A S. cruzou o Atlântico até aos Açores para cobrir um torneio de golfe, modalidade de que gosta e entende tanto como eu de curling, mas a experiência correu tão bem que um responsável da organização não demorou muito a oferecer-lhe emprego na ilha. Ela adivinhou-se a ordenhar vacas como passatempo e rejeitou amavelmente: "Não sei falar açoriano". Entre escalas, a custo, a S. conseguiu meter os pés em Lisboa e deixou-se raptar por mim algumas horas antes de apanhar o voo de regresso a Nova Iorque, onde reside vai para cinco anos. Há mais de um ano que não vinha cá e a oportunidade de passar em Portugal caiu-lhe no colo sem que ela própria a visse chegar. Mais tarde, já com os lábios cor de vinho e o toque fácil, lamentou não ter tido a oportunidade de se ter reunido com os amigos - a S. deixou por cá uma legião de gente que se importa com ela e só a evoca para dizer bem. Não lhe vão perdoar quando souberem. Quando a fui buscar ao prédio dos pais, à 00h30, apareceu com as botas pretas de biqueira de aço que em tempos levou para os festivais. Confessou-me que não as metia nos pés há 15 anos. "Não tinha mais nada aqui em Lisboa!", acrescentou. Abracei-a e ela pediu-me para arrancarmos logo que possível, já que o pai estava à janela, a ver tudo. Inclinei a cabeça e procurei o vulto. Encontrei coisa nenhuma mas acenei na mesma, de tacha arreganhada.
Vadiar a um domingo é outra coisa. O recolher não é obrigatório, mas toda a gente o pratica. Ou quase. Chegados ao Cais do Sodré percebemos que apenas um bar estava aberto, concretamente por mais quatro minutos. Pensei em alternativas e lembrei-me do Arte & Manha, no Conde Redondo na Duque de Loulé - espécie de open space das ideias povoado por almas desassossegadas numa zona onde o comércio da carne flui p'ra xuxu. Seguimos para lá e ocupámos uma das mesas grandes. Ali perto estava o António Zambujo a falar com duas miúdas giras e ocasionalmente com um barba branca de meia idade, talvez sem abrigo, que a vida apressou a disfarçar de idoso. O ambiente era acolhedor. Pedimos vinho tinto. Ao segundo copo já o JP Simões andava também pelo espaço, com aquele ar muito curioso sobre tudo de todos nós. Ao mesmo tempo a mãe da S. começou a enviar SMS sublinhando a irresponsabilidade da filha por se deixar levar por "homens da vida" como eu. Ríamo-nos muito e picávamos a mãe da S. para ver que outras pérolas dali sairíam. Em nosso redor havia cada vez mais gente. Às três da madrugada já o bar estava cheio. Um rapper anónimo de perna engessada coxeou até ao palco e improvisou ao microfone. Seguiu-se o DJ, que revelou um jeitinho tremendo para medir o ambiente e manipulá-lo. O melhor do soul e do hip-hop, delícia. Dançava-se e bebia-se em bom ritmo. Um grupo de americanos recém-chegado fazia barulho acima da média. Um português pediu a duas das americanas para se beijarem e elas fizeram-lhe a vontade. Demoradamente. Daquele grupo saltou outra americana para a pista de dança. Com gosto ouviu a cantiga do bandido entoada por um rapaz que a impressionou pelo gingar de ancas. Percebi que ela mataria por amor. O barba branca vagueava pelo bar a alta velocidade e intervinha com autoridade nos assuntos alheios. Eu ouvia atentamente a S., que naquela noite voltou a fumar, quatro meses depois do último cigarro. Ainda lhe fiz cara feia mas ela prevaleceu, hábito que se aplica a outras coisas, caso da alimentação. Naquela noite ela tinha jantado a couve do caldo verde - "não gosto do caldo" - e "uma salada muito boa, só com alface, mas com a quantidade certa". Ainda pedi "frango à Arte & Manha", que é o mesmo que dizer "Frito que dói, Foda-se", a ver se ela mordia uma coxa, mas a S. não vai por aí. O que não deixou de fazer foi encher a cara de vinho e, claro, fiz-lhe companhia. A mãe da S. aparecia de quando em vez no telemóvel em modo letras. Perguntava se já não era suficientemente tarde para a filha estar na companhia de quem "não vai longe por viver na noite". A mãe da S. é um espectáculo. Recordámos o que nos une e fizemos planos. Lembrei-lhe o quanto a admirava enquanto oráculo. A S. fala de coisas que estão anos à frente de acontecerem. O que ela diz, escreve-se agora para compreender depois. Deve ter sido a S. que pela primeira vez classificou o Wes Anderson de génio, ela que sempre preferiu filmes de comédia muito ao contrário da grande manada dita 'alternativa', a quem chamo de 'prioritária'. Hoje toda a gente fala do Wes Anderson, mas a S. viu primeiro. Ainda havia a esperança de que ela conseguisse adiar o voo. Nesse cenário, estava em discussão a hipótese de repetir a desculpa da última vez, quando ligou para o trabalho, em Nova Iorque, a dizer que tinha de ficar em Portugal mais um dia porque tinha apanhado muito sol.
Já com a noite branca e passarinhos a cumprimentar vadios e vespertinos, desviei-me de um grande monte de merda que pontificava na calçada antes de rodar a chave na fechadura do prédio. Entrei, com jeitinho, e ao papar degraus rumo à minha porta levei as mãos ao nariz, em concha. Puxei todo o ar que pude e confirmei: o cheiro ainda estava lá. O de sempre.