Na verdade, sendo mais preciso, a linguagem musical ontem privilegiada no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, no encerramento de uma mini-digressão que passou por Figueira da Foz e Famalicão, vem sendo cada vez mais utilizada nas actuações ao vivo do músico. Ainda que de formação clássica em piano e violino, Yann Tiersen integrou vários grupos rock na sua juventude. Dust Lane, disco a editar no final do ano que serviu de mote ao concerto no CCB, é, 14 anos depois do trabalho de estreia, La Valse des Monstres (1995), o registo que devolve o compositor às descargas eléctricas.
Para trás ficam as paisagens melancólicas dedilhadas ao piano, ou abraçadas ao acordeão. Por outras palavras: toda uma reputação.
O violino, esse, ainda estrebucha, aqui e ali, mas nas poucas vezes em que o músico dele se apoderou - sensivelmente as mesmas em que deu uso à sua voz sofrível - foi para o utilizar como instrumento de ataque a canções de rock experimental, não para fazer soluçar os espectadores. Atentos como estátuas, aqueles pareceram surpreendidos ao testemunhar o novo rumo que Yann deu à sua carreira - qualquer coisa de que os Sonic Youth ficariam orgulhosos.
"Toca a Amélie!"
À cerca de hora e meia de actuação faltaram praticamente todos os hinos do autor de Rue des Cascades (1996), pelo que melhor será falar no que o quarteto que o acompanhou não esqueceu. Junto de Stephane Bouvier (baixo), Dave Collingwood (bateria), Christine Ott (teclas e o psicadélico ondas Martenot, um instrumento electrónico dos anos 30), e Robin Allender (guitarra), Yann (voz, guitarra e violino) espantou a assistência mais desprevenida com o ruidoso bloco de cinco primeiras canções do alinhamento.
Desconhecidas, decerto ficarão associadas a quem de direito assim que Dust Lane estiver disponível nas lojas.
Na recta final da quinta faixa entrou em acção o aguardado violino. Prenúncio de regresso ao último disco de estúdio, Les Retrouvailles (2005), ou até do seu mais recente trabalho, Tabarly (2008) - terceira banda sonora para filme assinada por Yann Tiersen?
Nem por isso. O violinista de formação clássica só se mostrou como tal a sensivelmente meio do concerto, numa versão do tema originalmente escrito para piano, 'Sur le Fil', do albúm Le Phare (1998) - mais tarde aproveitado n'O Fabuloso destino de Amélie.
Descabelado como se pede a um artista indie, avançado um passo, recuando dois, esquerda, direita e de novo esquerda, inquieto, Yann ofereceu ao público um solo arrepiante. Este devolveu-lhe a ovação da noite. Dali em diante, cada vez mais intensas, as descargas eléctricas comandaram canções de queda livre, esporadicamente cantadas por todos os músicos, excepto o baterista.
"You fucking rock!", ouviu-se da assistência.
Tímido - há coisas que nunca mudam -, Tiersen deixou-se ouvir apenas três vezes entre músicas. Nunca foi além de um imperceptível "obrigado" de olhos fixos nos pés. Também poucos esperariam que cuspisse fogo pela boca.
Aguardava o público, isso sim, por, enfim, ouvir os arranjos originais de uma das bandas sonoras de culto da década. "Toca a Amélie!", suplicou alguém, quase para dentro, com o tom de voz conformado de quem sabia que esse pedido não seria satisfeito.
Mas foi precisamente com o tema 'La Valse d'Amélie', ainda que atacado com arranjos de guitarra distorcida, que Yann Tiersen fechou uma actuação curta, de alto risco, mas conseguida. O legado rock do músico bretão contrói-se dentro de momentos.
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