sexta-feira, 3 de julho de 2009

«A Maria Bethânia foi um alívio...»

É conhecida por cantar. Prefere escrever. Ama lugares bonitos. Cafés. Reggae. A espontaneidade. E, se tal se justificar, pode muito bem deixar correr uma lágrima ao 11º minuto de uma entrevista. Assim se revela Vanessa da Mata, testemunhámo-lo num hotel de Lisboa, antes de a brasileira actuar amanhã no Coliseu do Porto, e no sábado, em Lisboa, no festival Delta Tejo.

Quanda nos fala, com o Tejo a anunciar-se no horizonte, Vanessa da Mata parece não querer magoar as palavras. É delicada a esse ponto. Os olhos, duas castanhas perfeitas, também nos fitam meigos. Desarmam o mais prevenido. Entra num vestido de mil e uma cores. As mesmas do sorriso. Se a isto juntarmos os traços indígenas – herdou-os da avó materna – e a farta cabeleira de caracóis livres, está preparado um verdadeiro desafio para o entrevistador: além de prestar total atenção à entrevistada, deverá, efectivamente, não perder de vista o que ela diz.

Neste plano, a cantora de ‘Ai, Ai, Ai’ facilita-nos a vida logo que empreende o seu primeiro raciocínio. E é naturalmente sem travões que fala sobre Paraty, a pequena e isolada cidade do sul do estado do Rio de Janeiro que serviu de cenário ao seu mais recente trabalho, “Multishow ao Vivo”, um CD/DVD que já está nas lojas.

“Queria um lugar bonito, com arquitectura bonita, sair das salas de espectáculos. Todos os DVD são filmados ali, da mesma forma, produzidos para parecerem um sucesso. A minha ideia era que este fosse um momento poético, que tivesse intimidade, espontaneidade”. Ao escolher Paraty, longe do aparato mediático, Vanessa sabia para onde ia – e para o que ia. Desconfiada ao início, a editora cedeu.

“Não tivemos tantos fãs como gostaríamos – as pessoas não conseguiam, era muito longe, a quatro horas de cada cidade. Mesmo assim tivemos outras pessoas: um padre, crianças na sombra dos pais que jamais poderiam entrar numa casa de espectáculos, namorados beijando-se, tinha de tudo. Isso agradou-me muito”, observa, valorizando o que foi ganho.

Com “muito dinheiro nele investido”, o concerto de Paraty justificou um profundo trabalho de rectaguarda. A cantora liderou a criação do cenário, do guarda-roupa, da decoração, e também dos rearranjos das canções. Fê-lo, por exemplo, em ‘Não me Deixe Só’, ‘Ainda Bem’ e ‘Viagem’, três dos 24 temas que compõem o alinhamento do DVD – contém imagens do concerto da cantora no Festival Sudoeste TMN em 2008 -, onde são revisitados os seus três álbuns de estúdio. Mais curto é o alinhamento do disco: 14 músicas. Novidades no repertório habitual, são três: ‘Acode’, escrita por Vanessa da Mata, e os clássicos ‘As Rosas Não Falam’ (Cartola) e ‘Um Dia, Um Adeus’ (Guilherme Arantes). Dois ‘cozinheiros’ especiais também integraram o preparo deste menu: o baterista Sly Dunbar e o baixista Robbie Shakespeare, lendária dupla jamaicana de reggae que Vanessa da Mata convidou para acompanhá-la no concerto de Paraty. A releitura de músicas já feitas, quer pelos arranjos, quer pelas parcerias, levou-nos à pergunta, “uma canção é uma obra inacabada?”

Resposta: “Já começo a sentir uma necessidade de vestir roupas novas nas pessoas e em mim, já faço isso automaticamente nos espectáculos, é uma necessidade minha a de não ser automática com a música. Se eu cantar ‘Ai, Ai, Ai’, a chuva será completamente diferente, num lugar completamente diferente.”

A autora de “Sim”, o último disco de estúdio, gravado em 2007, refere-se ao tema que mais vezes passou nas rádios brasileiras em 2006. Três anos depois, Vanessa ainda recorda com espanto o que aconteceu em Paraty quando, a meio da canção, bradou aos céus, “(...) o que a gente precisa é tomar um banho de chuva, um banho de chuva (...)”. Choveu mesmo. Naquele preciso instante.

“Aquilo foi uma coisa incrível, era uma época de avalanches no Brasil. Nas duas noites em que tocámos o céu esteve cheio de nuvens carregadas, e nós tínhamos uma preocupação: era muito dinheiro investido, 70 pessoas só de filmagem fora a nossa equipa, fora a editora, a cidade estava tomada de assalto por uma gravação que tinha de dar certo. Não podia falhar. Um espectáculo destes acabaria com tudo, porque era aberto, e choveu em ‘Ai, Ai, Ai’. Parou quando a música acabou. Foi um milagre. Não no sentido religioso. Em todos os sentidos, talvez. A natureza estava connosco”.

Bethânia e Ben Harper
Desengane-se aquele que de Vanessa da Mata esperar tiques de entertainer – no sentido mais metódico do termo. Podemos estar perante uma das artistas que mais discos vendeu no Brasil nos últimos anos, mas pé descalço e cabelo ao vento nos concertos são imagens de marca de que a artista não abdica, independentemente do rumo de sucesso pelo qual a sua carreira encarrilhou. Tudo nela parece natural, nu, verdadeiro como o processo que levou à gravação de “Multishow Ao Vivo”, como a chuva que caiu só na música que 'pedia' chuva, como a resposta, em lágrimas, que devolveu à nossa pegunta, “Até que ponto Maria Bethânia foi importante na divulgação do seu trabalho?”

“A Maria Bethânia foi um alívio... foi um alívio. Ela diferencia-se no Brasil: arrisca falar de pessoas novas, de quem ninguém falou ainda. É diferente de muitas pessoas que falam o tempo todo por alguma troca de favor, ou, sei lá, por perceber que os jornalistas estão falando muito bem. Ou porque tem muito público. Para agradar. A Maria Bethânia não. Eu não era conhecida [até 1999, quando Bethânia gravou ‘A Força que Nunca Seca’, canção composta por Vanessa da Mata que deu título ao disco homónimo da irmã de Caetano Veloso gravado no mesmo ano]. Ela arriscou muito em falar do meu trabalho. Foi um alívio porque não tinha ninguém para falar dele, e eu já treinava composições com ela... “, diz Vanessa, para de seguida se interromper.

Emocionada, avisa que vai chorar. As duas castanhas perfeitas ganham água. Respira fundo. E conclui, resistindo à emoção: “foi muito bonitinho”.

Refeita, Vanessa, que por esta altura se demora a percorrer com uma pequena colher as paredes da chavéna do seu chá, longos movimentos circulares que há muito já diluiram os grãos de açúcar previamente espalhados em água e ervas, recupera o sorriso quando chegamos a ‘Boa Sorte/Good Luck’, primeiro single do álbum “Sim” gravado em 2007 com o músico norte-americano Ben Harper. Diz ter ouvido vozes, muitas, quando compôs a sua parte, em português, mas de pronto nos descansa, antecipando, em sua defesa, que falava de algo mais simples do que uma mera "doença psicológica". Na verdade, tratava-se do alcance que a música poderia atingir, aqui simbolizado por o que a própria apelidou de “um coro gigante”. Por outras palavras, as de Ben Harper, proferidas assim que o produtor Mário Caldato lhe deu a ouvir a música, “um hit seguro, de que as pessoas não se vão cansar tão cedo”.

Aquilo que fez eco na cabeça da cantautora nascida há 33 anos em Alto Garças, no Mato Grosso, tornou-se real, palpável. Dois anos depois, um single de Vanessa da Mata voltava a ganhar a corrida dos temas mais tocados nas rádios brasileiras. 19.565 vezes, precisa a assessoria de imprensa da artista. Com aquela parceria, a compositora que a voz de Maria Bethânia divulgou em 1999, evitando que, como a própria reconhece, a qualidade do seu trabalho fosse apenas avaliada "pelas tias e pela mãe", centrava definitivamente os holofotes em si enquanto artista completa, com um espaço próprio conquistado no vasto campo da música popular brasileira. A música, classificada pela cantautora como um “ponto de encontro maravilhoso”, permitiu-o. Quando reencontrar o público português amanhã, no Coliseu do Porto, e no dia seguinte actuar no festival Delta Tejo, em Lisboa, Vanessa da Mata, disse-nos, vai tentar dar um espectáculo que provoque uma reacção nas pessoas. “Positiva, se possível”, pede. Não pede muito.

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