Era uma tarde esplendorosa de Julho quando acordou, assomou-se à janela e condenou o desplante do sol por, radiante, não o acompanhar no seu desinteresse por quase tudo de todas as coisas. Sobrava-lhe pouco: tanto quanto se podia lembrar, apenas o gosto por amoras frescas - guardava-as sempre num cestinho sobre a mesa de cabeceira - e o canto madrugador e desconcertante dos tordos no arvoredo da rua de trás. Compreendeu nesse instante que morreria mais cedo do que lhe estaria destinado, e por conta própria. Agradava-lhe a ideia de que, se nunca tivera uma vida grandiosa, pelo menos os contornos da sua morte correriam mundo, de tão monumentais: construiria um balão de ar quente, suficientemente sólido para levantar voo mas vulnerável à primeira tempestade.
Sempre fora hábil em trabalhos manuais, pelo que a empresa do próprio fim não se revelou problemática. Reuniu os materiais necessários e trabalhou dois dias de sol a sol. Alimentava-se de fruta e bolos secos, ingerindo pequenos solvos de aguardente cabo verdiana para retemperar forças - fugindo à água, evitava corridas (e perdas de tempo) desnecessárias à casa de banho. "Morrer dá trabalho", pensou, na segunda manhã, deixando escapar um sorriso, mas num piscar de olhos recuperou a expressão de pedra que ganhara desde que assumiu a responsabilidade de tirar a própria vida.
Preparou tudo a um detalhe tal que pouco dormiu até ultimar a construção do balão, e tanto assim foi que no dia marcado se sentiu demasiado exausto para morrer, dormindo directamente da véspera da sua morte até ao dia seguinte. Acordou pela fresquinha. Foi abastecer-se ao cestinho das amoras, tirou a roupa interior e tomou um duche gelado; sentia-se com energia e saiu de casa guiado pelo canto dos tordos na rua de trás, que de resto o acordara, e ao virar da esquina não pôde deixar de se apaixonar por uma putinha mulata com nariz de batata e um sorriso bonito, que fazia manhãs; com ela viveu feliz até ao longínquo dia em que deixou de respirar devido ao veneno para ratos que o filho, já idoso, tinha colocado no cestinho das amoras por engano, ignorando serem frescas.
Sempre fora hábil em trabalhos manuais, pelo que a empresa do próprio fim não se revelou problemática. Reuniu os materiais necessários e trabalhou dois dias de sol a sol. Alimentava-se de fruta e bolos secos, ingerindo pequenos solvos de aguardente cabo verdiana para retemperar forças - fugindo à água, evitava corridas (e perdas de tempo) desnecessárias à casa de banho. "Morrer dá trabalho", pensou, na segunda manhã, deixando escapar um sorriso, mas num piscar de olhos recuperou a expressão de pedra que ganhara desde que assumiu a responsabilidade de tirar a própria vida.
Preparou tudo a um detalhe tal que pouco dormiu até ultimar a construção do balão, e tanto assim foi que no dia marcado se sentiu demasiado exausto para morrer, dormindo directamente da véspera da sua morte até ao dia seguinte. Acordou pela fresquinha. Foi abastecer-se ao cestinho das amoras, tirou a roupa interior e tomou um duche gelado; sentia-se com energia e saiu de casa guiado pelo canto dos tordos na rua de trás, que de resto o acordara, e ao virar da esquina não pôde deixar de se apaixonar por uma putinha mulata com nariz de batata e um sorriso bonito, que fazia manhãs; com ela viveu feliz até ao longínquo dia em que deixou de respirar devido ao veneno para ratos que o filho, já idoso, tinha colocado no cestinho das amoras por engano, ignorando serem frescas.
2 comentários:
amoras e romãs, amoras e romãs não enganam, Rui. a semântica não engana e diz bem ao que vêm.
M.
as coisas que tu sabes*
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