Sugestão de acompanhamento musical:
Un dernier verre (por la route) - Beirut
Foi numa noite de inverno-verão que a minha avó, sempre disposta a farejar algo que teima em nos escapar entre os olhos, viu uma nave espacial a descer sobre o quintal do vizinho. Como diz um frequentador assíduo da rua Morais Soares, em Arroios-Lisboa, “o dia do juízo final estava aí”. Os “escaravelhos gigantes” que ele vira “ao ler o Apocalypse” - com os quais eu fazia festas de gozo privado enquanto acenava que sim – tinham chegado.
Ou não.
Cinco trolhas saíram da nave e correram na nossa direcção, com vontade evidente de causar estragos. Atrás seguia um senhor baixo, calvo (dir-se-ia que mais volume abundava nas suas sobrancelhas do que propriamente no couro, de tal forma pouco cabeludo) nariz vermelho e achatado. Era o empreiteiro, talvez sexagenário.
Ao ritmo ginasta e autoritário do indicador direito, suado e sempre a varrer a testa alagada, este homem incentivava os trolhas a invadir as propriedades da vizinhança sem que algo os pudesse deter. Estes obedeciam de pronto, irrompendo também pela minha num processo feroz, esmagando tudo o que fosse tomado como obstáculo à sua empresa: “estamos à procura de irregularidades” – esclarecera-nos o senhor empreiteiro.
Ali perto, do outro lado da rua, uma senhora estancou – assustada – enquanto escondia a sua filha-criança por dentro do casaco de cabedal que era longo e que era negro e que lhe corria os contornos das pernas até morder o chão. Carregava em si um pânico visível, que lhe enchera de tal forma os pulmões com ar que, ao dar-se conta de quem ali estava, nem conseguiu devolvê-lo à atmosfera numa só golfada.
Os trolhas continuavam, lavrando tudo o que lhes cheirava a irregularidades - sem sorte até ao instante proposto. Enquanto isso, a senhora dirigiu-se ao meu encontro e questionou-me se aquela equipa "seria de cá". Respondi-lhe que provavelmente não, pelos modos e disposição física aqueles indivíduos de porte loiro e gigantesco deveriam ser de uma zona situada mais a leste, “a Polónia”.
Ao ouvir este nome, o grupo travou o trabalho e a discórdia sobre origens emergiu como traço primeiro e transversal. Uma facção dizia ser de Viseu, outros reclamavam ter nascido em Algoz e o próprio senhor empreiteiro reivindicava que seriam todos de Abrantes, terra onde teria inclusive um café na avenida expo`98 chamado O Gil é gay. Nem me dignei a perguntar por que razão não poderia ter, cada um, nascido num sítio diferente – gente maluca.
Por essa altura, cerca de 30 minutos após a aterragem da nave espacial, os cinco trolhas saíram das cinco casas que compõem a minha vizinhança com zero provas de irregularidades por nós efectuadas. “Reparámos em alguns desvios, mas nada de grande relevo senhor empreiteiro” – disseram ao chegar junto a nós, grupo de vizinhos que rodeava o indivíduo em questão.
Visivelmente satisfeito com o facto, o senhor-do-dedo-indicador-ginasta foi ao bolso direito do seu casaco de flanela azul e tirou um maço de tabaco: em seguida enxutou os seus trolhas de volta para a nave espacial, acendeu um cigarro e sugeriu que estes passassem o resto da noite a investigar irregularidades em pontos-chave da noite lisboeta, como "o Elefante Rosa”. E reiterou, após o anúncio contestado, que iria dormir ali na rua - naquela noite, porque "tinha sentia a falta de respirar num sítio puro como aquele – vasto de poesia selvagem e gente boa que nunca estragou a alma com os demónios que por aí andam a traír a doutrina”.
Os vizinhos dispersaram, a minha avó não e tive para mim que tudo aquilo era muito estranho.
Ainda assim, enquanto espectador batido de fábulas várias mas com estômago, o que me lembrou de momento foi comer uma bela ceia bem regada, pois todo eu era fome. Convidei o senhor do dedo a entrar na minha casa, feita em mil e um cacos regulares.
- Bucha e cervejinha, senhor empreiteiro?
- Venha ela, camarada.
- E eu filho, sou verde!?
R.C
2 comentários:
Muito bom! Não vejo aí o link para o Pa Lamber! mas tás perdoado :)
Ana
Isto mais parecia a invasão do Iraque, e o empreiteiro é o Bush!
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