terça-feira, 9 de junho de 2009

A cerveja morna e triste

O Zé da gaita tem 112 quilos, mas não parece. Usa roupas largas, confortáveis, e está sempre a colar os cantos da boca às orelhas, como o cheiro de casca de banana ao olfacto dos passageiros nos autocarros, pelo que ninguém se lembra do peso. Quem frequenta ou vive na Praia da Rocha sabe bem onde encontrá-lo: caminha duas horas à beira-mar, logo que acorda, pela tardinha, e de noite é mais sensato não o procurar; ele dá uso à gaita em todo o lado, de modo que acabará por nos achar. E pedir uma taça de tinto, 'Com uma pedra de gelo, derretida', antes de socorrer os aventureiros de karaoke com os adoráveis arranjos da sua harmónica. O Zé pinta telas de cores festivas e passa a vida em trânsito para com elas ganhar o seu vinho, mas é pela música que o coração lhe bate mais veloz. Não há género musical que iniba o Zé de dar à gaita. Mas nem tudo o inspira. É um animal como nós e também perde a cabeça - sobretudo quando conhece gente mal educada. Para essas pessoas regula o espelho de outra forma. 'Eu não sou agressivo: sou mau', explica, a esse propósito. 'Fico como o Bat(e)man', acrescenta. Hoje, bem dentro dos quarentas, o Zé serve-se da gaita com a mesma destreza com que, há uma dezena de anos, teve de se desembaraçar de um cliente inoportuno num bar que então geria. O espaço era pequeno, e enchia com frequência. Foi o caso, naquela noite. Sete mesas com o suporte embutido na parede pareceu um número especialmente curto. Havia 1,2,3, demasiados clientes à porta, demasiados turistas desesperados por trocar as economias por uma ressaca na praia no dia seguinte, demasiadas carteiras a suplicar por atenção, 'Olhe para mim, chefe, estou gorda que nem uma vaca e quero esvaziar tudo para dentro da sua caixa registadora'.



Uma mesa destacava-se das demais: estava ocupada por um homem sozinho, ou quase - fazia-se acompanhar por uma cerveja morna e triste há quase hora e meia. Atento, o Zé varreu o suor que acumulara na testa com os dedos médio e indicador da mão direita e avançou para o cliente. De forma educada, fez-lhe ver o inconveniente de agir daquela forma - 'Amigo, está a entupir-me o negócio, como vê'. Nem perto esteve de obter a reacção que desejava. O cliente permanecia impávido, como se nada fosse, 'Estou a beber o meu copo', dizia, espreitando o caldo amarelo-morto uma vez conhecido por cerveja. Decidiu então lançar-lhe um ultimato: 'Oh meu grande cabrão, vou ali atrás mijar. É bom que não estejas aqui quando eu voltar'. O Zé arrastou os seus 112 quilos em passada larga rumo à casa de banho, e uma vez lá dentro, esqueceu-se do urinol. Isso sim, fitou-se ao espelho, chapinhou o rosto com água, voltou a encontrar os próprios olhos, escuros de asco, a pedir uma decisão, limpou as mãos ao toalhetes do Lidl que a casa promovia e regressou à mesa do cliente inoportuno, que permanecia de olhar inquieto e discurso afiado onde se sentara há mais de hora e meia. 'Paguei um copo. Daqui não saio'. O Zé insistiu uma última vez: 'O senhor vai ficar?' Ao ouvir a resposta que não queria, flectiu ligeiramente os joelhos, abriu os braços e arrancou a mesa da parede, como o Chief arrancou um lavatório do chão no Voando Sobre um Ninho de Cucos para rebentar um vidro e por ele escapar do hospital psiquiátrico. 'Agora já não tens onde pousar o teu chá meu grande cabrão, rua daqui', ordenou, no tom sereno e cavernoso que lhe define a voz. Conta a lenda - ele, o Zé da Gaita - que o senhor inoportuno apresentou queixa em tribunal. Acrescenta a mesma que não ganhou coisa alguma com isso, apenas o melão olímpico da noite em que teve menos sede do que devia.