Depois do sino moderníssimo da igreja, cujo som lembra um instrumento do Noiserv, a gargalhada do Manuel Zé impõe-se mais do que qualquer outra coisa em Santana de Cambas. O Manuel Zé é pai da Ana Raquel, prima da Fátima (miúda muito gira de Santana), e é daquelas pessoas muito fáceis de se gostar. Numa das saborosas refeições entre sexta-feira e sábado preparadas pela mãe da miúda gira, perguntou-me se queria vinho branco ou tinto e antecipou-se à minha resposta com um "chêo!", seguido de uma valente gargalhada. Na segunda tarde passou por nós de carro com amigos, depois de todos bebermos café na Sociedade; seguia no banco do pendura. Lembro-me de o Luís, genro do Manuel Zé que por estes dias não pode comer sopa porque está de dieta, observar que o passeio do sogro só poderia ser perigoso na medida em que o condutor, o Sebastião, era maluco e não tinha dedos. Não cheguei a perceber se a causa de uma coisa era o efeito da outra.
Na véspera fomos desmoer o almoço para o poço de Santana, onde a miúda gira e as amigas passaram grande parte da infância - poço esse que, segundo a Ana Rosa, está abençoado com "uma vista espectacular sobre o cemitério". A tarde foi animada pelas memórias das meninas e pela cadela da Ana Raquel, que não pára quieta e respira como quem adormece de barriga para cima depois de encher a cara de vinho, ou como um porquinho.
Santana de Cambas é uma aldeia do Baixo Alentejo, concelho de Mértola, e apresenta mais méritos do que se possa pensar. Praticamente não se apanha rede de telemóvel, mas as portas das casas estão quase todas abertas, e as pessoas juntas; não tem multibanco, mas há um café que troca o cálice de aguardente de medronho por oitenta cêntimos; não tem posto médico, mas a paragem do autocarro está protegida com um vidro duplo para que ninguém se constipe; não tem muitos putos, mas encontrei três ainda sem idade para ter bigode a jogar como gente grande à malha. Compreendi, ao deitar-me na segunda noite, vindo do Baile da Pinha, que estava ali uma das povoações mais evoluídas que alguma vez conhecera.
O Baile da Pinha foi animado pelo Tiago Catarino, um acordeonista que parecia mais velho do que era na foto do cartaz de promoção afixado na paragem do autocarro, ou "a casinha", onde passámos algumas horas na primeira noite a beber vinho e a morder pipas. Aproveitei os largos minutos de reflexão que o Tiago Catarino tirava entre as músicas e fui ao pé dele pedir Pink Floyd. Respondeu-me que não seria possível, mas que poderia passar kizomba. Fiz cara de peido e optou-se por um funaná que não convenceu ninguém.
A família da miúda gira recebeu-me da melhor forma possível. Notei que a Dona Odete, a mãe, cozinhava sempre com uma pitada de carinho; que o pai, Armando, tem a poesia na alma; que o irmão, Pedro, é uma enciclopédia de conhecimento técnico com pé de dança. Há também o Armando filho, que tem o sorriso dos bons e chegou no segundo dia com a noiva, a Sónia, e a pequena Sofia, que ainda não tem um ano mas já vê o mundo por uns olhos azuis muito grandes e tem umas bochechas que parecem maçãs, muito rosadinhas, e dança no colo da família e é o "ai Jesus" daquela gente, a par da bebé Francisca, a filha da Ana Raquel e do Luís.
Atirei-me com vontade às ofertas gastronómicas da dona Odete, que foi bastante hospitaleira e passou o tempo a encher-me a boca de doces. De resto, havia sempre muita gente à mesa, como é de bom hábito no Alentejo. Na sexta-feira santa comemos ao almoço um bacalhau com natas que me pareceu gratinado a preceito, e para a sobremesa a mãe da miúda gira colocou-me à frente uma cesta com peças de fruta, mais uma tigela com mousse de café e pratinhos com tarte de natas e bolo de laranja. Trinquei uma pêra, devorei os doces todos e repeti a mousse. É fácil de perceber que no regresso a Lisboa também já tinha a barriga repetida, além de um saquinho que a mãe da miúda gira me meteu na mão, antes de me fazer à estrada, e que trazia um folar com ovo, dois queijos frescos e um chouriço.
De maneira que não está inteiramente certo aquilo que o padrinho da miúda gira disse à saída da Sociedade, onde toda a gente da aldeia parece estar para ficar, na tarde em que o Manuel Zé foi passear com o amigo sem dedos: "Cuidado com o sol alentejano; traz preguiça!". É preciso dizer que, do Alentejo, no que me toca, trouxe amor e enchidos, entre outras coisas, sendo que preguiça não foi uma delas.
O Baile da Pinha foi animado pelo Tiago Catarino, um acordeonista que parecia mais velho do que era na foto do cartaz de promoção afixado na paragem do autocarro, ou "a casinha", onde passámos algumas horas na primeira noite a beber vinho e a morder pipas. Aproveitei os largos minutos de reflexão que o Tiago Catarino tirava entre as músicas e fui ao pé dele pedir Pink Floyd. Respondeu-me que não seria possível, mas que poderia passar kizomba. Fiz cara de peido e optou-se por um funaná que não convenceu ninguém.
A família da miúda gira recebeu-me da melhor forma possível. Notei que a Dona Odete, a mãe, cozinhava sempre com uma pitada de carinho; que o pai, Armando, tem a poesia na alma; que o irmão, Pedro, é uma enciclopédia de conhecimento técnico com pé de dança. Há também o Armando filho, que tem o sorriso dos bons e chegou no segundo dia com a noiva, a Sónia, e a pequena Sofia, que ainda não tem um ano mas já vê o mundo por uns olhos azuis muito grandes e tem umas bochechas que parecem maçãs, muito rosadinhas, e dança no colo da família e é o "ai Jesus" daquela gente, a par da bebé Francisca, a filha da Ana Raquel e do Luís.
Atirei-me com vontade às ofertas gastronómicas da dona Odete, que foi bastante hospitaleira e passou o tempo a encher-me a boca de doces. De resto, havia sempre muita gente à mesa, como é de bom hábito no Alentejo. Na sexta-feira santa comemos ao almoço um bacalhau com natas que me pareceu gratinado a preceito, e para a sobremesa a mãe da miúda gira colocou-me à frente uma cesta com peças de fruta, mais uma tigela com mousse de café e pratinhos com tarte de natas e bolo de laranja. Trinquei uma pêra, devorei os doces todos e repeti a mousse. É fácil de perceber que no regresso a Lisboa também já tinha a barriga repetida, além de um saquinho que a mãe da miúda gira me meteu na mão, antes de me fazer à estrada, e que trazia um folar com ovo, dois queijos frescos e um chouriço.
De maneira que não está inteiramente certo aquilo que o padrinho da miúda gira disse à saída da Sociedade, onde toda a gente da aldeia parece estar para ficar, na tarde em que o Manuel Zé foi passear com o amigo sem dedos: "Cuidado com o sol alentejano; traz preguiça!". É preciso dizer que, do Alentejo, no que me toca, trouxe amor e enchidos, entre outras coisas, sendo que preguiça não foi uma delas.
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