sábado, 28 de fevereiro de 2009

Alguém comeu rissóis enquanto via Bresson na Cinemateca

Filme: Les Dames du Bois de Boulogne
Realizador: Robert Bresson
Ano: 1945



Compreendia eu o privilégio de, por dois euros, poder ver um filme do Bresson anunciado algures por cima do arco-íris, e também a importância de não nos desorganizarmos com uma mulher de coração dorido, quando se me assomou um forte cheiro a rissóis de camarão na sala grandinha da cinemateca.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

É sempre de ouvir em repeat #13

Canção: La Bohème
Compositor: Jacques Plant/Charles Aznavour
Cantor: Charles Aznavour
Disco: Monsieur Carnaval
Data: 1965



A chanson é um rosto descoberto na máxima urgência do que nas entranhas arde; não especialmente bonito, mas belo, nele estão cavadas as linhas do tempo que não chegou a ser, e sem dúvida prevalece, e a tudo diminui - tal é a lingua francesa quando precisamos que nos devore; os dedos ondulam num teclado feito piano, e recuperamos o que de lábios desconhecidos se ouviu, e fechou olhos, e aproximou corpos na terra dos afectos, onde tudo é melhor que nada.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

É sempre de ouvir em repeat #12

Peça: Piano Trio No. 1 in D minor, Op. 49, primeiro movimento
Compositor: Felix Mendelssohn
Data: 1839
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Interpretação: Heifetz (violino); Rubinstein (piano); Piatigorsky (violoncelo)
Data: Não faço a mais pequena ideia



A música clássica do século XIX funcionava como uma espécie de Wagner contra o resto do mundo. Nesta equipa alinhava Felix Mendelssohn, o verdadeiro romântico - segundo um artigo recentemente publicado por uma jornalista do Independent, com base em documentos que só agora viram a luz do dia, o autor alemão d’ A Marcha Nupcial morreu de amor. De Mendelssohn, Richard Wagner, que um dia descreveu os judeus como “ex-canibais, agora treinados para ser agentes de negócios da sociedade” (Das Judenthum in der Musik, 1850), disse compor material “doce, de fazer cócegas, sem profundidade”. Importa lembrar, por isso, que os bons filmes recebem más críticas dos especialistas do Público, pelo que natural será que, salvaguardadas as devidas distâncias, o feitiozinho do autor d’As Valquírias, símbolo póstumo do III Reich, também fosse, digamos, uma dor no rabo.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

É sempre de ouvir em repeat #11

Canção: The Crane Wife 3
Compositor/Banda: The Decemberists
Disco: The Crane Wife
Data: 2006



Um camponês passeia-se certa noite numa localidade rural do Japão, e encontra um pelicano prostrado no chão. Está ferido: tem uma seta enfiada na plumagem. Ele pega na ave, retira-lhe a seta e liberta-a assim que a consegue curar. Alguns dias depois bate-lhe à porta uma misteriosa mulher. Ele recebe-a, apaixonam-se, e casam. Como ambos são pobres, a mulher sugere que vivam de casacos que ela faria para ele depois vender na praça local, mas com uma condição: ele teria de ficar sempre atrás da porta do quarto escolhido para o efeito, e nunca a veria a tricotar as peças de roupa. A mulher vê o pedido satisfeito, e o negócio corre bem, apesar de a sua saúde se vir progressivamente debilitando. Um dia, levado por uma enorme curiosidade, o camponês não resiste a entrar no quarto da mulher, descobrindo que ela, além de tecelã, tinha asas de pelicano, e os casacos eram tão belos porque ela os tricotava com as próprias penas. O feitiço quebra-se quando o olhar dos dois se cruza, e ela, de novo uma ave, voa para nunca mais voltar.

The Crane Wife 3 é a faixa homónima ao quarto disco dos Decemberists, que tem por base esta lenda japonesa, e dela faz a Marianne Faithfull uma cover com o Nick Cave no seu novo álbum "Easy Come, Easy Go", a ser editado na Europa em Março.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

chewing gum in class?



(...)

- Do you think there's anything wrong with your mind, really?
- Not a thing, doc. I'm a goddamn marvel of modern science.


(L)

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Woody Allen cagou no amor


Quem filma a penélope cruz num picado onde toda ela salta de um curto e desmazelado vestido estilo macaco, enquanto investe, rodeada de latas de tinta, em pinceladas frenéticas sobre uma tela estendida no chão, para depois enfiar a nuestríssima hermana num laboratório de revelação fotográfica aos beijos com a scarlett johansson, merece todo o meu respeito. Vicky Cristina Barcelona não é hilariante, mas tem a cor do tinto e aconchega: visita pedaços do que perdi na cidade do gaudi, de cuja estação de comboios saí por cinco minutos, em agosto de 2007, logo regressando à ferrovia porque o sul de frança é que estava bem - rsrsrsrs , já depois de me ter desorganizado com as sardas de uma catalã que viajava na nossa carruagem desde madrid, o que me levou a perder o cem anos de solidão. Décadas de intensa reflexão sobre os absurdos de um relacionamento amoroso conduziram o pequeno ratinho à conclusão de que nada sabemos, pelo que o amor não tem de matar o amor, sobretudo quando o pode moer assim num tirinho nonsense. É mais saudável, e serve o efeito desejado. O Woody Allen sabe tudo/O Woody Allen nada sabe/O Woody Allen somos nós.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

É sempre de ouvir em repeat #10

Canção: Le Matin
Compositor/Intérpetre: Yann Tiersen
Disco: Les Retrouvailles
Data: 2005



dançámos e cantámos joy division, the cure, entre aspas, despe & siga, doors; depois, no caos do jamaica, dei de frente com um passado que há muito enterrara - sem pompa, mas com a devida circunstância. não estou exactamente aos pulos quando regresso ao génio do yann tiersen. vai daí, 6:49, amanhã é um novíssimo dia.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

É sempre de ouvir em repeat #9

Canção: Psicologia
Banda: Feromona
Compositor: Diego Armés (voz e guitarra)
Disco: Uma Vida a Direito
Data: 2008



Canções curtinhas para poupar fita magnética;
Não há simpatia nacionalista, espera-se o melhor;
Ecoa o alarme FHM neste vídeo.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

A galinha dos ovos de ouro


Temos uma máquina de jogos Megatouch numa cópia baratinha de cabaret que abriu não muito longe do nosso bar. Num Inverno rigoroso, sem turistas, é a nossa galinha dos ovos de ouro. De regresso à terra para o fim-de-semana, fui lá ontem à noite, pela primeira vez, atrás do meu irmão. Fim: picar o ponto – ver a galinha, leia-se.

Grande parte da comunidade de ciganos da zona podia ser encontrada junto ao palco, onde zurravam de forma entusiasta às vazas de três a quatro brasileiras sem frio que ali se substituíam de três em três minutos depois de cada uma se abanar ao som da Christina Aguilera. Muito atento, de pé, encostado a um sófá, um rapaz que conheci pouco depois de se ter casado observava o espectáculo.

O momento pedia algum tipo de discrição. Talvez por isso, numa decisão não inteiramente consensual, escolhemos um sofá longe da zurraria para nos sentarmos a beber o copo que já pediramos no bar.

A virar whisky desde o meio dia, um amigo do meu irmão, profundo conhecedor da casa, perguntou-me se eu queria um broche. Virei o pescoço de chicotada e olhei a nossa máquina de relance. Depois reencontrei-lhe os olhos, sorri, e respondi "não". O amigo do meu irmão que bebia whisky desde o meio dia insistiu, dizendo qualquer coisa, que à quarta ou quinta vez percebi ser: "Um bróchezinho, dé. É bém vi como marcáste aquèla lá ao fundo vestida de leoparde, na te faças de esquesite".

Fiz-lhe ver que tudo correra bem até àquele momento, pelo que não havia necessidade de mudar as coisas. Por essa altura, num sofá ao lado do nosso, já se tinha acomodado com uma funcionária da casa o amigo que conheci pouco depois de se ter casado. Por lá ficaram um par de minutos, logo desaparecendo para dentro de uma sala contígua ao espaço.

Nisto, já baralhado de tanto zurro feito eco, o meu irmão verbalizou uma ideia. "Bem, vamos embora daqui”, disse - iniciativa que agradou a quase todos.

Antes de nos encaminharmos para a porta de saída, o amigo do meu irmão que bebia whisky desde o meio dia agarrou-me pelo braço e dirigiu-nos à rapariga vestida de leopardo, para logo lhe fazer notar que eu não a queria. Ela sorriu, eu também. Era muito bonita. Disse-lhe qualquer coisa tão conveniente como "não tem nada a ver contigo", e, já fora do estabelecimento, despedi-me do amigo do meu irmão de uma forma - "consegues ser tão desagradável" - que o chocou profundamente, pelo que me deu as costas e regressou em passo precipitado ao cabaret onde mora a nossa actual galinha dos ovos de ouro.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Sabedoria popular


(...)

Ah, isso é ferrinhos - disse a minha avó Vivi, quando ouviu do meu novo telemóvel - já tenho telemóvel - a entrada da música dos U2 "I still haven't found what i'm looking for".

Créditos: o pablito é o maior.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

É sempre de ouvir em repeat #8

Canção: Ghosts
Cantautora: Laura Marling
Disco: Alas, I Cannot Swim
Data: 2008



O Ricardo chamou-me e disse: "Acho que esta míuda estava a tocar nas traseiras do prédio quando um dia por lá passou a pessoa certa". (O Ricardo vai mudar de casa, agora vou falar de música com quem?). Já eu, que a conheci esta noite, entendo que o pai a obrigou a tocar viola a partir dos três anos, e sempre fez por manter a rédea curta; depois vieram contactos e coisas que tais que ele mantinha através de negócios discretos e assim se chegou àquela pessoa que conhece uma outra que, por sua vez, é amiga da pessoa certa. A mesma que o Ricardo diz ter descoberto Laura Marling a tocar nas traseiras de um prédio. Não que ela, natural de Hampshire, Portsmouth, para aí estivesse virada; ainda hoje, já com um disco e dois EPs editados, confessa ter pavor de tocar para muitas pessoas. Mas, raios, o pai é que manda (o ego, essa coisa medonha, diz-me para não abandonar a minha versão, e aliás prefiro só conhecer a história amanhã, hoje é tudo novo). Talvez por isso ela não sorria; disso se queixa alguém num comentário ao vídeo que aqui deixo. Ou então esta míuda inglesa com cor de susto que já foi impedida de entrar no próprio concerto, por ser menor - fez 19 anos no domingo -, optando por tocar na rua, e a quem já atiraram um anel de borracha para o palco como pedido de casamento, está só a pedir desculpa por cantar assim.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Teremos sempre a Paiva Couceiro


O arrumador de carros da minha rua anda a comer uma senhora que tem um fio dourado muito grande preso ao pescoço, e que se pinta muito e cedo. Barbeado, muito posto, acompanhava-a no sábado de manhã, pela praça Paiva Couceiro, dez e meia. Carregava quase tantos sacos da Zara quanto ela, e vestia um pólo cor-de-rosa, como os rapazes que por estes dias se portam mal. Faltava-lhe as suiças muito finas a unir as duas orelhas em arco para poder passar por um verdadeiro menino mau – aquele que leva as míudas todas no Liceu. E coxear.

Enquanto esperava numa passadeira da Paiva Couceiro pela boleia de um amigo - ia jogar à bola -, compreendi que, do lado oposto da estrada, o arrumador de carros caminhava indeciso pela fila de táxis da praça, em passo acelerado, optando ora por um, ora por outro, para depois regressar ao primeiro. Noutra velocidade, prudente, a senhora percorria sempre metade desse caminho, pelo que se cansou menos. Num gesto precipitado, o arrumador tomou a decisão mais sensata após minutos de indecisão: abriu uma porta dos bancos de trás do primeiro táxi da fila, e nele fê-la entrar.

Imaginei o que se teria passado para que tivesse virado as costas à amante sem se despedir. Fechou-lhe com estrondo, junto à cara, a porta que, cavalheiro, previamente abrira. Vi-o afastar-se, de mãos nos bolsos, rumo ao jardim muito feio da praça Paiva Couceiro, à medida que a senhora do fio se afastava no carro amarelo, com diversos sacos da Zara esborrachados contra o vidro de trás. Podia também ser a mãe que o fora visitar – tinha idade para isso.