como um acorde de harpa. Contou, deve ter contado, um, dois, três e virou-se meia fracção antes do momento certo, o do desencontro - percebi, percebeu, sorri(mos).

Um idoso que apressadamente ajeitou os três fios de cabelo à janela do metro logo que a seu lado viu sentar metro e meio de mulher, corpo, alma e adereços anos 20 a evocar o tempo de outras senhoras, o seu tempo, e finalmente digno de a observar sem que ela se sentisse observada por ali ficou em permanente observatório, observei.

A moça dos olhos adormecidos, por quem os adormeceu já esquecidos.

Tu,
Eu.
Nós.

É.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

uis e ais

Ah!, o amor!,
oh!, eterna juventude!
Nas trincheiras dos lençóis
Como cresce, amiúde,

Como toma por beleza,
sem temer que um dia mude
com disfarce de tristeza
tão sincera plenitude.

Manda à fava as ideias
que entende como falsas
de ter algo de nobreza
não meter a mão nas calças,

Não ser coisa de princesa
gritar "uis" e gozar "ais!"
"pobre língua portuguesa
nunca, nunca, nunca mais!"

Ah!, o amor!
essa besta amuada
de um banquete a quatro pernas
não bate ela em retirada,

Desinventa a tristeza
E não vai querer saber
Mente a gosto, com firmeza:
"perdoei-te, vamos fuugir".


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O que não teríamos dado por um amor assim?


No livro Memória das Minhas Putas Tristes, de Gabriel Garcia Márquez, um jornalista que nunca se tinha deitado como uma mulher sem lhe pagar reencontra-se com a adolescente virgem com que se presenteara no dia do seus 90 anos. Nessa noite encontrou-a adormecida, cansada de cozer botões durante o dia. Estava arranjada, mas sem chegar ao ponto de não se lhe reconhecer, naquele momento, o cúmulo da inocência. "El Sabio" não a chegou a acordar, mas, a caminho do século de vida, descobria ali o amor. Quando a voltou a procurar ficou estarrecido com a nova imagem - as pestanas postiças, o tintilar das jóias que lhe cobriam o corpinho, as sapatilhas de veludo, o intenso fedor a perfume barato "que não tinha nada que ver com o amor". O jornalista adivinhou que ela já tivesse deixado de receber clientes a dormir, ou, pelo menos, que estes não a acordassem, e teve um ataque de fúria que destruiu o quarto do prostíbulo. Dona da casa, na porta, em camisa de dormir, Rosa Cabarcas exclamou: "Meu Deus! O que não teria eu dado por um amor como este!"

O mesmo não pode dizer o A., que já o tem, e bem o pode agradecer à sua Maria da Felicidade (MF), como o mundo dela a conhece. Não que, tanto quanto contou a este Castelo, a MF tenha espatifado copos, lâmpadas e jarras contra a parede, como El Sabio fez, louco de ciúme. Não: nesta história as paredes serão bem tratadas, o amor prevalece e só o plágio fica mal na fotografia. 

No final do ano passado as coisas não sorriam à MF. "Queria chegar até ele. Nessa altura tinha-me dado para trás porque achava que a nossa relação não teria futuro - porque tinha um passado muito presente na vida dele e por outros motivos que se calhar só ele saberá explicar."

Muito boa gente teria desistido, entregando-se às más energias, mas a MF sentia que o sentimento era mútuo: jogou esse destino à fava e começou a moldar o dela. Lembrou-se do seu desbloqueador de conversa favorito, "Sabes o que me apetece? Ser feliz", e associou-o uma conversa com o A. - este, questionado sobre o que queria da vida, respondeu, "Eu quero é ser feliz".

A MF percebia de street art, cortesia do próprio A., e uma coisa levou a outra - à criação de um stencil, concretamente. "Em dois dias tinha o stencil cortado. Fiz uma prova em casa. Ao terceiro dia fui pela primeira vez para a rua. De noite. E fiz o primeiro na rua dele, claro, para que o pudesse ver o mais rápido possível". 

A mensagem "Eu quero é ser feliz", à qual a MF juntou um coração, foi pintando paredes de lugares com histórias comuns - além de ganhar corpo no Facebook e na blogosfera -, mas, raios, o A. teimava em não abrir a pestana e teve de ser a própria MF a contar-lhe tudo. Levou-o ao Adamastor, a pretexto de lhe uma dar prenda de natal, conduziu-o à parede que mereceu o segundo stencil, colocou uma fita de embrulho e disse, "Feliz Natal."

"Não demorou muito até o ter junto a mim, até hoje."


Outra coisa que demorou pouco foi o mediatismo ganho pelo stencil, nomeadamente via Internet. A página do Facebook Fotos de Rua deu-lhe destaque. A MF ficou satisfeita, primeiro, surpreendida, depois, e por fim revoltada: a responsável pela página registou a marca, fez uma parceria com a Culto Decor, uma empresa de decoração, e criou uma linha de vinis decorativos à laia de stencils como o dela. Para uma mulher apaixonada foi difícil relacionar o impulso que conduziu àquela expressão artística e o facto de haver quem ande a lucrar à custa disso. 


Mas tudo ganhou outro tipo de contornos quando ela soube que o estilista Nuno Gama andava a ser aclamado nos media e redes sociais por ter colocado modelos a desfilar na passerelle da Moda Lisboa 2012 com uma t-shirt cujo desenho lhe era especialmente familiar. "Acho que nunca fui tão radical na minha vida" disse, então, Nuno Gama aos jornalistas, não ficando claro se o estilista se referia ao cariz político conferido ao desfile, ao plágio, ou a ambos, bem enroladinhos.

Contactado pela MF, Nuno Gama limitou-se a responder, "como pode verificar a imagem no global nada tem a ver com a sua, nem nunca teve..."

Maria da Felicidade não pretende invocar direitos, mas gostaria que se soubesse que "o stencil tem dono, e não é o senhor Nuno Gama." Importante, mesmo, para a MF, é saber que, pelo A., valeu a pena viver esta história. "Todos os minutos passados com ele valem a pena".

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

À atenção dos metralhas que nos governam, do bibelot de Belém, do estudante de filosofia, de toda essa rapaziada que bebe minis a 40 cêntimos nos bares da Casa do Povo











Rg


Lisboa , 17-10-2012 23:26


"Tenho 30 anos, uma licenciatura, um mestrado, dois filhos. Tenho fome. Ando a comer massa com massa há semanas. Tenho fome. E não consigo dizer a ninguém. Que tenho fome."


(SOS colocado na caixa de comentários desta notícia).

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sporting Clube de Portugal


Há uma certeza quando se fala no Sporting: a grandeza inscrita em 106 anos de história do nosso símbolo não pode, em momento algum, ser confundida com a pobreza de espírito daqueles que, por  má sorte ou uma qualquer teoria da conspiração, assumiram o poder no clube para se servirem dele, e não o contrário. É fácil olhar para 1995, aquando da criação da SAD, e aí encontrar o ponto de viragem. A conquista no Jamor - a minha primeira -, o Figo, o Balakov, o Amunike, o Iordanov. Os craques da minha infância. Foi ali que tudo começou a ser minado, mas só o soubemos mais tarde, com duas grandiosas bebedeiras pelo meio (2000 e 2002).

Hoje, 17 anos depois, sabemos que não há dinheiro, que até para pagar despesas correntes é uma aflição, mas também sabemos como o fomos gastando enquanto o tínhamos. Sabemos que o passivo era de 30 milhões em 1995 e que hoje é de 400 milhões, com a agravante de que, agora, o clube já não tem património. Sabemos que o nosso presidente fala a verdade quando diz que a escolha do treinador não é uma prioridade, mas depois jogamos as mãos à cabeça quando pensamos que ele próprio já despediu dois em pouco mais de um ano, um deles o homem que levou uma equipa como o Braga a lutar pelo título português (2009/2010) e pela Taça UEFA (2010/2011), de modo que nos reservamos ao direito de questionar - afinal, quem é o incompetente número um?

Será que o Domingos tudo desaprendeu em sete meses? Do Sá nem falo, coitado, fez o pouco que podia.

A resposta é óbvia: claro que o problema maior do clube não é o treinador da equipa de futebol, o tal que "está perfeitamente identificado" mas ninguém sabe dele. Tenho pena do Oceano, o próximo a ser queimado, e pena tenho do que depois dele aparecer, pois voltará a estar desprotegido quando começar a somar desaires. A incompetência é total.

Temo pelo que aí vem. Não conseguimos ganhar um jogo de futebol a ninguém quando se sabe que a participação na Liga dos Campeões 2013/2014, e daí em diante, é uma urgência, literalmente um caso de vida ou morte do clube. Mas, raios, ainda acredito que é possível reerguer isto, lentamente, a partir dessa constância de receitas, a partir da qual o crescimento desportivo será possível. Estou condenado a alimentar-me dessa fé, esse jeito muito próprio de ser sportinguista.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Aviso: esta música pode fazer mal à saúde



"Man needs something he can hold on to. A nine pound hammer or a woman like you."

Quarto escuro




Ah!, quando ela cerra as pálpebras,
e entra a rodopiar naquele quarto escuro,
e tira a coleira,
e estremece com as hipóteses.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"Goin' for gold!"

Generaliza-se muito, demasiado, e convém dizer que dos bifes são os irlandeses os que menos piada acham a piadas que metam sexo. Vem ao caso que, mal entrei num bar tradicional da Praia da Rocha, o Ireland's Eye, topei um casal de idade sábia sentado por ali; calmos e divertidos, os irlandeses, a observar os bebadozitos. "Paddy The Punk", um algarvio de gema nascido na Irlanda - está por cá a cantar na época alta, que amanhã termina -, histérico do Manchester United (hein?), animava a malta com a sua versão da versão da Amy Winehouse da 'Valerie' e outras, até que apostou num slow, e algum tipo de mérito tenha a minha memória se me lembrar que música era. Não demorou muito até o tal casal de idade sábia abrir a pista de dança. Ali perto, encostado ao balcão, a iniciar o meu Jameson com água natural, fiz-lhes txim-txim aéreo e, não satisfeito, aplaudi-lhes um passo de dança mais nobre. O senhor, que tinha o nariz muito vermelho, abriu a pestana de admiração e admirado continuou o resto da dança, fitando-me amiúde até ao último acorde, com cara de quem vai aprontar. E assim foi: mal a música acabou, aproximou-se e perguntou: "What you havin'?, ao que respondi "oh!, i'm fine - as you can see, sir, thanks!", disse apontando para o meu copo ainda cheio, e ele semi engasgou-se de propósito e já com a voz clara insistiu, "son, what YOU havin'?", e eu respondi, "this sir, this, Jameson with still water!", e ele sacou da nota que o barman pediu - "five, please" -, pagou-me o copo e cumprimentou-me com o brilhozinho nos olhos de quem se despede de um amigo em casa de quem se passou férias.

"Paddy The Punk" estava em forma e contou a anedota dos preservativos olímpicos. O marido foi às compras e trouxe para casa uma caixa. Deu a notícia à mulher, que ficou intrigada.

"What makes them so special?"
"There are three colours", explicou o marido. "Bronze, silver and gold".
"What colour are you gonna wear tonight?", perguntou a mulher, atrevida.
"Gold, of course".
Ela respondeu: "Really? Why don't you wear silver?"
Marido: "Well, it would be nice if you came second for a change."

A noite prosseguiu pelo Ireland's Eye até perto do fecho da casa, pelo menos para nós. Muito antes, o tal casal de sábios irlandeses levantou-se da respectiva mesa e, já perto da porta de saída, o marido deteve-se e gritou, alto e bom som: "goin' for gold!"

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Outubro

Um privilégio, isto de vir a casa por estes dias. Faço praia. Da boa - banhistas demorados, areia-veludo, mar a 21 graus, cá fora 26.  

Acompanho a minha mãe em viagens pelo imenso areal da nossa costa, cinco quilómetros do farol à praia do alemão, ir e vir - dez, portanto, segundo as contas da Maria Barroso, outrora cúmplice de "olá, bom dia!" da minha avó Vivi, tal como o marido Soares. Oiço a minha mãe explicar como deu nas vistas até que o meu pai a puxasse para dançar nas farras do Lobito, às quais ele, furriel do Exército, chegava sempre mais tarde - isto porque fazia o melhor uso de um salvo-conduto que todas as noites o habilitava a frequentar as sessões de cinema das 22:00 à meia noite.

Ontem à noite levaram três mangas da nossa mangueira, de modo que hoje, quando acordei, a primeira coisa que fiz foi recolher da árvore as duas que já estavam maduras. Levei-as para a mesa e, frente a frente com a minha mãe, comemo-las como macacos, mãos e dentes até ao caroço, ocupando os intervalos dos dentes de teimosos fios de fruto e os cantos da boca de sumo natural.

A manga era o despertador do meu pai em África. Pum, pum, pum, caía uma atrás da outra no jardim diante do quarto da casa dele, no Lobito. Estava a manga para o meu pai como a gaivota para mim ou o galo para a Vivi. 

Melhor do que vítimas de carros em segunda fila. (Deveria haver reuniões de terapia para terceiros anónimos).