quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Esquerda e Direita

Sugestão de acompanhamento musical:
sapateado, gaita e tambor (experimentem tudo ao mesmo tempo)

Alguns anos de convívio e espionagem social e uma hora de sonhos em transportes públicos dão-me o desplante de, aos 24, julgar que descortino tendências de identidade no espectro direita-esquerda, radicalismos à parte. Nunca fui muito de rótulos mas este caso merece caricatura.
Como tenho para mim que a política é uma área que emana um odor duvidoso, invisto pelo quotidiano comum das nossas vidas. Na certeza de que me engano muitas vezes e frequentemente tenho dúvidas, o auditório gigantesco de três leitores do nosso Castelo é evidentemente livre de não concordar com as propostas adiante formuladas:

O indivíduo de direita ganha mais dinheiro que o de esquerda.
O de esquerda ri-se mais vezes.
O de direita gosta de filmes de terror.
O de esquerda não gosta de chuva.
O de direita quando tira a carta pensa “um dia vou ter um porsche ou um ferrari”.
O de esquerda gostava de tirar a carta e, conseguindo-o, parece-lhe bem um carocha.
O de direita é do Benfica.
O de esquerda diz ser do Sporting mas só conhece o Ricardo (que já lá não está).
O de direita utiliza “eu” em 76% das frases.
O de esquerda não faz a cama há dois meses.
O de direita tem os livros arrumados por ordem alfabética de acordo com os títulos.
O de esquerda não sabe onde eles andam.
O de direita ganha ao de esquerda num sprint de 60 metros, ao snooker e no PES.
O de direita estuda economia e/ou direito.
O de esquerda cozinha bem.
O de direita não sai porque tem uma borbulha na testa: “ Estou engripado/a”.
O de esquerda está engripado, dói-lhe a cabeça e sai na mesma.
O de direita ouve música que lhe entristece ou deixa furioso.
O de esquerda ouve música que não passa na rádio, nem na televisão.
O de direita gosta de ler coisas que existem.
O de esquerda gosta de ler coisas que não existem (para os de direita).
O de direita vai ao ginásio.
O de esquerda gostava de ir, mas aborrece.
O de direita compra revistas de carros ou moda consoante sexo ou inclinações afectivas.
O de esquerda lava a cabeça menos vezes.
O de direita espreita-se ao espelho com maior frequência que o de esquerda.
O de esquerda goza com o bigode do Hitler.
O de direita não acha piada ao do Che Guevara.
O de esquerda tem 45 garrafas de água espalhadas pelo quarto e não sabe porquê.
O de direita adormeceu a ver “uma verdade inconveniente”, em frente ao computador.
O de esquerda bocejou muito no cinema, mas aguentou-se até ao fim.
O de direita tem 756 fotos no hi5 e 99% são de si mesmo, sozinho ou cortando a foto.
O de esquerda diz que tem mas não o utiliza, embora passe por lá regularmente.
O de direita leu e adorou o Código da Vinci.
O de esquerda leu, também gostou, mas roga-lhe pragas se houver pessoas por perto.
O de direita, de verão, sai com camisa aberta até ao umbigo (ou decote) e gola eriçada.
O de esquerda sai de noite com a mesma roupa com que saíu de dia.
O de direita conduz o carro xuning, aquele com luzes de néon e kisomba aos berros.
O de esquerda acha que o Titanic é o pior filme da história dos piores filmes.
O de direita gosta de dançar.
O de esquerda prefere falar.
O de direita é mais bonito/a de noite.
O de esquerda é mais bonito/a de dia.
O De DiReItA eXcReVe AxIm NaS mEnXaGeNx.
O de esquerda foge do Algarve em Agosto.
O de direita é o Algarve em Agosto.
O de direita, no dia de natal, diz que recebeu 27 prendas depois de ir à missa do galo.
O de esquerda, ressacado, diz que o vinho estava óptimo.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Um Quarteto no País das Maravilhas

Sugestão de acompanhamento musical:
The Koln Concert – Keith Jarrett

I

À chegada para a sessão das 21h15, o átrio do Quarteto enquadra-nos numa espécie de América perdida. Lembra um qualquer café da route 66, cheio de vidas que já não são e algum estoico bebendo as suas desventuras ao balcão de um bar. La Niebla en las Palmeras é o filme que escolhemos da amostra de novo cinema espanhol, que o festival audiovisual número-projecta exibe nas salas do Quarteto. O Ricardo, com quem fui, pagou o meu café porque evidentemente levei o cartão jovem e não o do multibanco. Chávena pousada, casa de banho para refrescar a garganta com água, sala 3.

Mas eis que recebemos silêncio e escuro. Alí - num teatro onde a luz sempre brilha no início de um trailer abafado pelas piadas de algum esperto que sempre sonhou em ser comediante - silêncio e escuro. Julgamos que não haverá sessão, a sala tem um aspecto fúnebre e agora, que reparo nisto, também achei os corredores diferentes e aliás tristes. Mas de tristeza não é feita esta história que segue o novelo mágico do Cinema Paraíso. Já diz o povo: sala de projecção aberta, invasão pela certa.
- E a saúde dessa máquina, chefe?
- Nunca deu problemas em 30 anos! E nos grandes centros comerciais é a mesma!
Sorrimos e pedimos para espreitar mais um pouco a janelinha mágica que mergulha na sala dos sonhos e “saiam que o filme vai começar”. É mais a vontade que nós temos de pintar bonito do que, claramente, a simpatia daquele projeccionista. Mas tem de ser como no cinema. São ligadas as luzes baixas e o ecrã exibe uma imagem detida, com stop e play como opções visíveis no canto superior direito.
- Ei, será que..?
- Não, `tás maluco Rui – isso nunca acontece.
E respirei fundo, para entrar cedo no enredo. Li a sinopse, “isto fala sobre fragmentos biográficos de um físico-historiador-fotógrafo que nasceu em 1905 e aparentemente ainda vive: a narrativa repousa em acontecimentos marcantes da sua vida, fazendo uma revista do século XX através do jogo entre o valor da imagem e a memória”, parece interessante.

1) O filme está mesmo em formato DVD: Play
2) É projectada uma dança flutuante com figuras geométricas e um frenezim psicadélico
3) (Hummm mas a sinopse dizia que...)
4) O projeccionista entra pela sala e pede desculpa pelo formato não ser o adequado
5) O filme recomeça, procuro traços da sinopse – zero, mas esta alienação é terapeutica
6) Surrealismo desenfreado, com o rosto de uma mulher metamorfozeado em romãs
7) (Desconfio que este filme.. hummm..)
8) Aterra uma voz à Leonard Cohen, fala em “cavernas verdes, gotas eléctricas”
9) (Continuo a ach...)
10) A pancada cósmica do Syd Barrett era de menino ao pé deste realizador
11) Já não acho nada, levaram-me (deixei-me levar)
12) O filme termina com “A gravidade é uma maldição da qual nos livramos ardendo”
13) O DVD volta ao início, não há sinal de luzes baixas e a viagem recomeça. Ficamos.
14) 10 minutos depois saímos e o projeccionista aproxima-se
15) “Desculpem houve um contratempo e passámos Tira tu reloj al agua – gostaram?”
16) “Sim já que fala nisso apetece-me explodir num cubo mágico habitado por duendes”
17) “Vieram pela sinopse do outro? Amanhã exibimo-lo, estão convidados!”
18) “Ah, `tá tudo - cá estaremos!”

II

E estivemos. No dia seguinte chegámos ao Quarteto com o imaginário preenchido por uma passadeira vermelha, meninas escandalosas com champagne e bolos. Afinal de contas, tínhamos o nosso nome na guest-list (papel rasgado de um bloco A5 e com os nossos nomes escritos em diagonal). Fomos directos ao senhor da bilheteira, que de imediato nos reconheceu. "Façam favor, sala 2!"
Tudo corria, assim, pelo melhor, se eu não tivesse reparado que, ao nosso lado, dois portugueses e uma espanhola trocavam ideias sobre o filme que ainda desconheciam que não iriam ver. Fiz a minha boa acção do dia, ela - natural de Granada (local de rodagem de Tira tu reloj al agua) - lamentou a troca não alertada de fitas (DVD`s, perdão) de que o senhor da bilheteira tinha perfeito conhecimento, e “que va, entonces vamos a ver que ofrese esa Niebla en las Palmeras de que hablas con tanta chispa”.
É um facto que achei a sinopse muito interessante.
Mas ao dirigirmo-nos para a sala, um rapaz com barba por fazer-feita adverte-nos para um ligeiro atraso na exibição do filme face à hora previamente marcada.
- Temos um ligeiro problema com o som, daqui a nada chamar-vos-emos.
- Tudo bem chefe, vamos ao café.
Devolvo ao Ricardo a cortesia do café pago e sentamo-nos. 15 minutos volvidos, o sinal esperado com uma mão a chamar-nos de polegar encolhido e os restantes quatro dedos num vaivém nervoso. Pertencia ao mesmo rapaz de barba por fazer-feita.
- Ah não sei se sabem mas o filme de ontem é o que vai passar hoje.
- Sim já sabíamos e aqui a espanhola de Granada e seus amigos acabaram de saber.
Entramos, e ao sentar espreguiço-me sem maneiras e já nem estranhamos o Play e o filme começa. Uma bela e unida família, era a foto a tirar àquele quadro.
O filme é interessante e colorido, vemos que o surrealismo bizarro de ontem está mais calmo com voz e existem pelo menos projectos de um fio condutor na narrativa. O realizador vive obcecado pela morte, quer fugir dela mas também deste mundo e nunca esqueceu o seu primeiro amor de infância.
É um romântico. Acaba o 4º capítulo, vamos virar para o 5º que se intitula “cor” e..., e..., e nada. A imagem pára.
Pergunto ao Ricardo se aquilo será tipo free-jazz e o realizador teve vontade de parar o filme porque sim de forma a que os intelectuais depois, a discutir o tema em sítios sem vida, lhe chamem arte e ele seja tido como artista - o que não é necessariamente uma e a mesma coisa. Ele acha que eu tenho razão, mas começo a estranhar a coisa e o grupo com a espanhola também portanto saio da sala e chamo o projeccionisa. O anjo surge de imediato, envergando uma camisola que diz “ganhei o óscar vitalício de maior tromba do universo vivo e nem sei como se lembraram de associar o verbo viver ao meu focinho vegetal.”
- Olhe desculpe, o filme está com algum problema - sugiro.
- Não tem nada que ver com isso – atira-me o senhor, com algum carinho
- Não? Então tem que ver com o quê? – devolvo, com cara de nenuco
- Não tem nada que ver com isso – e fechou atrás de si a porta que dá entrada para o seu pequeno império e aliás na minha cara.

Feliz e contente, voltei à sala e presenciei um espectáculo aos trambolhões de erase and rewind que culminava, invariavelmente, na imagem parada relativa ao início do 5º capítulo intitulado “cor”. E não foi senão cerca de dez minutos volvidos que o senhor dos dedos nervosos, com barba feita-por fazer, entrou pela sala e dissertou sobre causas e nem tanto sobre consequências.
- Temos dois dvd`s com este filme, pode ser um problema no leitor de DVD`s porque ele já passou aqui e não deu problemas. Nenhuns, mesmo! Vou tentar outro leitor, aguardem só um momento.
De regresso pouco depois - e com o filme a patinar a preto e branco pelo 4º capítulo que eu e o Ricardo já fazíamos por adivinhar a cada plano repetido - o senhor dos dedos nervosos perguntou quanto tempo demorava cada um e se não valeria a pena tentar que ele chegasse naturalmente ao corte para o 5º, intitulado "cor". Foi aí que não pude deixar de observar que tudo corrreria pelo melhor se o capítulo em questão não se chamasse "cor" e que aquele mesmo plano apresentava, à instantes, uns vermelhos bem arrojados junto à porta que também lá estava - de tez acastanhada e próxima de uma lâmpada de luz baixa que a mim e ao meu amigo me pareceu reflectir um lilás-figo maduro – algo que agora não acontecia.

Após uma pausa colorida de rosto avermelhado para digerir a informação cromática, o senhor certificou-se de que estava a ouvir bem e perguntou-me se o filme estaria a preto e branco, ao que respondi “sim” e ele voltou à pausa colorida do avermelhado rosto.
E assim se manteve. Percebendo a ideia, o Ricardo e eu levantámo-nos e saída ao que logo atrás seguiram de perto os comoventemente bem-dispostos portugueses com a espanhola natural de Granada, que se tinha dirigido ao Quarteto para ver Tira tu reloj al agua, rodado em Granada, e acabava de saír antes do final de La niebla en las Palmeras porque nenhum dos DVD`s funcionava.
Entre o riso e o cansaço, escorregámos em passo-chaplin para a saída, sempre na expectativa de que a pausa colorida do senhor dos dedos nervosos fosse apenas um tranpolim para uma dissertação (que nos parecia adequada) sobre consequências.
Mas quando o senhor da bilheteira nos viu, na expectativa que tal acontecesse, rapidamente investiu que nós não tínhamos comprado bilhete e portanto nada nos haveria a ser ressarcido, ao contrário do que acontecia com a espanhola e seus amigos.
Despedimo-nos deles com um sorriso de quatro euros, um filme bizarro imposto e 2/3 do visado, soubemos ainda qual era a função do tal senhor que mantinha uma pausa colorida e de rosto avermelhado - quando alguém lhe disse “desenrasca-te com os bilhetes, o director do festival és tú” e voltámos para casa satisfeitos com mais uma aventura no Quarteto.


III

Bem, a verdade é que não estávamos propriamente a rebolar no chão e às gargalhadas de mãos na barriga com o sucedido mas eu e o ricardo parecíamos teimar em rir da coisa. Como um amigo de quem verdadeiramente se gosta e, como tal, se acha piada aos defeitos ao invés de se lhes apontar o dedo de censura. E o Quarteto é isso, um amigo de rua, atracado ao seu passado estrutural e experiente na técnica do desenrasca de modo a que o maior número de fitas ou DVD`s inéditos passem à frente dos irrisórios pares de olhos que os testemunham.
Hoje recebi no meu e-mail um terno convite de amizade directamente de Pristina, através de uma pessoa cujo My Space entra com o riso incessante e maquiavélico de vampiros sobre um fundo negro, com bonecos negros e letras a dar para o escuro e que só não eram mesmo negras porque nada se veria. Buh.
Kosovices à parte, a ASAE (ou melhor, asae – como uma amiga minha refere que a entidade em questão deve ser tradada) fechou o Quarteto e a famosa Tasca da Ginjinha, no Rossio. Não haverá mais aventuras, por tempo indeterminado, nem possibilidade de acharmos piada aos defeitos do nosso amigo Quarteto. Lisboetas e turistas tiram fotos a uma fachada sem vida, em vez de pedir a ginja com ou sem fruto. Does PIDE ring a bell?

IV

Se duvidas houvesse de que estive a sonhar este tempo todo, eis senão quando na passada sexta-feira, dia 09 de Novembro de 2007, a TVI encerra o Jornal Nacional com a notícia “David Lynch vai estar em Portugal”. E com honras de directo no Casino Estoril, na sequência da gala de encerramento do festival europeu de cinema que ali decorreu entre os dias 08 e 17 de Novembro.
Tenho ainda marcas no dedo indicador direito das mordidelas que desferi no referido coto, não estivesse eu a planar noutro mundo. E a prova de que tal, de facto, sucedia - é que logo de seguida entrou em cena O Prédio do Vasco, logo seguido do thriller diário de Um Casamento de Sonho. Foi aí que pude respirar fundo, com a consciência de que tudo estava onde esteve.

R.C

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

2084

Sugestão de acompanhamento musical:
Un dernier verre (por la route) - Beirut

Foi numa noite de inverno-verão que a minha avó, sempre disposta a farejar algo que teima em nos escapar entre os olhos, viu uma nave espacial a descer sobre o quintal do vizinho. Como diz um frequentador assíduo da rua Morais Soares, em Arroios-Lisboa, “o dia do juízo final estava aí”. Os “escaravelhos gigantes” que ele vira “ao ler o Apocalypse” - com os quais eu fazia festas de gozo privado enquanto acenava que sim – tinham chegado.

Ou não.

Cinco trolhas saíram da nave e correram na nossa direcção, com vontade evidente de causar estragos. Atrás seguia um senhor baixo, calvo (dir-se-ia que mais volume abundava nas suas sobrancelhas do que propriamente no couro, de tal forma pouco cabeludo) nariz vermelho e achatado. Era o empreiteiro, talvez sexagenário.
Ao ritmo ginasta e autoritário do indicador direito, suado e sempre a varrer a testa alagada, este homem incentivava os trolhas a invadir as propriedades da vizinhança sem que algo os pudesse deter. Estes obedeciam de pronto, irrompendo também pela minha num processo feroz, esmagando tudo o que fosse tomado como obstáculo à sua empresa: “estamos à procura de irregularidades” – esclarecera-nos o senhor empreiteiro.
Ali perto, do outro lado da rua, uma senhora estancou – assustada – enquanto escondia a sua filha-criança por dentro do casaco de cabedal que era longo e que era negro e que lhe corria os contornos das pernas até morder o chão. Carregava em si um pânico visível, que lhe enchera de tal forma os pulmões com ar que, ao dar-se conta de quem ali estava, nem conseguiu devolvê-lo à atmosfera numa só golfada.
Os trolhas continuavam, lavrando tudo o que lhes cheirava a irregularidades - sem sorte até ao instante proposto. Enquanto isso, a senhora dirigiu-se ao meu encontro e questionou-me se aquela equipa "seria de cá". Respondi-lhe que provavelmente não, pelos modos e disposição física aqueles indivíduos de porte loiro e gigantesco deveriam ser de uma zona situada mais a leste, “a Polónia”.
Ao ouvir este nome, o grupo travou o trabalho e a discórdia sobre origens emergiu como traço primeiro e transversal. Uma facção dizia ser de Viseu, outros reclamavam ter nascido em Algoz e o próprio senhor empreiteiro reivindicava que seriam todos de Abrantes, terra onde teria inclusive um café na avenida expo`98 chamado O Gil é gay. Nem me dignei a perguntar por que razão não poderia ter, cada um, nascido num sítio diferente – gente maluca.
Por essa altura, cerca de 30 minutos após a aterragem da nave espacial, os cinco trolhas saíram das cinco casas que compõem a minha vizinhança com zero provas de irregularidades por nós efectuadas. “Reparámos em alguns desvios, mas nada de grande relevo senhor empreiteiro” – disseram ao chegar junto a nós, grupo de vizinhos que rodeava o indivíduo em questão.

Visivelmente satisfeito com o facto, o senhor-do-dedo-indicador-ginasta foi ao bolso direito do seu casaco de flanela azul e tirou um maço de tabaco: em seguida enxutou os seus trolhas de volta para a nave espacial, acendeu um cigarro e sugeriu que estes passassem o resto da noite a investigar irregularidades em pontos-chave da noite lisboeta, como "o Elefante Rosa”. E reiterou, após o anúncio contestado, que iria dormir ali na rua - naquela noite, porque "tinha sentia a falta de respirar num sítio puro como aquele – vasto de poesia selvagem e gente boa que nunca estragou a alma com os demónios que por aí andam a traír a doutrina”.

Os vizinhos dispersaram, a minha avó não e tive para mim que tudo aquilo era muito estranho.
Ainda assim, enquanto espectador batido de fábulas várias mas com estômago, o que me lembrou de momento foi comer uma bela ceia bem regada, pois todo eu era fome. Convidei o senhor do dedo a entrar na minha casa, feita em mil e um cacos regulares.
- Bucha e cervejinha, senhor empreiteiro?
- Venha ela, camarada.
- E eu filho, sou verde!?

R.C

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Serbia

Sugestão de acompanhamento musical:
Bulgarian Chicks - Balkan Beat Box

A viagem foi longa.
Exaustos, o facto de termos chegado foi, por si só, um triunfo – entre nós emergia uma sede triunfal por destruir fígado e petiscar simpatias. Tínhamos prioridade.
As ruas eram frias, piso em barro de lama, sempre noite e as pessoas observavam – estupefactas – o nosso alheamento turístico perante o rebentamento compulsivo de bombas ao redor da cidade. Talvez uma vila, no Kosovo.

O entusiasmo era grande, como convém nestas fugas ao lento assassínio quotidiano chamado rotinatédio. A rotinatédio é um problema com solução e, no caso, passaria por vários motivos que desde logo captaram o nosso interesse. Nem que fosse a análise estética aos habitantes daquela localidade, tão distante de acordo com o sexo de cada um.
Os homens tinham um aspecto carnavalesco, de servente embrutecido pelos modos do seu pedreiro – usavam bonés publicitando bombas de gasolina e um bigode privado de companhia capilar no rosto. Nunca cruzavam o seu olhar com o nosso. Já as mulheres eram vaidosas e deslumbrantes - explodindo de brilho por cada raio de luz artificial que lhes descia sobre o rosto atrevido.

Percebi isso certa noite, em que os tentáculos mortíferos da rotinatédio haviam conseguido agarrar o nosso entusiasmo pela diferença. Uma noite em que o rebentamento de bombas já era visto como acontecimento prioritário, o fígado seria tratado como um menino e petisco de simpatias, nem vê-lo.
O caminho entre Alvor e a Praia da Rocha tinha sido transferido para esta vila, onde rebentavam bombas entre semi-deusas, semi-nuas, (semi-louco senhor doutor). E numa noite em que regressávamos a casa, frustrados pela falta de diversão que aquele local, afinal, parecia proporcionar aos seus visitantes, tomei a dianteira do nosso grupo numa fuga filosófico-amuada pela noite. Nunca vi céu tão pouco estrelado numa noite de lua cheia. Dir-se-ia que não teve coragem para se vestir de gala no andar de cima, quando a cave estava em guerra. (Se assim foi, aqui fica a minha mais sentida vénia).

Vejo um grupo de três raparigas aproximar-se. Chegam e perguntam-me, sem rodeios, se queria ficar com elas. O discurso pareceu-me selvagem, docemente primitivo e a resposta voltou em gesto quando dei a mão a uma delas, com olhos celestiais. Além de me parecerem perfeitamente tresloucadas, partilhavam traços que desde logo o nosso grupo (de pessoas sem rosto) - que entretanto se juntara - rapidamente teve como consensuais: perturbadoramente belas e com uma demanda comovente pelo pénis desconhecido.
E assim foi, logo que entrámos nos carros das meninas que – durante o caminho – percebi serem sérvias. Bem, na verdade fui só eu que o resto do pessoal tinha, de algum modo, o seu transporte. O trajecto foi engraçado e, passados cerca de 30 minutos, chegámos ao cimo de uma colina que me parecia claramente situada noutro planeta. Aí, o reencontro com os meus amigos e um estranho ritual no qual todas as pessoas se dividiam em grupos para ir urinar – encosta abaixo. Como ritual pré-jantar, pensei, ao contemplar uma enorme mesa que ali se encontrava, repleta de simpatias e cheia de potencial para destruir fígado. Quando regressei ao alto da colina, uma convidada inesperada: a Diana Bértolo. Aproximei-me:
- Olá dianinhas.
- Vai à merda!

R.C