Ela observava-nos. Duas vezes a nossa idade, vida artificial em redor dos olhos amargurados, borracha das trincheiras de pele, fazia-se acompanhar de uma ausência de homem, alguém que não estava bem ali, um projecto de qualquer coisa por acontecer. Observava-nos e sorria o sorriso malvado de quem conhece todos os recados que os corpos transmitem. Dos olhos senti-lhe uma atenção de voyeur de bem com a sua condição, de pulso tranquilo. Uma serenidade que perturba e fascina. Mais do que nos ler, senti que nos via. Que entrava em nós e confirmava os planos em sintonia. Que disso retirava um gozo descontrolado. Doentio. Bom. Fiz por manter o entretenimento. A todos agradava. Terá visto em mim quem nela viu em tempos o suficiente para a seduzir. Lembrou-se de se sentir desejada. Ao meu lado via-se num espelho com metade do tempo. Por vezes tropeçava num detalhe do seu mundo próximo, o telemóvel, o copo de vinho, a saia rebelde, mas logo a nós regressava, a nós que era o nada fitado com um propósito maior. Levantámo-nos. Percorreu o corpo dela num jeito de urgência e esticou as fontes de espanto. Denunciou as trincheiras em redor dos olhos. A amargura que nenhuma vida artificial pode esconder. Sorri-lhe até sairmos de cena.
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