A mãe da afilhada da minha mãe está mal, acamada, precisa de cuidados continuados e há 850 vagas para demasiada gente, de norte a sul. Aqui por casa fazemos o que podemos: oferecemos um jantar à filha. A afilhada da minha mãe mora aqui em Portimão mas raramente se deixa ver. Vive com um holandês que se portou mal com ela antes de se portar bem. Na dúvida, depois dos 40 anos, sozinha, deixou-se estar. Raramente vem cá a casa mas, depois de uma corrida até ao mar – ir, para voltar - deparei-me com ela aqui na sala, a falar com os meus. Tratei do meu festival de suor com um duche gelado e regressei para lhe espetar dois beijos e integrar a conversa de família.
Trocámos banalidades e rapidamente chegámos à crise, coisa que assiste mais a uns do que a outros. Demorámo-nos na “ideia de que isto está muito mal”, com a minha avó Vivi especialmente empenhada em lembrar que “já ninguém quer trabalhar, só estudar”, o que era o caso da afilhada da minha mãe, hoje com 50 anos e sem emprego. E foi já depois de lhe carimbarmos a procura por um que veio à baila o convite para ficar e jantar connosco um suculento franguinho no churrasco, próxima ceia de natal de tanta casa neste “país”. Ela, frágil a ponto de, achei, se poder partir a qualquer momento, hesitou tanto quanto pôde. No limite, lançou o argumento do facebook – “já lá não vou há uma semana!” -, mas à minha intervenção mais incisiva lá aceitou comer connosco, de olhos encharcados, a reflectir a dor de uma perda anunciada. A minha mãe correu até à afilhada e beijou-lhe a nuca.
Como habitualmente, as refeições cá em casa com convidados são feitas na sala de jantar, uma mesa redonda onde cabem pessoas, bem diferente da mesa da cozinha onde o raio de acção de cada um é parecido ao de um bar aqui da Rocha, o Pipas, em hora de ponta (02:00 – 04:00, sextas e sábados). À cabeceira a minha avó Vivi, claro, mestre de cerimónias. Habitualmente os homens da casa ficam ao pé dela, esforçando-se por lhe sacar o melhor que tem para oferecer uma mulher tão-sem-máscara, tão-exactamente-como-é, nascida nos loucos anos 20: opiniões e estórias castiças. A desta vez prende-se com uma viagem de mula que a Vivi fez entre Moncarapacho e Cachopo, com a missão de encontrar familiares. Reza a minha avó que se montou na mula dela "pelas duas da noite", e no escuro do mato arriscou por caminhos de cabras até chegar onde queria pelas seis da manhã. Ou assim crê ter acontecido. Foram quatro horas de viagem que demorou duas a contar, pois não parámos de a interromper para exigir mais detalhes sobre coisas já ditas, outras nunca imaginadas, ou encher-lhe o copo de Periquita e também a paciência. De Santa. Foram horas bem passadas, cheias do que levamos desta vida: comer, beber, conhecer, brincar, partilhar com os nossos. É o que daqui levamos.
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