sábado, 28 de março de 2009

o corpo pode ser vestido de muitas maneiras, embora esteja sempre nu

'Starry Night', Vincent Van Gogh, 1889
I
A noite trazia promessa de ruína. Pª. recebera um presente holandês e dar-nos-ia música; I. vencera o relógio e teria mais tempo para atacar a direita. Pº. vestira o casaco mais distinto que tinha. R. jogaria sempre à bola na manhã seguinte. A noite era estrelada. Pela frente estava o bom sábado.

Deixando para trás a escuridão das poucas ruas do Bairro Alto que ainda não se encontram tomadas de assalto por feixes de nave alienígena, Pº. e R. anunciaram-se a quem por eles esperava no primeiro bar que se lhes deparou. Houve beijos e abraços; o grupo era extenso e fatiado, mas reinava o afecto. Os copos também. Era importante, sublinhou R., logo após pedir o primeiro, à saída do balcão, perceber o valor de uma taça de tinto que custe três euros, embora guardasse para si como lhe soubera bem a gigantesca pizza que comera na cidade eslovena de Kranj, em Agosto de 2007, mais ou menos pelo mesmo preço. O bar compunha-se. Enjaulada no seu canto de trabalho, muito concentrada, Pª. não sabia, mas preparava-se para concorrer com os melhores alinhamentos na história dos melhores alinhamentos que já se fizeram ouvir no Bairro Alto.

Foi isso, pelo menos, que passou pela cabeça de R. depois de ouvir Of Montreal, Nouvelle Vague, The Cure, Beirut, The Killers, David Byrne ou Vampire Weekend, entre outros, como escolhas musicais de um DJ set. Quatro horas de intensa busca pela beleza acabariam por se revelar o melhor que a noite reservou a Pª., que já fora mais feliz no Incógnito, para onde o extenso e fatiado grupo se dirigiu pelas 02:30.

II
Dona do falsete de espanto mais rápido do Oeste, I. despachava caipirinhas em bom ritmo enquanto atacava a direita - “Abaixo o capitalismo!”. Aliás, o entusiasmo de ter vencido o relógio foi tal que, poucos minutos após a segunda paragem da noite, I. já perdera as forças noctívagas, e reflectia sobre os méritos de uma terceira, que seria já em casa, de preferência a curto prazo.

O Incógnito pingava pessoas para a rua. Cheio à sexta-feira como nos sábados mais procurados. O DJ, porém, não estava especialmente inspirado, e poder-se-á dizer, sem prejuízo da verdade, que foi parcialmente responsável pelo facto de R., que se instalara nos degraus de acesso ao piso superior, junto dos amigos, ter deixado cair numa cabeça dançante do piso inferior uma de duas palhinhas com que foi servida a caipirinha que pediu quando entrou naquele bar. E alguma cachaça doce, também. Outra coisa não seria de esperar quando um público frustrado ouve os primeiros cinco segundos da canção dos Joy Division ‘Love Will tear us Apart” e, já com o coração aos pulos, percebe que se trata apenas de um sample. As três mosqueteiras que se costumam aninhar junto ao corrimão do piso superior, que dá visibilidade para a pista de dança, acharam o mesmo.

Por essa altura já Pº. tinha descaracterizado pela terceira vez, depois de virar sagres preta e caipirinha, o pacto que fizera a si mesmo antes de rumar ao Bairro Alto. “Vou beber cerveja branca a noite toda”. Encostado a uma parede, o presente holandês de Pª. sentia o sono pesar-lhe nas pálpebras. A noite já parecia longa para quem viajara da Holanda naquele dia.

III
I. reúne diversas virtudes. Entre estas se destaca a de, numa sexta-feira, conseguir sentar-se nos degraus que dão acesso ao piso superior do Incógnito, um dos perímetros com mais pernas por centímetro quadrado de que há memória - motivo para qualquer cidadão japonês corar de orgulho -, e assim permanecer, sem qualquer sapato cravado na cabeça, braços ou dentes.

Outra capacidade que distingue I. passa pela sensibilidade para avaliar engenharia e arquitectura; em determinados casos, pode levar longos minutos a oscultar uma parede, sentindo textura e estrutura, paredes como búzios, este amor. Foi o caso. Durante o tempo ganho no Incógnito, Pº. observou esse processo com atenção. Noutro plano, Pª. procurava o DJ pelo espelho, com esperanças de que este lhe visse a cabeça a abanar em reprovação.

E foi já a caminho da terceira e última paragem do agora menos extenso e fatiado grupo, a penúltima de Pº. e R. - queriam era bolos -, que este se lembrou de que jogaria sempre à bola dalí a umas horas.

2 comentários:

Unknown disse...

Lol fartei-me de rir muito bom, resta acrescentar que se a I. fosse homem (e isto porque a parede é feminina) temiria grandemente pela virtude da parede e saberia instantaneamente a quem acusar caso a dita parede aparecesse escandalosamente grávida (estou a brincar oh I.;))
Ohh e ja tive sets tao mas tao mas tao melhores a culpa é vossa puseram-me nervosa ;)

i disse...

estou a rebolar a rir, quase de lágrimas nos olhos. I. a amante de paredes que vira caipirinhas (sem açucar!!) Pª lembrou-me um bocado a abreviatura de Padre (que é Pe) mas isso são ossos do ofício.
É de referir a coincidencia de I. ser tão referida neste texto e I. ter esse mesmo quadro na parede do seu quarto, por ser o seu preferido.
(I. adora falar de si na terceira pessoa)