I
Foi na sexta-feira em que o país desceu ao Algarve que, saíndo do trabalho, dirigi-me à estação do Oriente e entrei em contra-mão, rumo ao Minho. Objectivo: reviver cá dentro, de certo modo, os oitavos meses em que acelerei lá fora, de comboio, nos últimos dois anos, e trazer uma história para contar. Pelo meio haveria o festival M.U.N.D.O (Mais Uma Noite De Ócio), em Viana do Castelo, e uma anunciada visita a um “sítio”, em Paredes de Coura, de onde o Sr. Carlos - dono da cervejaria onde venho jantando duas a cinco vezes por semana nos últimos quatro anos -, e família são naturais, e em cuja casa seria tratado com privilégios de realeza rural.
Posto isto, nada faria prever que, já dentro do comboio, nos assentos imediatamente atrás do meu, um casal levasse ao colo duas crianças que imitaram ininterrupta e perfeitamente o bezerrar do Sapo Maluco durante as três horas de viagem que nos levaram de Lisboa ao Porto; a acutilância dos pequenos era tal que tudo tive de ouvir, ainda que derramasse – som no máximo – para os ouvidos, entre outros albúns, o “Time Out”, artefacto da Idade Média produzido pelo quarteto de Dave Brubeck, e “Viva la Vida or Death and all his Friends”, peixinho fresco dos Coldplay.
Mais: ao que a nós, restantes passageiros daquele comboio, parecia uma bárbara violação dos direitos humanos, nunca menos do que um atropelo aos preceitos fundamentais para o efeito proclamados na Carta das Nações Unidas, correspondia a boa disposição dos pais que, emocionalmente inválidos para avaliar o que quer que fosse devido às circunstâncias sanguineas, achavam um piadão àquilo.
Recuperando os Agostos de 2006 e 2007, entendi que a cura poderia estar ali perto, no bar. Suficientemente longe, porém, para que a goela do Sapo Maluco e seu legado não me atormentassem mais os tímpanos. E pudesse beber pela vida. Mas como os tempos são novíssimos em tudo o que me toca, e respectivos rins, não movi o traseiro; aguentando o posto, cheguei ao Porto em dia de feriado com a audição parcialmente inanimada, e o “Crónica de uma Morte Anunciada” (G.M.M) despachado.
Dentro da minha cabeça, a distância entre a “inbicta” e Viana do Castelo seria percorrida num pequeno tiro de carabina, a dez metros; a realidade, porém, é que o Ricardo – meu colega de casa, natural de Antas, Esposende, que me foi buscar -, ainda fez tremer o seu estoico Corsa 1000 o tempo suficiente para que chegássemos a uma hora em que o jantar já teve de ser caseiro, dado que visitaríamos o segundo dia (e último dia) do M.U.N.D.O naquela noite, furtando-nos a gastar trocos num tasco e à companhia prematura dos manos Iglésias. Não sei se ele, o Ricardo, chegou a notar, mas foi para um “jantar caseiro em Antas, Esposende” que deixei de ir a casa no único fim-de-semana em que não houve Linda-a-Velha no meu mapa desde 07 de Julho.
Entre beijos de conhecer e bitaites de voltar, fomos servidos: empurrado por o que poderia ser (ou não) um Outeiro da Águia tinto chegou uma caldeirada de cabrito, logo seguida por outro assado. Antes, queijo fresco e presunto dignos de um espirituoso conto de fadas. A minha assumida hipocrisia em, simultaneamente, consumir matéria animal e não poder ouvir falar no processo que a leva à mesa elevou-se a um controlado choque quando, a dada altura, uma amiga do Ricardo, arregalando os olhos, revelou em tom febril o quanto adorava “ver ganir” um porco depois deste ser atravessado. E quando me informaram que o papá bode do cabrito que estávamos a comer tinha nome, era o Brás, senti comichão durante quase seis segundos. Depois comi o resto que nem um primata esfomeado.
Antes de nos dirgirmos a Viana do Castelo, onde encontrariamos os manos Iglésias, sentados, a beber cerveja ao som dos locais Madame Godard, comi um “31” elaborado pela Andrea: a irmã do Ricardo pincelou a chocolate o interior de vários copos de plástico, recheados de uma sobremesa feita de gelatina e morango, com a idade do primo. Começava da melhor forma a minha nobre intenção de estrangular a dieta anti-cálculos renais a que me venho auto-sujeitando neste renovado verão.
II
Não seria incrivelmente sedutor imaginar “Rak Song”, faixa do recente “Lusitânia Playboys”, do duo português Dead Combo, como fundo sónico de um silencioso tiroteio num saloon do Louisiana, captado pela câmara lenta de Tarantino? Não seria tenebroso pensar que o realizador norte-americano não montaria essa cena sem ter o cuidado prévio de serpentear entre tipos que tilintam cruzes ao pescoço, à medida que agarram máquinas de pinball pelas orelhas com a doçura de quem as espanca?
Precisando de ajuda, aqui a têm: Tó Trips e seu calcanhar nervoso, a desafiar, sapato de bowling, calça à boca de cáuboi com bordado em forma da pentagonal mitra de bispo, padrão roxo sarapintado a romãs escanzeladas e cartola como telhado das ideias, onde, curvado, e sob um ninho de moribundos cucos, desenha paisagens de Viana do Castelo ao faroeste.
Não há como fugir: estes são os Dead Combo (a dada altura Pedro V. ri-se, há testemunhas), arrastaram-se – arrastaram-nos – até ao festival M.U.N.D.O - amálgama de projectos de raiz inteiramente portuguesa para, em fusão com outros géneros musicais, cantar a novidade no Castelo de Santiago da Barra, onde recentemente decorreu o Anti-Pop -, querem explicar-nos qualquer coisa.
“Esta música é uma verdadeira cáuboiada que já deu milhares de dólares”, revela Trips, entre uma “Sopa de Cavalo Cansado” e “Cuba 1970”. A referência é sugestiva, e do público pedem-lhe que imite "O assobio" de Vasco Santana no “Pátio das Cantigas” - o que foi imediatamente concretizado. A festa dos corpos lentos estava lançada.
Começa a chover. Haja chavão: ver Dead Combo à chuva é esperar que, algumas dezenas de minutos antes, a Deolinda não fizesse encore com “Fon Fon Fon”, regressando ao palco sem que alguém o reclamasse. Ao meu lado, a única pessoa que acompanhava aquele nevoeiro da América profunda com palmas era um dos manos Iglésias, o Jorge, e fazia-me recuperar o nome da Ana Bacalhau, e todo o valor que nele repousa, uma vez a cada cinco minutos durante o concerto dos Dead Combo.
Num festival testemunhado por aproximadamente três centenas de pessoas, éramos quatro. Seriam menos aquelas que, dois pares de horas mais tarde, permitir-se-iam dançar ao som de Balkan Beats (DJ Set) sob um céu minhoto em torneira aberta, depois de uma espera que excedeu facilmente os três quartos de hora; eu, naturalmente, era um deles.
O milagre sónico dos balcãs chegou quando uma das quinze pessoas que entretanto subira ao palco resolveu o problema da inevitável falha de energia que, além de baralhar as ideias da mesa de mistura já preparada para abanar esqueletos, interrompeu um solo do (agora) cheinho Luis Varatojo, ontem cabecinha dos Peste e Sida e hoje a dedilhar a guitarra portuguesa d’ A Naifa, que fechou as actuações de bandas no festival. Mas eis que tropeço na ternura do DJ: por mim solicitado a emprestar uma das várias toalhas que tinha ao seu dispor, limitou-se, enxuto, a devolver-me sorrisos. Acto contínuo: regressámos a casa (eu queria mesmo era uma toalha, para me secar).
Note-se o concerto de alma cheia oferecido pel’ A Naifa, quarteto de cumplicidades liderado pela vocalista Maria Antónia Mendes (Mitó), que acasala fado e música electrónica entre letras sem saudade; vieram apresentar “Uma inocente inclinação para o mal”, terceiro disco do projecto e, sem carregar demasiada culpa aos ombros, retiraram um grandioso naco de brilho – estamos no Minho, em Agosto, pelo que só poderia estar ali quem verdadeiramente quisesse, antentando a que chovia - o que terá ajudado a Deolinda a portar-se bem; esta, note-se, borrou por si mesma a pintura de uma actuação sem mácula - final em apoteose que o hino da nação, "Movimento Perpétuo Associativo", de Zé Mário Branco, sempre propicia -, até ao dito e prostituído encore.
Motivo: Ana Bacalhau dizia-se sem voz para entoar “Eu tenho um melro” quando, entre nós, público, já estava tudo bem; não era preciso mexer mais.
III
Ao segundo dia foi a urbana Esposende, primeiro, e a profunda Chão, depois. Na cidade banhada pelo Atlântico e atravessada pelos rios Cávado e Neiva, e depois de um tardio e caseiro “polvo à lagareiro” ao almoço, entendi que a natureza continua a delimitar o seu território das formas mais admiráveis, sendo que algumas azinheiras podem levar esta ideia mais longe do que imaginamos. Aprendi igualmente que existem megafones a cada esquina derramando uma entusiasta música de vidros abertos; é verão, e os cidadãos merecem.
Era uma suspeita, mas verifiquei igualmente que Viana é Lima, que por sua vez é chuva na maior fatia do ano, e paira sê-lo nas restantes horas. Concretizámos a ideia ao visitar de pescoço joystick a bela Ponte de Lima, vila mais antiga do país que se parece com uma pequenina Praga, pelo empedrado, riqueza e ponte (não é a Carlos pela decoração, largura e comprimento, mas podia ser pela fragilidade da memória – privilégio a que nem todos podem aceder). Àquela hora, o Lima era um santuário de paz, navegado por casais em flor, devagar, como quem não quer chegar, e nós um pontinho negro com mil cavalos rumo à Serra de Arga, no Alto Minho, onde encontraríamos a moradia do Sr. Carlos numa localidade que, bem a propósito, dava pelo nome de “Chão”.
IV
Com vista para a natureza bruta e rodeada de cruzes a nascer por geração expontânea em sinuosos caminhos de cabras, a casa que procurávamos revelou-se um achado para o Sr. Carlos, na medida do enorme terreno que comprou a um preço imberbe, da cuidada decoração de interiores, do pouco cheiro a mofo que se fazia sentir - a casa é ocupada dois meses por ano-, e na da nossa traça que, da ânsia por ser presenteados com petiscos regionais, era já considerável.
Fomos recebidos com um vinho verde branco da casta Alvarinho, que o Sr. Carlos não parou de elogiar durante quatro horas, em registos progressivamente mais atenciosos e arrastados. Receberam-nos a Carla, filha da Dona São, esta, esposa do Sr. Carlos, o próprio, e a nora - ainda que não tivessemos notado qualquer som revelador da sua presença, pelo que poderia muito bem tratar-se de um amicíssimo holograma -, com a filha.
A entremedada e o frango no churrasco chegaram já na companhia da segunda verdinha, com a Dona São a censurar o marido de esguelha, a Carla a ralhar com a filha da nora, esta muito atenta à nossa esfomeada linguagem corporal, e o Sr. Carlos a enxotar-nos para a sala, de modo a testemunharmos a final da Supertaça entre Porto e Sporting de forma mais precisa.
Levantou-se a mesa para a cozinha, ficaram os homens - e o vinho - na sala. Levantou-se o Sr. Carlos em busca da terceira, e levantámo-nos nós a ulular de entusiasmo pelo primeiro golo do Yannick Djaló. Regressou o Sr. Carlos, a louvar a dimensão da sua garagem – "cabem lá seis carros", garantiu-nos, sem nos conduzir à ciência – e deixámo-nos convencer a acompanhá-los rumo a uma festa em Sapardos, freguesia de Vila Nova de Cerveira; em 2001, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, Sapardos tinha 396 habitantes.
Dobrando esse número, e acrescentando a big band e fenómeno local Função Públika, temos a Festa de Nossa Senhora de Fátima, para onde nos dirigimos com modos espirituosos após a vitória do Sporting confirmada pelo segundo do Djaló; tombando estrada para depois a escalar, fintando as vertigens do escuro e o motor do Fiat Punto Qualquer Coisa conduzido por Colin McCarlos, chegámos a Sapardos.
Nos 365 dias de um ano normal, trata-se de uma freguesia que vive do pequeno comércio, da transformação de madeira, agricultura e pecuária. Entre 15 e 17 de Agosto, porém, junta-se aos pares e vai bailar aos ritmos da cerveja, do vinho carrascão, da bifana (aqui a A.S.A.E nem cheira), do bigode, e que tais – tudo a que temos direito numa festa popular. Inclusive a música. Não esperávamos, seguramente, é que a sofisticação neste campo fosse uma evidência tão consistente entre os melómanos de Sapardos.
Os Função Públika são uma banda de onze elementos, provenientes de metrópoles tão díspares como Buenos Aires, Chaves ou Tavira. Apresentam-se no seu endereço electrónico como uma “banda diferente”, e dão-nos as boas vindas a um “mundo”, o deles, onde “luz, som e música” são o isco para cavarmos a cova mais fundo na demanda da sua obra.
Naquelas duas horas, os Função Públika abordaram inicialmente um dos nove mil “hits” de Tony Carreira, logo encarnando cinco ou seis malhas consecutivas do que de mais hard rock os Queen compuseram; depois recuaram nove e ficou exposto o juntinho dueto Telma Correia e Luis Mendonça, que atacou “We’ve Got Tonight”, fazendo as vezes de Kenny Rogers (cada vez - infelizmente - menos parecido com aquele que sempre fora o seu sósia, o Capitão Iglo) e Sheena Easton, no momento romântico da noite que não deixou de emocionar especialmente o bom Carlos.
Em todo o caso, não rezaria pelo delicodoce o restante programa de festas, pelo menos aquele que presenciámos até regressar a Chão, dizendo "até já" aos nossos amigos minhotos, (pai do Sr. Carlos - mal me viu, teve a bondade de me oferecer o vinho mais intragável desde Guimarães, 1128 -, incluído).
Os populares estavam tomados por certa febre, acredito que inflamada por toda a encenação futurista que os Função Públika foram proporcionando; nela constava, por exemplo, o supreendente tombo de um par de pistas laterais, ao melhor estilo da digressão mundial em que os U2 promoveram “Elevation” - embora estes tivessem um circuito fixo e aqueles um problema de memória, pois esquecerem-se de avisar o público para fugir do local onde aquilo descia. Viram também a eclética banda travar um tema a meio, para se apresentar a preceito; um a um, os músicos dos Função Públika foram sendo nomeados, reagindo ao estímulo com apaixonados solos.
Depois anunciaram que o concerto ia para descanso, em prol do fogo de artifício que seria projectado num terreno ali próximo; seria uma questão de segundos. O espanto foi generalizado, e de boca aberta permaneceu o povo ao experenciar sete minutos de intenso fervor pirotécnico onde, consta-se, foi gasto aproximadamente muito. Durante esse interregno os onze músicos voltaram a reinventar o conceito de concerto: deixaram cair um pano negro sobre o palco, onde vinha anunciado o lettering da banda e, sonho, deverão ter mudado de roupa.
Despedimo-nos com trocadilhos entre aquela que pegou, trincou e meteu-nos na sesta, e fogo; de Sapardos, freguesia do concelho de Vila Nova de Cerveira, despedimo-nos com dinamite e ambiciosas promessas de voltar a um Minho de gente boa, com "uma inocente inclinação para a chuva" (Ricardo dixit).
V
Só ouvia o incansável e narciso bate-seco dela a despenhar-se contra o espelho quando, orgulhosa pelo feito - travar a minha sonolenta jornada -, se revia naquele. Repensei a estratégia. Dando-me por vencido pelo João Baião dos insectos, deitei-me e vegetei alerta. Concretizaria o homícido sofisticadamente, contra todas as previsões. Uma chicotada junto ao espelho com aquela que rapidamente se tornaria a minha antiga t-shirt de viagem valeu-me oito horas de um doce apagão, após duas de genuína tortura no regresso a Chão.
VI
Domingo: dia de retorno ao caos, noite dentro, já de autocarro, já acompanhado; de agradecer a simplicidade das pessoas, a leveza e respectivos dotes culinários, de fotografar um cão a dormir a sesta num pátio de Viana. Comi chocolate suiço (ou seria alemão?) em casa do primo do Ricardo, onde revi a legião de minhotos que compreendia ex-aniversariantes, grávidas e cada vez mais refinados especialistas em memória desportiva.
Sugeriram ao Ricardo que me levasse ao alto de Santa Luzia, numa etapa de montanha de refinadíssima categoria com vista para o paraíso. À primeira tentativa, esbarrámos com um PSP que atravessou a passagem com o seu rafeiro de chapa azul e branca: “Está cheio, lá em cima”. À segunda, e à hora do chá britânico, o Lima parecia um telhado de zinco.
Créditos: o Rui Luis é o maior.
3 comentários:
isto só para dizer que tb fui a terras de minho no fds passado. muitos comboios, muito rio. bom =)
O "estoico Corsa 1000" tem nome: BalaKorsa. De resto, Pangloss, tudo está certo, mas precisamos de cuidar do nosso jardim.
Função Públika: respect!
Já foi lançada a petição para tornar o tema "Movimento Perpétuo Associativo" dos Deolinda novo hino nacional.
A petição pode ser lida e assinada em:
www.peticao.com.pt/hino-deolinda.
Porque é urgente reflectir...
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