Já te dou atenção daqui a pouco, prometeu, estou a tripar.
Deitada na cama ao contrário, com as longas pernas nuas flectidas de encontro à parede quase aquecida pelo primeiro sol da manhã, camisa de homem e pele nos lençóis amarrotados, cabeça sem almofada, ela respondeu sem mover os olhos das unhas vermelhas que tanto tempo lhe levaram a pintar na véspera, logo após o marido lhe telefonar a dizer que pela frente teria dois dias de viagem em negócios.
Os anos parecem cada vez mais curtos e eu continuo a cantarolar por entre ruínas e corpos moribundos no chão e carros a arder. Qualquer dia vou ficar com dúvidas, pensar duas vezes, precisar de ti. Teremos problemas.
Ele reparou pela primeira vez nas marcas de desgaste que ela tinha em ambos os joelhos e no conformado e vertiginoso olhar de alguém que desistiu. Desconversou e deu o último bafo no charro lento.
Ela não se distraiu e concretizou, monocórdica, baixinho.
Talvez te deixe.. é isso, talvez não mais regresse a esta espelunca que nem tua é se o meu marido me fizer desmaiar de gozo quando regressar a casa, deixo-te de vez se aquele gordo depravado e pérfido chegar a casa e, enfim, agarrar-me sem perguntas sobre o meu fim de semana, saudades, o tempo, os meus pais, os meus nervos, vou dedicar-me por inteiro àquele molde escarrado da estupidez para sempre suado e arrogante que tem a sorte de saber como tratar uma mulher se se der o caso de que me consiga tirar as dúvidas sem abrir a merda da boca, que dali até as moscas fogem.
(Ele simulou colocar uma bala num revólver imaginário, direccionou-o contra ela e fingiu premir o gatilho duas vezes) Pá! Pá!, isso é amor. Que fazes aqui?
Não sei.
Vai. Tu e eu sabemos que voltas.
Estás muito lúcido para quem ainda está a tripar. Bom para ti: terás recordações fresquíssimas da manhã em que me viste ir embora e nada fizeste.
Ele concentrou um sorriso disfarçado no canto dos lábios e franziu o sobrolho.
Ela levantou-se e ouviu como uma, duas portas bateram sem estrondo atrás de si. Não regressou.