Cheguei a casa cheio de mimo, depois de jantar no restaurante com a melhor relação qualidade/preço que conheço. Aterrei no sofá e liguei a televisão. Comando. Passei pela 2: exibiam o filme "Terra Ferma" - a propósito, Relvas, se me lês, vendes a 2 e deixo-te a boiar no Tejo. Descia pelo ecrã a cascata de créditos finais ao som de uma canção incrível e encetei uma perseguição em busca dela. Com sucesso. Percebi que se tratava de uma versão de um tema de 2001, original de uma banda francesa, Noir Désir. A versão que me hipnotizara era de uma cantora suiça, Sophie Hunger.
Investiguei mais um pouquinho e compreendi que conhecia a banda original, aliás, tinha um disco deles, o que é diferente. Tive sorte: não é que encontrei nesse mesmo disco ("des visages des Figures") a música original? Pu-la a tocar. Era pop, como a outra, mas tinha um ritmo mais animado - percebi depois que com guitarra do Manu Chao, em estúdio. Ainda assim mantinha uma energia e mensagem de certa forma estranhas, perturbadoras. Le Vent Nous Portera/O vento irá levar-nos.
Não sei que raio de pesquisa fiz para, dias depois, dar com um artigo que me informou que o vocalista (Bertrand Cantat) destes Noir Désir espancou a namorada até à morte em 2003. Isso mesmo, um assassino. Em tribunal confessou ter batido quatro vezes na cabeça da namorada, a actriz francesa Marie Trintignant, devido a um SMS que esta recebera do ex-marido, mas insistiu que a matou por acidente. A autópsia revelou 19 golpes na cabeça da Marie, que sucumbiria três dias depois. Um edema cerebral. Condenado a oito anos de prisão por homicídio involuntário, o músico cumpriu quatro. Bom comportamento e em 2007 estava cá fora.
Fiquei confuso. Demasiada informação em muitas direcções e pouco tempo. Será possível respeitar o artista e ao mesmo tempo desprezar o homem? Será justo fazê-lo, tendo já ele pago (?) pelo que fez, ainda por cima tendo de viver todos os dias com a culpa de ter morto a namorada? O Universo achou que não e, em 2010, a ex-mulher dele, a quem o Bertrand deixara para ficar com a Marie Trintignant, achou por bem enforcar-se com ele a dormir lá em casa. O cadáver foi descoberto por um dos dois filhos que tinham. Coisa horrível.
Descubro um artigo do Guardian. A jornalista que o escreveu está revoltada: em 2012, Amadou & Mariam, a dupla pop invisual mais conhecida do Mali, convidou-o a participar num disco. No vídeo de um tema chamado 'Oh Amadou' recebem de braços abertos um Bertrand a sair de um comboio, de mochila às costas, como quem chega de uma longa viagem, como quem visa um recomeço. A jornalista do Guardian não aceita: "Nenhuma música bonita do Mali vai apagar a morte de Marie Trintignant", lê-se no título.
Se confuso estava, mais fiquei. Demasiada informação em muitas direcções e pouco tempo. Será possível respeitar o artista e ao mesmo tempo desprezar o homem? Deito-me sem respostas.
5 comentários:
Boa pergunta. Também não sei. Mas o homem morre, e a obra fica... E agora?
Ando a ouvir o tal disco da banda dele, antes do homicídio "involuntário" - quando bates 19 vezes na cabeça da tua namorada, queres fazer o quê?
Sim, se calhar é bom separar as águas. Não conhecemos a história integral de todas as bandas que ouvimos, o que fizeram ou deixaram de fazer os músicos ao longo da vida. Em muitos é casos se calhar é melhor nem a sabermos.
Eu acho que a arte é o reflexo do melhor que há no homem (ou artista). Haverá concerteza dezenas de artistas cujas vidas têm registos igualmente miseráveis. Por isso só resta separar as águas (ou nem sequer saber das suas vidas) e disfrutar do que de melhor eles criaram.
damn. ha naos que adoro essa música, e não sabia destes contornos. fico sem repsostas e a música de repente ficou estranha.
M.
muito estranha. E o álbum onde ela está.. pareço maluco a tentar descodificar sinais e mensagens de coisas más. O problema é que não consigo deixar de o ouvir. Estranho mundo.
Enviar um comentário