segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Crónicas de um algarvio desempregado: dia zero



A primeira coisa que fiz depois de assinar a rescisão foi comer uvas que eu e Fátima trouxemos da videira do quintal da casa dos pais dela, quando estivemos de férias, antes de saber que ficaria sem emprego. Maduras, maneirinhas e gostosas, as safadas, como aquela tropa dos anúncios classificados.
De seguida arrumei as minhas coisas, abracei colegas de trabalho, desumanizei-me, enxotei lágrimas que noutro mundo teriam seguido o seu rumo natural e ala, que se faz tarde. Antes ainda dei um salto à copa, queria tirar um café para o caminho, mas a máquina do café estava avariada, como quase sempre esteve. Existindo, aqui e ali Deus mostra um sentido de humor matreiro, o Grande Criador sabe ser o futebolista da equipa que está a ganhar e na parte final dos jogos atira-se voluntariamente para o chão, rebolando de dores que não sente só para levar a melhor.
Quando li a indicação "máquina avariada" parti-me a rir, de maneira que a rir me afastei do edifício. Três anos no Destak, cinco no Metro, oito na Cofina.
Quis passar as minhas primeiras horas de desempregado com a Fátima, por aí. Como já tinha começado a enviar currículos e agendado uma entrevista, permiti-me reservar o resto do dia e activar o modo beber para esquecer. Quando cheguei a casa encontrei a Fátima à minha espera, pronta para o que desse e viesse, claro. Dei-lhe um beijo que tinha amor, tinha tudo. Minutos depois já tínhamos batido com a porta, desenfreando-nos a pé pela cidade.
Mal subimos a nossa rua agarrei-me à linda cintura da Fátima, tentando desta forma acompanhar-lhe o passo, sem lhe pisar os calcanhares, como numa dança. Parámos ao pedido de uma senhora antiga muito carinhosa que se cruzou connosco, com vontade de nos falar. "Ai, tão queridos", disse, juntando as palmas das mãos, bem abertas. Sentimo-nos especiais e trocámos um olhar cúmplice, a Fátima e eu. Depois a senhora antiga atirou-me para as mãos um almanaque religioso que só custava um euro. Meio confuso, comprei aquilo. Trazia receitas de culinária.
Ao contrário do ovo e da galinha, sabemos que primeiro veio a aldeia, só depois a cidade, e quanto mais a cidade souber conservar esses traços originais de proximidade, que tornam possível os amigos viverem em família, bem aconchegadinhos, melhor.
Por isso soube bem retomar o caminho de almanaque na mão, caminhar duzentos metros numa rua de Lisboa e encontrar uma amiga. Ela bebia uma cerveja com outra amiga na esplanada de um café. Os filhos de ambas brincavam lá dentro, protegidos de um sol que ainda picava. O puto da minha amiga está um homenzinho cheio de pinta e disse-me "olá" pela janela, pelo que dei a volta e fui lá dentro despenteá-lo. Ao regressar trouxe duas cervejas e juntámo-nos às moças. A minha amiga trabalhou comigo; falámos de trabalho, ou, no meu caso, da falta dele. Falámos também dos Açores, que a amiga dela tinha acabado de visitar, e da vida. Uma outra rapariga entretanto juntou-se. Vinha manca porque tinha caído de mota e doía-lhe um joelho. A moça que foi aos Açores gostou de tal forma daquela força da natureza que amou o "cheiro horrível" a enxofre das Furnas, na ilha de São Miguel. Dissemos até já e retomámos o nosso caminho, que era para descobrir a pé.
Chegámos à Graça e descemos para o Martim Moniz. Ao longe ouvia-se música, suficientemente longe para se tornar imperceptível que tipo de música seria. Projectámos um concerto no largo, como na véspera. Entretanto a Fátima lembrou-se da Associação Renovar a Mouraria. Andámos alguns minutos perdidos até que a encontrámos no cimo da uma rua estreita: era de lá que vinha a tal música, ainda por cima cubana, maravilha. Da maneira que o cenário estava montado, com uma banda a tocar num pequeno palco instalado na rua e a malta a fazer fila para comes e bebes no interior da associação, a festa era um autêntico arraial, o Santo António de volta, saudades mortas. A banda tocava várias músicas dos Buena Vista Social Club num estilo de rua, com ginga.
"El Cuarto de Tula; le cogió candela.
Se quedo dormida e nó apago la vela."
Ali ao lado dançava em lentos movimentos circulares uma mulher alta, bonita, talvez cubana. A pose de rainha nunca perdia; olhava a plebe de cima, sem mostrar os dentes. Como companhia tinha duas amigas, uma delas indiana, cujas vestes tradicionais salpiquei com cerveja quando tentei, em vão, equilibrar o copo ao mesmo tempo que tentava pôr a gravar o Chan Chan, ou o carinho instantâneo que aquelas e quaisquer outras pessoas sentem quando ouvem os primeiros acordes desse som tão belo e triste. Multipliquei pedidos de desculpa à indiana, mas nada, ela fugiu para o interior da associação sem sequer me fitar. Nunca mais a vi, já a cubana lá continuava, na dela, que em certa medida era a de quase todos. Fiquei muito atrapalhado e só voltei a dançar três ou quatro minutos depois, quando o fim do ataque de vergonha me libertou.
A banda fez uma pausa. Por essa altura já tínhamos partilhado Coxinhas do Ronaldo, uma com frango, outra com vegetais. Estavam tenrinhas. No intervalo passaram um disco que compila cumbias psicadélicas do Peru: Roots of Chicha, primeiro volume. Não foi assim há tanto tempo que andava a ouvir este disco quase todos os dias, achei muita graça. A Fátima também, tanto que sorria e cantava:
"Nunca, pero nunca
me abandones cariñito."
O sol desaparecia, o calor nem por isso, pelo contrário, deixava de ser o efeito de uma causa para se tornar numa incompreensível massa pesada de ar quente, um convite tardio ao suor, um exagero.
Entretanto deixei cair o copo de vez e salpiquei os pés de um casal, que, acto contínuo, sacudiu-me, derrubou-me e fuzilou-me com os olhos.
Foi nesse momento que o Marco Fortes que há em mim percebeu: estava bem era na caminha.

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