terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crónicas de um algarvio desempregado: dia 1


No meu primeiro dia oficialmente desempregado consegui colocar um guardanapo debaixo do pé direito do Rui Zink, sem ele dar por isso. Entrei no café onde almoçavas, sentado na mesa mais afastada da esplanada, de costas para a entrada, pedi uma sopa, um rissol de leitão, coloquei-te o guardanapo debaixo do pé direito, pedi a conta, paguei, passei por ti e tu nada, Rui.
Esgotados os meus créditos de depressão, que só podiam durar o fim-de-semana, acordei e preparei o pequeno-almoço para a Fátima, que ficou na cama. Os Linda Martini têm os 100 Metros Sereia, e eu teria os 10 Metros Romance se, de tabuleiro nas mãos, depois de sair da cozinha, percorrer o hall de entrada e entrar no quarto tivesse encontrado a Fátima ainda a dormir, e não no pronto-a-vestir, a fazer flexões.
Segunda-feira, dia de me apresentar no centro de emprego mais próximo, o do Conde de Redondo, que na oralidade virou Conde Redondo, só. Meti na cabeça que ia a pé, nem dois quilómetros seriam, ir e vir fazia-se bem. Seria o exercício do dia. Que se lixasse o metropolitano.
A ideia por si só era agradável, não fosse o facto de Lisboa estar a ferver a 34 graus ao meio dia, com previsões de 37 à uma da tarde e 38 às duas. Ao primeiro minuto de caminhada ainda não fazia cara feia. Ao segundo já tomava outro banho.
Estava a meio caminho quando se atravessou à minha frente um senhor com um balde numa mão, uma esfregona na outra e um pano vileda amarelo em cima da cabeça. Gostava de acreditar que o senhor só tinha limpezas em mente, mas devia ser mesmo do calor.
Horas depois, em conversa ao meu lado, uma brasileira disse a outra que, em dez anos de vida em Lisboa, nunca tinha sentido nada assim, um verão destes. Concordei em silêncio. O calor é tanto que para sacar o meu NIB no multibanco tive de digitar o código com a unha, para não queimar o dedo no ferro de engom... perdão, no metal da caixa. Perto de casa, no regresso, vi uma senhora antiga proteger-se do sol atrás de um poste, com o saco das compras ao alto. Já chega, não?
Quase, quase a chegar ao centro de emprego, dali a nada uma da tarde, ocorreu-me comer alguma coisa, não fosse ter de esperar demasiado pela minha vez. O melhor era despachar-me logo e seguir já consolado para o centro de emprego.
Hesitei entre o café da direita e o da esquerda, e só escolhi este porque na esplanada estava sentado o Rui Zink. Atravessei a passadeira e também me sentei na esplanada, na mesa atrás da dele, com o Rui Zink de costas para mim. Por companhia ele tinha um amigo que falava alto. Não pedi para saber, mas acabei por ouvir que o amigo do Rui Zink estava revoltado porque alguém teve o descaramento de escolher um plano em ele ficava com as cuecas de fora, e o rapaz sentia que não tinha de o aceitar só porque era artista.
Fui ao telemóvel: 37 graus. Porra. Tinha de comer e fugir dali o quanto antes, pensei. Nisto, joguei a mão ao rissol de leitão, trouxe-o à boca e vi o guardanapo que estava em baixo do frito voar e aterrar debaixo do pé direito do Rui Zink, que na fracção de segundo anterior tinha levantado o calcanhar e na seguinte já o descia, colocando um ponto final no voo do guardanapo.
Foi com o pé direito do Rui Zink a calcar o guardanapo que estava debaixo do meu rissol de leitão que me levantei, paguei a conta, dirigi-me ao centro de emprego do Conde de Redondo e encontrei um papel branco na porta de entrada que nos dava conta do encerramento daquele espaço a partir de 1 de Junho de 2015, e da fusão do mesmo com o centro de emprego de Picoas, na Avenida 5 de Outubro.
Dois mil e quinze?, questionei. Mas já estamos em dois mil e dezasseis, concluí. De maneira que fui apanhar o metro.
No centro de emprego de Picoas tinha 20 pessoas à minha frente, ou números, que agora as pessoas são números, é o que nos explicam. Mas vinte pessoas ali num centro de emprego não são vinte pessoas num centro de saúde, pelo que em meia hora já me estava a apresentar a uma funcionária.
A conversa foi parar à minha condição solene de algarvio, só sei que ela disse que conhecia outro, rindo-se de maneira envergonhada. Não precisou de me dizer de quem se tratava. "Também sou de Portimão, esse tem um bar na Praia da Rocha, como a minha família. Mas vá ao nosso, o Boogie. É bem mais giro."

Não, não tinham ofertas de emprego para jornalistas, mas antes de encaminhar o meu processo a funcionária partilhou com outra que me queria adoptar porque eu sonho um dia ter condições para constituir família e o filho dela nem por isso.

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