quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Crónicas de um algarvio desempregado: dia 2


Vinte anos de trabalho em Vigo deixaram Luis García com uma cantiga à Paulo Futre, por supuesto. Deu ao litro na Organización Nacional de Ciegos Españoles, a ONCE, mas enquanto Laurent Jalabert e outros pedalavam, ele vendia lotarias. Luis García era Luís Garcia, mas entretanto o acento agudo do primeiro nome saltou para o segundo - já tem nacionalidade espanhola. Orgulhoso, puxou do cartão de identificação e provou a sua condição profundamente ibérica a mim e a um amigo, depois de o ajudarmos a encontrar a linha vermelha do metropolitano.
Levei-o pelo braço desde a saída na linha amarela, e antes de chegarmos à vermelha já Luis García me estava a convidar para um dia destes beber um copo, caso passasse por Pontevedra, onde chegaria para ficar, a partir da Gare do Oriente. No último ano viveu em Portugal, ao que parece em Braga, mas estava de volta à Galiza. Um pulinho.
Perguntou-me se já tinha ido ao Norte, e por Norte depreendi um Norte sem fronteiras, com Minho, Galiza e tudo; respondi que sim, que gostava muito, volta e meia visitava esse grande Norte, e a última vez tinha sido há um ano: Coura. Ao que Luis García disparou, animado: tinha estado lá, em Coura, tinha sido "potente", e mais "potente" ainda foi uma festa de branco, em Braga, na qual "nunca tinha visto tanta gente na vida, hostia!"
Além de disparar tiros muito cantados e certeiros, Luis García, um peso-pesado da ONCE, o Wayne Rooney da lotaria em Espanha, tinha uma característica óbvia, que o tornava especial perante os outros: um sorriso permanente, que reflectia um espírito luminoso. Quando nos despedimos, não sorriu, porque já estava a sorrir, e na sua cantiga à Futre deu este nó cego ao infortúnio: "vemo-nos por aí!".
Encerramentos é coisa que não me seduz muito por estes dias, de modo que abri uma conta-poupança antes de visitar um amigo que já teve melhores dias, e melhores dias voltará a ter, que coragem não lhe falta. Ainda fui a casa, e a tentação de ir à Net fez-me saber que tinha sido convidado para ir a uma universidade falar sobre isto das palavras. Anda perguntei a quem me fez o convite: acha mesmo boa ideia dar como referência aos seus alunos alguém que acabou o curso há nove anos, não tem emprego e até ver nada editou? Disseram-me que sim e lá aceitei.
A caminho do metropolitano protegi os olhos do verão mais quente
com os meus óculos de sol, tirei-os ao passar por uma sombra boa, voltei a colocá-los quando atravessei a estrada e a tirá-los quando entrei na estação do metropolitano. Tirei e pu-los muitas vezes, e quando estava a chegar ao café no qual tinha combinado com o meu amigo que já teve melhores dias, e melhores dias voltará a ter, que coragem não lhe falta, fiquei com uma haste na mão. De tanto tirar e pôr, saltou. Quando se tira e põe tantas vezes, o mais certo é saltar alguma coisa.

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