Se havia uma coisa de que sempre me orgulhava era de raramente ter tido que visitar dentistas, exceptuando uma vez em que tentei pular o portãozinho lá de casa que dá para o churrasco, desafiado por um primo de Espinho. Na altura o meu primo disse, "vai tu primeiro", e eu fui, valente, mas perdi metade de um dente da frente à custa de um salto imperfeito. Já o meu primo deixou-se estar.
Claro que tinha problemas dentários como qualquer um, e a prova é que andava a comer há um ano para o lado direito devido a dores absurdas no canto esquerdo do queixal de cima. Era o bom e o bonito sempre que ia lá parar algo gelado ou mastigava sem querer. Acontece que o meu plano de sobrevivência falhou, e, compreendi, após alguns dias a proteger a bochecha esquerda por fora, como se isso a sarasse por dentro, que não iria conseguir ser dono do meu destino, concretamente do destino dos meus dentes. A dor que durante um ano ia e vinha tornara-se mais intensa do que eu podia suportar. Dentista.
Aproveitando a minha ida à terra de fim de semana, o meu irmão marcou-me consulta para uma clínica ao pé de casa - é tudo ao pé de casa quando estou em casa -, e lá me dirigi às dez da manhã. O dia estava abafado e a cidade cheirava a cão molhado. Chovia. Um dia perfeito, diria o meu irmão.
O meu nome começou por surpreender a recepcionista da clínica onde entrei. "Rui Coelho? Não temos aqui nada com o seu nome." Sugeri-lhe que revisse a lista de marcações. Nada. Foi aí que a recepcionista resolveu o impasse e disse-me: "Pode acontecer que você esteja na clínica errada. Aqui ao lado há outra. Passe por lá."
Já na clínica certa fui observado por uma dentista brasileira, a qual notou que o meu siso de cima do lado esquerdo teria de sair do sítio, e sem demora, de maneira que chamou um colega para tratar do serviço. O momento ultrapassou-me. Quando dei por mim já tinha um senhor de bata verde debruçado sobre mim, à bulha com o filho da puta do meu siso.
Percebi que a extracção não estava fácil quando o senhor da bata verde, também ele brasileiro, pediu um raio x à assistente e declarou: "há aqui uma anomalia". Explicou-me que não conseguia tirar as raízes, que elas não lhe permitiam arrancar o dente como deve ser. À falta de melhor alternativa, resolveu levar-me um bocado do osso. Cozeu-me, receitou-me um antibiótico e um anti-inflamatório e mandou-me para casa.
Percebi logo que tinha o fim de semana estragado e precipitei-me num profundo estado de saudade antecipada. Aproveitei para me despedir dos petiscos e vinhos que naquele fim de semana nunca chegaria a provar. "Merda", pensei.
No primeiro e no segundo dia variei a minha alimentação entre gelado da Olá de chocolate, gelado da Olá de baunilha e gelado da Olá de morango. Numa das refeições arrisquei uma sopa; noutra, perdi a cabeça e atirei-me a uns ovos mexidos. Estava com pouco ânimo e foi especialmente bom que o Sporting tivesse ganho em Braga. No golo da vitória, do Cédric, deixei escapar um grito - "Golo!" - e de pronto joguei a mão à bochecha esquerda. Tomara que não tenha feito asneira, pensei. Como não notei alterações ao espelho, excepto o abcesso que entretanto me crescera, respirei fundo e preparei-me para uma noite descansada.
Mas fosse pelo efeito retardado do grito no golo do Cédric, ou por ter vociferado a 'Abel' dos The National enquanto dormia, o certo é que acordei de madrugada com a boca feita num lago de sangue.
Contei o caso ao meu irmão e ele sugeriu que voltasse a adormecer e esperasse até de manhã para decidir o que fazer junto dos meus pais. Alimentei a esperança de adormecer e acordar só com saliva na boca; tive a fezada de que, se quisesse muito, o sangue desaparecia durante o sono. Não aconteceu. Era mesmo só sangue que lá tinha.
Ao domingo é mais difícil encontrar quem nos acuda, mas ainda há gente boa. Depois de muito ligar, em vão, para o número de emergência da clínica onde me arrancaram o filho da puta do siso, o meu pai lá se lembrou de uma dentista que por acaso andou na mesma escola que eu e até tem uma clínica na terra.
Ela atendeu o telefone e, apesar de ter a clínica fechada, abriu-a só para me tratar. Ao observar-me, disse-me que os pontos ainda estavam no lugar, mas que da zona tinha saído um coágulo. De modo que me abriu de novo para ver o que se passava, felizmente sem nada que a preocupasse, e voltou a cozer-me. Saí da clínica com a parede esquerda da boca a lembrar a Guerra das Trincheiras, mas não sangrava. Era o mais importante. Também recebi uma nova medicação que decerto superaria as coca-colas do Sanchez. "A outra que te receitaram é para crianças", disse-me.
Fui para casa. Comi uma sopa. A hemorragia voltou. Telefonema à dentista. Regresso à clínica. Voltou a mexer nisto. Aconselhou-me a tentar estancar a hemorragia com uma saqueta de chá preto. Deu-me uma carteira de um medicamento que me disse para tomar apenas e só em último caso. A hemorragia não estancava com a saqueta. Tive de tomar a carteira. Estancou.
No dia seguinte voltei a acreditar num mundo melhor e até fiz um esparguete à bolonhesa com a minha mãe. Era vê-la ainda de braço ao peito a ralar cenoura enquanto eu cortava alho francês com uma cara que pareciam duas. Entretanto o abcesso já desinchou bastante. Aos poucos vai ao lugar. No meio disto tudo o mais chato é mesmo a possibilidade, identificada por um raio x, de ficar com sinusite. E o certo é que já ando com umas dores de cabeça que me lembram uma vez em que fui ver um concerto dos My Bloody Valentine e confundi tampões para ouvidos com gomas.
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