segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Rascunho mais ou menos fiel, uma vez que não gravei o definitivo antes de o imprimir (esperto), de "O pastor Mota e sua Isméria"

Capítulo I

Já levavas um choque na pila, pensou o Anatólio Mota, sem contudo chegar a partilhar esse desejo com o destinatário. Este, um porteiro de discoteca precocemente envelhecido, cujo tronco outrora inchado adivinhava um improvável par de seios, destacado numa camisa cor de salmão, acabara, depois de avaliar a sua figura de alto a baixo, com o jeito de quem troça, de lhe pedir metade de um ordenado mínimo a troco da entrada. Um dos mais notáveis pastores de rebanho de Alegria, aldeia do concelho de Góis, Mota achou que a troca nada tinha de justo mas, dada a sua boa natureza, percebeu que virar costas àquele espaço de diversão nocturna seria o caminho mais curto para evitar conflitos com o colchão, debaixo do qual guardava diversos maços de notas de 20 e até 50. Daí que, optando pelo regresso a casa, na companhia dos amigos com quem passava férias em Lisboa, se tenha despedido do porteiro encomendando-o à respectiva mãe, com promessa de reencontro.

Capítulo II

Anatólio Mota conhecia a responsabilidade. Ensinado desde criança a fazer as coisas bem feitas, cedo começou a guardar as poucas ovelhas do vizinho por forma a ganhar moedas e fazer o que mais gostava: ir ao cinema. Ainda o jovem pastor não era adolescente e já conhecia todos os filmes. Curtos, compridos, antigos, recentes – a todos recebia com igual entusiasmo. Em Alegria e arredores fazia-se eco da existência de um jovem pastor que, ao domingo, depois do almoço, saltava para a caixa aberta de uma qualquer carrinha que por ali passasse rumo a Góis e acorria à sessão da tarde. Os condutores estranharam, ao início, mas depois familiarizaram-se com a companhia do pequeno pastor, ele que nunca abandonava um cajado de madeira que em tempos encontrara num monte. Alguns chegavam mesmo a tocar à porta da casa onde vivia, questionando aos pais se o filho precisaria de boleia para a matinée. Naquela noite, ao deitar, depois de lhe pedirem metade de um ordenado para o deixar entrar numa discoteca, ali, na imensa solidão da cidade grande, longe da sua Alegria, recordou com afecto o dia em que se apaixonou por Isméria. Tudo aconteceu em Casalinho de Baixo: Anatólio Mota vinha de Casalinho de Cima, varrendo os campos de cajado em riste à procura do melhor pasto para o seu rebanho, aquela pequena amostra de gado que tão fácil era de guardar, e quando deu por si estava a fitar de forma enternecida a densa lã da sua amada. Achou por bem chamar-lhe Isméria. Claro que teve de lutar com alguns carneiros elegantes pela atenção daquela que muitos consideravam ser a mais bela ovelha de Góis, mas acabou por levar a melhor. Nos dias de Inverno a Isméria protegia o Anatólio melhor do que um abrigo; no quente Verão era ele que a fazia descer até ao rio e refrescava-a chapinhando a água na sua direcção. Bons tempos, pensou. Mas na véspera de terminar as suas férias em Lisboa, junto dos amigos de infância que ali tinham prosseguido os estudos, não era apenas na Isméria que o Anatólio concentrava os seus pensamentos. Pelos piores motivos, o mesmo acontecia com o porteiro da discoteca. Assim continuou o Mota durante muitos dias, já de regresso a Alegria, e chegou mesmo a ser repreendido por Isméria, que de noite o notava ausente. Certa vez, cada vez mais entendido no ovelhês, Mota foi confrontado e omitiu as preocupações. Baliu que tudo estava bem. Porém, enrolando-se na lã da sua Isméria, mimando-a, chegou à conclusão de que algo teria de ser feito. A situação era, percebeu, insustentável.

Capítulo III

Foi num dia em que viu chover sapos num filme que o pastor, à entrada dos 30 anos, soube o que tinha de ser feito. Na certeza de que o vizinho estava de férias e em breve visitaria a família em Lisboa, pediu-lhe encarecidamente que lhe desse boleia até à capital – a si e ao seu rebanho. O vizinho não teve tempo para ripostar. “Não me faça perguntas. Não irei responder para não ter eu próprio de ouvir o que lhe diria. Confie em mim”, pediu, lembrando-se talvez de ter ouvido aquilo num filme. E assim foi. Um par de dias volvidos, munido do seu cajado de madeira, já o Mota e o respectivo rebanho viajavam pela estrada nacional numa espaçosa carrinha de caixa aberta conduzida pelo seu vizinho, que, horas depois, já dentro da capital, devolvia o mesmo olhar de incredulidade com que lhe fitavam os demais condutores.

Anoitecera.

“Nem uma palha bule”, observou o confiante Anatólio, que nunca duvidou das coordenadas que a rota exigia. A discoteca ficava debaixo de um viaduto, numa zona habitualmente muito movimentada, mas que àquela hora pouca gente descobria. A dada altura reconheceu que a morada era ali mesmo, ao fundo da rua. Agradeceu ao vizinho e sugeriu-lhe que, uma de três, fosse para casa, esperasse por si ou o acompanhasse. Em todo o caso, notou, a terceira opção seria bem mais divertida do que as restantes. Aos trambolhões para lhe saltar da boca, as palavras ficaram onde estavam e, a bem da lógica, o vizinho percebeu que melhor seria engoli-las. Nada perguntou, acompanhando o Mota até à entrada da discoteca sem fila, mas com um porteiro precocemente envelhecido.

- Boa noite, podemos entrar? – perguntou o Mota, educado.

- Mas estás a gozar comigo ou quê? Vai mas é pastar de volta para a serra com as tuas ovelhas antes que te desfaça o nariz e lhes faça a tosquia.

- Meu caro, não têm estas minhas amigas feito outra coisa, que as trato melhor do que a mim, mas, preste atenção, apesar de eu não ter grande vontade de voltar aqui, onde aliás você já me pediu metade de um ordenado para me deixar entrar, elas, as minhas amigas, insistiram. Sabe, baliram-lhes que havia por aqui muita cabra. Gostam umas das outras, é fácil de ver. Se fosse a si não as contrariava.

- Mas tu queres que te parta os ossos ou quê? Dou-te três segundos para zarpares daqui para fora – ameaçou-o de dedo e as estranhas mamas em riste, espreitando o relógio.

A ameaça foi o pretexto que o Mota precisava: um, dois, três segundos depois, puxou do cajado de madeira e esquivou-se ao punho cerrado do porteiro aplicando-lhe, por sua vez, uma valente cajadada entre as pernas. Vergado às dores, no chão, o porteiro foi de seguida atropelado pelo obediente rebanho que seguia as ordens do seu pastor. “Vá, essas patas para dentro da discoteca, vamos embora!”, gritava, aproveitando a passagem da Isméria para lhe dar uma palmada no rabo e piscar-lhe o olho.

Uma vez lá dentro, de cajado e notas de 20 e 50 em riste, o Mota explicou a situação ao DJ e ao único empregado àquela hora de serviço. Prontamente foi encerrada a porta de entrada e, uma vez todos lá dentro, a noite foi de arromba, com muita música, dança e especial destaque para a Isméria, que, diz-se por esses montes fora, deu espectáculo em cima da coluna.

1 comentário:

Ricardo Saleiro disse...

lol Bem boa essa Isméria!