O anjo da guarda da Sofia fala muitas línguas e tem um talento grande para a livrar de chatices. É um anjo muito atarefado. Ela, a Sofia, até se esforça por não arranjar problemas, mas depois aborrece-se. Há dias encontraram-se num sonho e a Sofia perguntou-lhe quais os momentos da vida dela em que ele mais se tinha rido até então. Consta que o anjo ainda não acabou de enunciar a lista.
Um dia fomos a um jantar organizado por uma amiga casual, cheio de convidados casuais. Quase ninguém se conhecia: era, dizia a anfitriã, “um encontro de gente que se conhece de vista e certamente já terá trocado um ‘com licença’ à porta da casa de banho”. Achámos o conceito giro e lá fomos. O restaurante era castiço, com banquinhos de madeira envernizados e janelas grandes. Azulejos de cores fortes concediam ao espaço o ambiente luminoso de uma festa popular. Parecia a Lapa, mas a Sofia fez finca-pé e chamou-lhe Rio. Uma vizinha de cadeira da Sofia gostou logo dela, mal nos fizemos à mesa, e em pouco tempo começou a descrever-lhe com entusiasmo os grandes benefícios do sexo anal. A Sofia ria-se muito enquanto tentava compreender que tipo de aventuras o anjo da guarda lhe preparava daquela vez - perceber a lógica dos anjos sempre foi a grande obsessão dela. Bebemos duas caipirinhas cada antes de começarem a servir. Da ampla variedade de petiscos à nossa disposição virei choco frito e carapaus alimados, uma especialidade algarvia. A Sofia comeu melancia, uma especialidade dos sonhadores.
Era uma tarde-noite atípica na localidade que a Sofia dizia ser o Rio, parecendo a Lapa. Um denso manto de nevoeiro pairava nos intervalos entre as pessoas, fazendo de cada qual uma ilha fantasma. Fitei o olhar no pulso esquerdo à procura das horas, sussurrei-lhe algo ao ouvido, beijei-lhe o rosto e puxei-me para trás com a ajuda da cadeira. “Vou a casa e já venho.” Regressei meia hora depois, acompanhado de uma rapariga louca a cair pelos cantos. Dona de uma beleza muito portuguesa, já um pouco estragada, a M. mal se aguentava nos saltos que a erguiam oito centímetros acima do solo, atribuindo-lhe a altura certa para ser beijada sem grande desvio pelos mais altos. Sorria de olhos quase fechados, sempre com dois dentinhos à mostra. Fungava muito - estava no mundo dela. Tinha-a encontrado à porta de um bar enquanto arrepiava caminho para ver se acontecia alguma coisa. Aprendera com a Sofia, através do Jack Kerouac, que “é preciso saber o que se passa”. Daí que fosse normal fazer aquilo. A M. era uma amiga de infância que eu praticamente só recordava ter conhecido após a adolescência. Hoje, adultos, mal nos falávamos. Guardávamos aquela tensão levemente rancorosa dos ex-amantes. Qualquer tema era fresco se não nos envolvesse a dois e, ao invés, motivo de ruga cavada no rosto. Arranjei espaço entre mim e a Sofia e sentei-a. Entrámos em sintonia logo ao primeiro disparate. A Sofia, a quem a M. depressa elogiou os lábios carnudos, adorou-a enquanto empurrava melancia com caipirinhas. Piscou-me o olho quando chegámos à sobremesa. Não mais nos largaríamos nessa noite.
Mais tarde, à boleia dos convidados do jantar casual, fomos a um bar ali na zona e a música era tão má que decidimos entreter-nos com um concurso de shots enquanto cantávamos “hang the DJ!, hang the DJ!, hang the DJ!”. A Sofia tinha fama de campeã, eu não tinha fama alguma e a M. nem entrou no campeonato – achámos melhor que nos continuasse a satisfazer com aquele sorriso de roedora e a afastar aqueles que aspiravam a levá-la para casa. Fui eliminado a meio da competição, mas a Sofia continuou em prova. Passara o tempo todo a sorrir para a M., que no vestido justo devolvia um estratégico abanar de ancas e alegria. Sob incentivos de todos os amigos casuais, os uis e os ais, a Sofia chegou à final já com os olhos endiabrados e após o derradeiro shot correu até à rua para soltar tudo pela boca, num canteiro de jardim. Derrotada na final, continuava a admirar a M. do vestido justo e das curvas de perdição, que nessa altura já dançava comigo ao som do que eu lhe cantava ao ouvido.
A Sofia aproximou-se, hesitante, e puxei-a para um abraço a três. Com a cabeça pousada no ombro da M., olhos vermelhos nos meus, perguntou-me: “She is electric. Can I be electric too?”
3 comentários:
Se dois é muito, três é demais(dizem)
Mas que eu saiba, 3 foi a conta que Deus fez. Nestas alturas viro religiosa...
Depois não digam que não sou boa menina!humpf
Gostei e interessante esta lógica dos anjos. A Sofia parece ser alguém interessante :)
Fabuloso texto. O meu anjo da guarda também é um ser muito atarefado mas tem um nome: é a minha avó :)
Beijinho,
Sofia
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