As time goes by - Dooley Wilson
Vivi – Avó
Maluquinha – Mãe
Pai – Pai
Miguel – Irmão
Rui – eu
Carlos – Tio
Olga – Tia
Carlitos – Primo-girafa mais velho
Ricardinho – Primo-girafa mais novo
O ar estava saturado. Não me lembrava de uma véspera de natal tão pouco véspera de natal cá em casa, do pouco que a minha memória ainda não foi bebida.
Os fritos, outrora feitos no dia 23, não deixavam qualquer tipo de rasto sensorial. A coisa não melhorava no que toca a embrulhos: estavam reduzidos a menos de metade face a 2006 e inclusive a minha conta já andava a ser consumida há algum tempo. Embrulhá-la-ia a minha mãe, horas mais tarde e perto da ceia. Para fechar o quadro anti-natalício, estavam já as janelas fechadas como acto da tolerância zero que temos para com o entardecer portimonense (seguramente o mais quente da história para 90% do país invernil) e a casa deserta.
A nossa casa na véspera de natal deserta e com as janelas fechadas.
Os motivos eram vários. O meu Pai ainda tinha dois clientes no bar e de lá parecia não conseguir saír; a Maluquinha passara a manhã no ginásio e estava com uma gripe histérica, patologia a que chamarei "esquizofrenia natalícia"; o Miguel tinha uma ressaca dantesca em cima e encarava a descida do quarto para a cozinha como sair à noite no Porto; a Vivi, eterna mãe do nosso natal, acabara de regressar das urgências do hospital Barlavento - com dores e rija que nem o pêro do outro (de acordo com os médicos). Perante tamanho arco-íris, corri ao telefone e liguei ao meu tio Carlos.
- Moce, inda `tas ém Ólhão?
- Tão cabeçude, sim `tô de volta das sapatêras.
- Ótime. Téns Charlie Parker?
- Ténhe.
- Téns Chet Baker?
- Ténhe sim, hóme.
- Téns Gillespie?
- Ténhe éss`s gajes tôds.
- Na os dêx`s ém casa atãum, té lógue.
Tinha bem presente que, até os meus primos começarem a dar pontapés na porta (forma como – carinhosamente - anunciam a sua chegada sempre que vêm cá a casa), haveria um buraco silencioso de 60 e tal quilómetros entre Olhão e Portimão que teria de ser tapado a todo o custo. Aos meus olhos, então, senti que tinha a cumprir uma missão: tornar uma tarde profundamente chata num magnífico e postiço natal. Convenhamos, por vezes ninguém tem mesmo culpa se as coisas não correm como o esperado e então alguém tem de, por e simplesmente, por as coisas a funcionar. Foi o que tentei.
A primeira etapa passou por correr à sala e sintonizar a rádio na antena 3. Pela casa fora, durante cerca de 15 minutos, ouviram-se músicas de natal góticas, techno e de heavy metal. Não era bem aquilo que tinha em mente. O passo seguinte foi invadir a cozinha e ligar a televisão no Cirque du Soleil, não exactamente para que o modo vesgo tomasse conta dos nossos sentidos mas antes para borrifar a palidez daquelas paredes com música cheia de magia. E por fim, ganhei coragem e sentei-me à mesa para ajudar a minha engripada mãe na cozinha (sem o fazer a duas divisões de distância, a despachar como de incompetente costume). Descasquei alhos até o Carlos chegar mais os míudos e se este raciocínio deixar alguém na encruzilhada “ele descascou tantos alhos assim ou é simplesmente um nabo?”, pois que saibam a nobreza do meu carácter ao confessar o que a Maluquinha me disse, logo que ofereci o valor dos meus préstimos: “descasca aí duas ou três de cabeças.”
Pontapés na porta, chegaram.
Para variar muito pouco, os meus tios trouxeram na sua carripana um centro comercial inteiro de prendas e, com a nossa ajuda, despejámos aquilo junto à árvore de natal. E passámos ao jazz.
Ele não se esqueceu do nosso grunhido telefónico e trouxe 5 ou 6 colectâneas com os grandes mestres do bop, mais um disco do Brian Ferry. "Mas que raio estaria aquele mel peganhento a fazer ali..", pensei. A resposta chegou logo que o cabeçudo do Carlos me viu com aquele álbum na mão, olhando feito gnú para a cara de coelhinho abandonado do senhor Ferry, estampada na capa.
Começou por me dizer que tudo ia bem e que havia uma malha espantosa nesse “As time goes by”. Demos corda ao bicho. “Carrega aí na número sete não é esta experimenta a dois mas vai daí acho que é e portanto será definitivamente a quatro embora não seja e tenha acertado ao lado então esquece vamos tomar uma cervejinha e ouvi-lo todo que é muito bom”.
Varremos este disco de covers dos anos 30 a dançar pela casa, e ao perceber que os meus pés se atropelavam com jazz do Brian Ferry, percebi que o natal tinha, enfim, chegado. Estávamos a dançar Brian Ferry. Missão a caminho do sucesso.
Entretanto a cozinha entrara num alvoroço que, pessoalmente, me agrada. A Olga e a Maluquinha de volta da comida enquanto descascavam na vida dos outros, os míudos ajudavam-nas mas não descascavam e o meu pai e o Miguel eram os actores principais de uma trama cuja banda sonora era dançada por mim e pelo cabeçudo do Carlos - com o volume perto do máximo.
Os motivos eram vários. O meu Pai ainda tinha dois clientes no bar e de lá parecia não conseguir saír; a Maluquinha passara a manhã no ginásio e estava com uma gripe histérica, patologia a que chamarei "esquizofrenia natalícia"; o Miguel tinha uma ressaca dantesca em cima e encarava a descida do quarto para a cozinha como sair à noite no Porto; a Vivi, eterna mãe do nosso natal, acabara de regressar das urgências do hospital Barlavento - com dores e rija que nem o pêro do outro (de acordo com os médicos). Perante tamanho arco-íris, corri ao telefone e liguei ao meu tio Carlos.
- Moce, inda `tas ém Ólhão?
- Tão cabeçude, sim `tô de volta das sapatêras.
- Ótime. Téns Charlie Parker?
- Ténhe.
- Téns Chet Baker?
- Ténhe sim, hóme.
- Téns Gillespie?
- Ténhe éss`s gajes tôds.
- Na os dêx`s ém casa atãum, té lógue.
Tinha bem presente que, até os meus primos começarem a dar pontapés na porta (forma como – carinhosamente - anunciam a sua chegada sempre que vêm cá a casa), haveria um buraco silencioso de 60 e tal quilómetros entre Olhão e Portimão que teria de ser tapado a todo o custo. Aos meus olhos, então, senti que tinha a cumprir uma missão: tornar uma tarde profundamente chata num magnífico e postiço natal. Convenhamos, por vezes ninguém tem mesmo culpa se as coisas não correm como o esperado e então alguém tem de, por e simplesmente, por as coisas a funcionar. Foi o que tentei.
A primeira etapa passou por correr à sala e sintonizar a rádio na antena 3. Pela casa fora, durante cerca de 15 minutos, ouviram-se músicas de natal góticas, techno e de heavy metal. Não era bem aquilo que tinha em mente. O passo seguinte foi invadir a cozinha e ligar a televisão no Cirque du Soleil, não exactamente para que o modo vesgo tomasse conta dos nossos sentidos mas antes para borrifar a palidez daquelas paredes com música cheia de magia. E por fim, ganhei coragem e sentei-me à mesa para ajudar a minha engripada mãe na cozinha (sem o fazer a duas divisões de distância, a despachar como de incompetente costume). Descasquei alhos até o Carlos chegar mais os míudos e se este raciocínio deixar alguém na encruzilhada “ele descascou tantos alhos assim ou é simplesmente um nabo?”, pois que saibam a nobreza do meu carácter ao confessar o que a Maluquinha me disse, logo que ofereci o valor dos meus préstimos: “descasca aí duas ou três de cabeças.”
Pontapés na porta, chegaram.
Para variar muito pouco, os meus tios trouxeram na sua carripana um centro comercial inteiro de prendas e, com a nossa ajuda, despejámos aquilo junto à árvore de natal. E passámos ao jazz.
Ele não se esqueceu do nosso grunhido telefónico e trouxe 5 ou 6 colectâneas com os grandes mestres do bop, mais um disco do Brian Ferry. "Mas que raio estaria aquele mel peganhento a fazer ali..", pensei. A resposta chegou logo que o cabeçudo do Carlos me viu com aquele álbum na mão, olhando feito gnú para a cara de coelhinho abandonado do senhor Ferry, estampada na capa.
Começou por me dizer que tudo ia bem e que havia uma malha espantosa nesse “As time goes by”. Demos corda ao bicho. “Carrega aí na número sete não é esta experimenta a dois mas vai daí acho que é e portanto será definitivamente a quatro embora não seja e tenha acertado ao lado então esquece vamos tomar uma cervejinha e ouvi-lo todo que é muito bom”.
Varremos este disco de covers dos anos 30 a dançar pela casa, e ao perceber que os meus pés se atropelavam com jazz do Brian Ferry, percebi que o natal tinha, enfim, chegado. Estávamos a dançar Brian Ferry. Missão a caminho do sucesso.
Entretanto a cozinha entrara num alvoroço que, pessoalmente, me agrada. A Olga e a Maluquinha de volta da comida enquanto descascavam na vida dos outros, os míudos ajudavam-nas mas não descascavam e o meu pai e o Miguel eram os actores principais de uma trama cuja banda sonora era dançada por mim e pelo cabeçudo do Carlos - com o volume perto do máximo.
Não demorou muito até a Vivi irromper pela sala adentro, pregando que "não admitia música de putedo". O Miguel acabara de lhe dizer que música "clássica" tinha essa matrícula atrelada e a Vivi encavalitou-se no Renault (canadianas) e rebentou em cima de nós. Que não admitia "que se ouvisse putedo" e aliás seria música pimba a salvação. Todos nós sabemos que o Miguel se estava a meter com ela, mas a minha avó é muito querida e não percebe as coisas. Eu e o Carlos estávamos a bater o pé e assim continuámos, rimos muito e corremos atrás dela para lhe dar beijinhos e despentear o cabelo novo.
A Maluquinha acha-me esquisito. Desde que saí de casa rumo a estudos de boa vida em Lisboa que ela me acha cada vez mais esquisito. Naquela noite era porque oiço jazz e não pagaria para ver Scorpions. A Olga, mulher do Carlos, foi para Lisboa uns dias antes com 3 amigos para ver os Scorpions e chegou a casa às 04h00 - com o Carlos a hibernar cheio de fé. O meu tio chama-lhe lustrosa e andam sempre à zaragata mas está tudo muito bem até – aparências aparte.
O Carlos acha que o que levamos da vida são prazeres como os de comer, beber e “cobrir”. Este último, vontade exacerbada de um amigo seu nos últimos tempos e denunciada pelo próprio Carlos à mesa, seria, de acordo com a minha avó, bem melhor que “ganir”. E com vontade de “ganir” estava a minha tia Ana Paula, o que a minha mãe ficou a saber quando falou ao telefone com ela para desejar bom natal à família que está em Espinho. "Ganir fazem os cães e nós não somos animais que isso não tem jeito nenhum"! – disparava a Vivi enquanto defendia que a vontade de "cobrir" do amigo do Carlos “tinha mais preceito” que a de “ganir”.
O debate sobre jazz continuava entre mim e o Carlos, que tinha toda a vontade em me apresentar um tal combate no Savoy Hotel entre o Chuck Webb e um amigo de sorrisos jazzísticos. Não encontrámos coisa nenhuma que se parecesse sequer com isso.
O pessoal do jazz nesta altura sorria muito, é qualquer coisa.
Finda a ceia e após uns fantasmas mudos terem planado sobre a nossa mesa, o Carlos perguntou que se bebia naquela casa. 10 segundos volvidos já eu lhe trazia uma bela amarguinha de 17 anos que tínhamos ido buscar à cave fazia poucos dias. E que não sabia lá muito bem. Até acho que podia ter doenças. Mas bebemos sem hesitar até que começámos a falar de traques.
A Maluquinha tem um trauma com traques, porque quando era menina dormiu muitas vezes entre familiares de idade e que perfumavam. Ela não gosta que perfumem e também não gostou quando a Vivi corrigiu que não era traque mas sim peidinho.
Muito tonta, a minha mãe. Fica bêbada com dois golos de vinho. Mas isso só dura 10 minutos. São 10 minutos de National Geographic. Não consigo explicar melhor.
O Ricardinho já é escritor. Ou pelo menos, assim pensou a Vivi quando pelas 02h – mesmo antes de descer aos seus aposentos – teve um encontro imediato com “A boca do Inferno”, do Ricardo Araújo Pereira e dirigiu-se-me num doce “Oh filho `tá aqui o nome do Ricardinho, ele já escreve?” O Carlos regressara, entretanto, a um tintol São Domingos da Bairrada e foi esticado no sofá que aterrou num sono profundo, após uma extenuante luta de cócegas com o Ricardinho. Seriam, talvez, 23h37. O meu tio adormece sempre antes da 00h00 na noite de natal. O irmão mais velho do Ricardinho é o Carlitos e está triste com as prendas que recebeu da mãe. Tem 16 anos e eu também já os tive pelo que, ao reparar no facto, solidarizei-me com o moço e disse-lhe “`tás na idade parva. Também já passei por isso, hás-de sobreviver”.
O Carlos acha que o que levamos da vida são prazeres como os de comer, beber e “cobrir”. Este último, vontade exacerbada de um amigo seu nos últimos tempos e denunciada pelo próprio Carlos à mesa, seria, de acordo com a minha avó, bem melhor que “ganir”. E com vontade de “ganir” estava a minha tia Ana Paula, o que a minha mãe ficou a saber quando falou ao telefone com ela para desejar bom natal à família que está em Espinho. "Ganir fazem os cães e nós não somos animais que isso não tem jeito nenhum"! – disparava a Vivi enquanto defendia que a vontade de "cobrir" do amigo do Carlos “tinha mais preceito” que a de “ganir”.
O debate sobre jazz continuava entre mim e o Carlos, que tinha toda a vontade em me apresentar um tal combate no Savoy Hotel entre o Chuck Webb e um amigo de sorrisos jazzísticos. Não encontrámos coisa nenhuma que se parecesse sequer com isso.
O pessoal do jazz nesta altura sorria muito, é qualquer coisa.
Finda a ceia e após uns fantasmas mudos terem planado sobre a nossa mesa, o Carlos perguntou que se bebia naquela casa. 10 segundos volvidos já eu lhe trazia uma bela amarguinha de 17 anos que tínhamos ido buscar à cave fazia poucos dias. E que não sabia lá muito bem. Até acho que podia ter doenças. Mas bebemos sem hesitar até que começámos a falar de traques.
A Maluquinha tem um trauma com traques, porque quando era menina dormiu muitas vezes entre familiares de idade e que perfumavam. Ela não gosta que perfumem e também não gostou quando a Vivi corrigiu que não era traque mas sim peidinho.
Muito tonta, a minha mãe. Fica bêbada com dois golos de vinho. Mas isso só dura 10 minutos. São 10 minutos de National Geographic. Não consigo explicar melhor.
O Ricardinho já é escritor. Ou pelo menos, assim pensou a Vivi quando pelas 02h – mesmo antes de descer aos seus aposentos – teve um encontro imediato com “A boca do Inferno”, do Ricardo Araújo Pereira e dirigiu-se-me num doce “Oh filho `tá aqui o nome do Ricardinho, ele já escreve?” O Carlos regressara, entretanto, a um tintol São Domingos da Bairrada e foi esticado no sofá que aterrou num sono profundo, após uma extenuante luta de cócegas com o Ricardinho. Seriam, talvez, 23h37. O meu tio adormece sempre antes da 00h00 na noite de natal. O irmão mais velho do Ricardinho é o Carlitos e está triste com as prendas que recebeu da mãe. Tem 16 anos e eu também já os tive pelo que, ao reparar no facto, solidarizei-me com o moço e disse-lhe “`tás na idade parva. Também já passei por isso, hás-de sobreviver”.
Ele ficou pior.
Tenho a garganta armada em parva. O Ricardinho parece uma girafa, cresce que não pára.
- `Tás pequeno! – atiro-lhe
- Tenho onze – devolve-me
Yabadabadu.
Tenho a garganta armada em parva. O Ricardinho parece uma girafa, cresce que não pára.
- `Tás pequeno! – atiro-lhe
- Tenho onze – devolve-me
Yabadabadu.
11 comentários:
parece divertida a tua seia de Natal...mas...quando todos adormeceram nao foste sair? À 1h estava eu a ver Murdering Tripping Blues no Maxime...saudades de um concertozinho bom:)
beijinhoooosss
Mas que seia de Natal.. ou será da escrita..? Bom Ano!
Parece-me um natal típico para este rabbit!
(nota: fim de texto genial.)
Moce, começaste a trabalhar e na dizes nada? Punheta...
Adorei o teu natal... mas oh pah tens um jeitinho pa crianças...
moce, que quadro castiço que aqui pintaste; e que rasgado sorriso me botaste na cara :D
Ah,apanhei-te!Vou ler c atenção e depois logo te dou a minha opinião psicológica...
AQUI HÁ GÉNIO!!!!!!!!!!
Que texto delicioso e rico.
De sons, cheiros, emoções, risos, sonos, traques =)
Sem brincar, os teus textos viciam. Queremos mais, puulease.
«o que é que eles érin? érin fantasmas mudos» =)
Todo o carinho que caiba dentro de um abraço.
Té
oh...a vivi! muito eu gostava de conhecer a querida vivi. grande abraco e beijinhos para ela, dois intervenientes de uma das melhores seias!
aaa... eu não queria armar-me em esperta, mas tenho uma compulsão ortográfica. É "ceia" e não "seia"...certo?
Ahh que todos os dias te seja natal!
ahahah adorei...aliás adorei o diálogo algarvio..coisa phyna ;)
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